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La insignia
23 de março de 2007


Introdução

Berlinguer: A herança difícil


Chiara Valentini
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, março de 2007.

Tradução de Luiz Sérgio Henriques.


Há muitas e boas razões para revisitar a vida e as idéias de Enrico Berlinguer, um líder político capaz como poucos de suscitar amores e divergências, paixões e hostilidades, não só quando dirigia, como se dizia então, o maior partido comunista do Ocidente, mas ainda hoje. Só reconstruindo com paciência quem foi e o que fez Berlinguer é que se pode encontrar a chave para compreender, para além da grande comoção suscitada pelo seu fim dramático, o nascimento do mito que rodeia sua figura. Um mito que tem até algo misterioso. Pode parecer incoerente em relação a um homem tímido e esquivo, com uma existência tão pouco romanesca, empregada na direção de um partido que não existe mais, entre reuniões naquele edifício da Via delle Botteghe Oscure que há tempos se tornou um banco, numa Itália e num mundo que foram atingidos por uma transformação violenta e com resultados ainda imprevisíveis.

Creio que Berlinguer consiga se fazer ouvir não só por parte de quem tem uma certa idade, mas também pela geração que em 1984, no momento da sua morte, estava nas salas de aula do primeiro grau ou ainda não chegara ao mundo, por causa do fascínio moral da sua figura. Numa época como a nossa, dominada pela política das "paixões frias", dos compromissos, dos cheques em branco a quem está no poder, Berlinguer, em vez disso, é o exemplo de como se pode tentar dar um fundamento ético às próprias propostas políticas, sem esquecer nem por um minuto as pessoas de carne e osso que são suas destinatárias. E, além disso, havia um modo de ser quase irrepetível, que certas fotos elucidam melhor do que muitas descrições. Berlinguer, com um sorriso ansioso, que aperta com força demasiada a mão de Aldo Moro nos dias da solidariedade nacional. Berlinguer, tão magrinho, que fala em Moscou, num plenário de burocratas soviéticos, para reivindicar o valor universal da democracia. Berlinguer, espantado mas no fundo feliz, levantado por Roberto Benigni no palco de uma festa de L'Unità.

"Não era um político, era um poeta", diria em seguida Benigni, pouco depois do fim tão inesperado e do funeral grandioso, talvez o mais imponente da história republicana. Uma homenagem carinhosa, mas que também se presta a interpretações pouco benevolentes. E, de fato, a acusação de ter estado distante demais da realidade contingente, uma espécie de sonhador abstrato e à caça de utopias, fez com que muitas vezes uma parte dos seus herdeiros dissesse que, para reconstruir na Itália uma esquerda moderna, seria preciso "matar o pai". Ou melhor, "esquecer Berlinguer", como sugeria o título de um panfleto infeliz dos anos noventa.

Sempre pensei que, para responder a estas polêmicas, não havia nada melhor do que partir novamente dos fatos, sobre os quais em seguida, como é óbvio, cada qual pode formar a própria opinião.

E é também para contribuir neste sentido que republico, com algumas atualizações, esta biografia, escrita com base em documentos inéditos, em pesquisas de arquivo e em preciosos testemunhos de familiares, companheiros de partido, amigos e adversários, além de minhas lembranças pessoais, numa medida limitada. Quem revê, hoje, as várias etapas da secretaria de Enrico Berlinguer fica surpreendido com a coragem e a concretude da inovação política. Para um dirigente comunista, não foi uma escolha irrelevante o progressivo afastamento da URSS, quando o socialismo real ainda estava vivo e robusto, até a afirmação, numa célebre entrevista, de sentir-se mais seguro "sob o guarda-chuva da Otan". Disso se falou no mundo todo, assim como, anos depois, suscitaria grande alvoroço a "ruptura" definitiva de Berlinguer com Moscou, anunciada ao vivo na televisão, na época do autogolpe na Polônica - e conseguindo, nesta operação, a adesão de praticamente todo o partido.

Também tinha suscitado grande reação a proposta do compromisso histórico. Com o acordo a ser firmado com a Democracia Cristã de Aldo Moro, o secretário do PCI quis superar o maior impasse da Itália de então, a impossibilidade de alternância ligada ao fator K, a regra não escrita que excluía os comunistas do governo. E, com efeito, praticamente todo o grupo dirigente comunista, da ala amendoliana até a esquerda de Ingrao, estivera de acordo.

É verdade que aquele encontro, mesmo produzindo importantes reformas que modernizaram a Itália (penso na lei de paridade, no novo direito de família, na interrupção voluntária da gravidez, só para citar algumas), foi paralisado por dificuldades crescentes. Mas, à medida que se abrem os arquivos das grandes potências, torna-se evidente o peso da violenta hostilidade internacional, tanto no Ocidente quanto no Oriente, suscitada pela aproximação ao governo de um partido levado pelo seu secretário cada vez mais além das compatibilidades dadas. Confirmando que, no mundo contemporâneo, o terrorismo pode mudar o rumo dos acontecimentos, esta política foi liquidada, em junho de 1978, pelo assassinato de Aldo Moro por obra das Brigadas Vermelhas, o crime político mais torpe da história italiana. É um acontecimento ainda em parte obscuro, o sinal de um colapso da democracia cujo preço ainda não acabamos de pagar.

Já seria o bastante para passar à história. Mas, nos poucos anos anos que ainda viveria, toma corpo a fase de Berlinguerque sempre considerei a mais interessante e rica de intuições. É a fase dos "pensamentos longos", das idéias e escolhas com que ainda hoje voltamos a deparar, muitas vezes não resolvidas, no coração do debate político. Começa a manifestar-se, no clima turvo do pós-Moro, aquela crise das instituições e dos partidos, aquela desconfiança crescente do eleitorado nos próprios representantes, cujos erros e delitos viriam cada vez mais à luz, até o auge de "Tangentopoli" [o sistema generalizado de corrupção e financiamento ilícito de partidos, desmantelado pela "Operação Mãos Limpas]. Berlinguer fora o primeiro a compreender a profundidade do mal. Talvez não tenha sabido delinear, em prazo curto, um projeto político bastante convincente para substituir o já superado compromisso histórico. Mas teve o mérito de identificar um tema alheio à cultura política italiana - a questão moral - como "a questão nacional mais importante". É uma definição que deu no calor da hora, indignado com a incapacidade dos poderes públicos de enfrentar o desastre do terremoto da Irpinia. E repetiu isso muitas vezes, não se cansando de evocar a necessidade de uma regeneração da política, cada vez mais encerrada nos seus palácios, e dos partidos que se transformavam em máquinas de poder e de suborno. São argumentos que se poderiam repropor sem alteração ainda hoje.

Nesta exigência de renovar profundamente a vida pública, Berlinguer também encontrou as mulheres. O que o fez ver de modo novo o papel das mulheres foi a vitória no referendo sobre o divórcio, no qual, como quase todos os dirigentes comunistas, tinha a certeza da derrota. Na mesma noite da vitória, disse aos seus companheiros: "Se errei ao acreditar que não conseguiríamos, é porque subestimei as mulheres. Devemos nos dar conta de que hoje elas são uma força dinâmica". Desde então, passou a considerá-las aliadas indispensáveis. Lutou com elas, único dirigente homem, na campanha pelo referendo sobre o aborto. E chegou à persuasão de que não haveria nenhum renovamento se não se encontrasse a força e a coragem de envolver na vida pública a metade do gênero humano, que dela praticamente fora excluída. Não se pode dizer que esta convicção tenha sido herdada com igual nitidez pelos seus sucessores, pelo menos enquanto não os forçou a abrir os olhos o desconforto crescente das italianas.

Há um outro aspecto de Berlinguer que merece ser sublinhado. Quando, no início dos anos oitenta, o que ninguém ainda definia como mundialização abre o caminho para a primeira revolução neoconservadora, Berlinguer se esforça por arquitetar algumas respostas a um ataque que se repetiria em tempos recentes numa escala mais perigosa e inquietante. Pode-se ler nesta ótica sua insistência, que então podia parecer até excessiva, no papel da Europa, a ser contraposto quer ao decrépito comunismo real, quer a um neoliberalismo agressivo e portador de riquezas para poucos e profundas injustiças para muitos. Para Berlinguer, era essencial defender "a anomalia européia", isto é, a velha Europa, como poderíamos dizer com as palavras de hoje, sua cultura e o enraizamento dos seus movimentos sindicais e dos seus partidos contra o ataque desferido por Ronald Reagan e pela nova direita, os precursores imediatos dos neocons de Georg W. Bush. Muito antes da queda do muro de Berlim, pensava que, no mundo, a contradição maior se tornara aquela entre o norte do bem-estar e o sul da fome, e que daí devia recomeçar a análise das esquerdas.

Nesta ótica, agiu no sentido de uma aliança com as socialdemocracias européias, em particular com a SPD de Willy Brandt e com o partido do sueco Olof Palme, chegando a imaginar um governo mundial da economia. E, com muitos anos de antecipação em relação aos massacres dos Bálcãs e à guerra preventiva contra o Iraque, dedicou-se com todas as suas energias à "diplomacia dos povos" e aos movimentos pacifistas, como instrumentos de defesa da paz no mundo. Todos aqueles que, inclusive nestes últimos anos, continuam a negar que Berlinguer haja virado a página em relação à URSS e que tenha sido irreversível a opção por um novo socialismo ancorado na Europa parecem ter se esquecido de páginas inteiras da história recente.

Mas as acusações mais insistentes referem-se ao papel de Enrico Berlinguer na cena italiana. A este secretário em busca de idéias novas censura-se ter dado vida, com a denúncia da partidocracia e a insistência na questão moral, a uma cultura que, mais tarde, terminaria por beneficar a nova direita; censura-se não ter sabido projetar reformas institucionais que permitissem a alternância, ter conduzido seu partido por um caminho sem saída. A outra face da medalha destas acusações é a parcial revalorização de Bettino Craxi, o grande adversário de Berlinguer nos últimos anos da sua vida, o líder de tipo novo que teria sabido captar a vontade de modernização dos italianos. Numa autobiografia, há alguns anos, Piero Fassino chegou a imaginar o embate entre Berlinguer e Craxi como uma surreal partida de xadrez. Quando está prestes a fazer o lance final, Berlinguer percebe que, com o movimento sucessivo, o adversário lhe daria o xeque mate. E então escolhe morrer "um minuto antes que o outro mova a peça", para evitar a derrota. Talvez o secretário dos DS se tenha deixado levar pela sugestão do filme de Bergman. Parece-me difícil imaginar que, qualquer que seja o juízo sobre os dois políticos, aquela partida dramática pudesse resolver-se com a vitória de Bettino. No mínimo, em razão de como as coisas se desenvolveriam em seguida. Nos seus anos de governo, Craxi não conseguiu fazer as reformas constitucionais que apregoara nem melhorar a Itália. Seu Partido [o PSI], que mesmo nos melhores momentos jamais superou 15%, caíra "numa corrosão moral que chega bem antes de Tangentopoli", como lembrou Giuliano Amato. E, no seu dramático declínio, o líder do PSI arrasta consigo uma parte consistente da própria tradição socialista, já posta em crise pelo abandono dos seus protagonistas de maior prestígio, de Norberto Bobbio a Riccardo Lombardi e a Antonio Giolitti.

Bastante diferente é a herança de Berlinguer, que nunca assumiu formas rígidas e prescritivas, mas, ao contrário, é feita de um patrimônio de idéias, de paixões, de exemplos de vida, que continuam a agir na consciência de muitos e de muitas. Berlinguer legou uma esquerda melhor e mais aberta, mais preparada para enfrentar os desafios do novo século. Também por isso, creio que refletir criticamente sobre sua extraordinária experiência só possa fazer um grande bem, dentro e fora dos limites da esquerda.



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