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La insignia
18 de março de 2007


Buenos Aires pelos olhos de um amigo


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, março de 2007.


Isto já deve ter ocorrido a muita gente. Alguém viaja a uma cidade, a um país, e pelo que ela nos conta passamos a viajar com a sua pessoa. Nada de extraordinário há nisso. Se Maomé não vai à montanha, a própria montanha vem a Maomé, pela história da viagem. Isso é comum. Mas talvez o incomum do que passo a narrar venha de uma sensação de estranheza, não de dúvida, não de incredulidade, pero de uma desarmonia entre o ouvido e um estranho sentido de adivinhação.

Hoje é domingo, estamos na casa do sociólogo Hugo Cortez, que, em honra do próprio nome, passa a nos contar a sua última conquista. Ele mais a sua esposa Conceição e cunhada foram a Buenos Aires. Estamos todos ali, eu, Francesca e Joaquim Ancilon, atraídos por um bom almoço, uma perfumada isca, mas o alimento principal do anfitrião é nos regalar com a sua última viagem. Para nós, para os infelizes que não fomos, Buenos Aires é apenas um belo nome enquanto o almoço não vem. Pero isso é somente por enquanto.

Hugo, assim nos parece, ainda não acordou. A sensação de Buenos Aires ainda o acompanha, sentimos, porque ele nos fala incansável da cidade, incansável e sem parar. Hugo Cortez Crocia Barros vê e mira melhor do que eu, porque usa lentes de contato, enquanto possuo óculos de validade vencida. Talvez por isso eu acompanhe o seu relato mais com a compreensão do que com os olhos. Hugo, como um bom vendedor que demonstra o produto mais com palavras do que com o produto mesmo, narra as imagens - um vídeo que não tem som, apenas uma música mecânica, quase hipnótica -, melhor, narra antes mesmo do vídeo. Preparando.

- Hugo, vamos ao filme, pede-lhe, suplica-lhe, e por fim ordena a senhora Conceição.

E por isso vamos. Entramos em um grupo de turistas em uma estação. Depois vem um trem. Aparece uma muchacha-guia, que sorri. Um turista peruano nos acena, e bem poderia ser um de nós acenando para nós, porque é o mais brasileiro do grupo. Vêem-se imagens no interior do trem - sempre narradas por nosso amigo -, ele sentado a mergulhar a cara em uma ventana, lugar onde ele jamais percebe que está sendo filmado.

- Hugo, você é um artista de Hollywood, eu lhe digo. As câmeras em ação e você faz de conta que não sabe.

- Não, não é isto. Eu prestava atenção na paisagem, eu não queria perder nada.

E por isso vemos. Margens de avenidas longas, que parecem desertas, que parecem a nossa José Estelita, mas não, estamos na Argentina - Hugo nos explica onde devemos estar. Certo, estamos em Buenos Aires, pero a viagem no trem é longa, queremos dizer, o filme não sofreu uma precisa edição. O cais! Finalmente algo sobre o que temos a mais absoluta certeza. O cais! Hugo nos corrige como um bom mestre-escola. "O que chamas de cais, deverias mais exatamente chamar de ...":

- Píer. Isto é um píer.

A primeira coisa que aprendemos na imagem que vemos é que não vemos bem. Somente vemos de fato quando o amigo nos narra o que vemos. Por exemplo, sentimos agora que entramos em um barco. As evidências são totais: águas de um rio, margens que se movem. E por isso, antes de beber a generosa dose de uísque, tento pagar com um comentário:

- Isto é um barco. Coisa boa.

- Isto é um catamarã, o nosso amigo corrige.

Eu não tenho um dicionário à altura, e me conformo com a precisa definição desse tipo especial de barco. Isto é um catamarã. Está certo, ainda que felino, gato não é tigre. Que por falar nisso....

- É um rio, não é, Hugo?

- É o Tigre.

Ainda pensamos em comentar que pensávamos ser o Tigre um rio da Mesopotâmia, mas como os nomes não são exclusivos, calamo-nos. Pero é impossível não observar um rigoroso contraste. Hugo nos mostra graciosas casas suspensas, de madeira, com jardins cuidados, amplos, à moda inglesa, campos de golfe, homens e mulheres bem vestidos, à inglesa, enquanto vemos meninos a pular nas águas do rio, à brasileira. Meninos que fazem acrobacias, dão mergulhos frecheiros, à brasileira.

- Igualzinho como aqui, Hugo.

O nosso amigo consente, em silêncio, em silêncio contrafeito, pero em silêncio. Por isso ganhamos mais força para comentar:

- Esse rio está poluído, Hugo. Esse rio está sujo.

- Não, não. É a cor dele mesmo. É um rio barrento. Isto é do barro.

Bueno, barro no es sucio, claro. Ainda que alguns plásticos se mirem sobre as águas, de passagem, esto es paisaje. Adelante. Então vamos à segunda parte, às fotos de autoria do amigo. E aqui bem sabemos todos o quanto as fotografias são recortes limitados, muy limitados de la realidad. Hombre, uma das maiores cidades culturais das Américas não cabe em espaço kodak. É certo. E nos contentamos então com instantâneos rápidos onde aparecem Hugo, Conceição e cunhada, com retalhos de las calles porteñas. E por isso vemos, com os olhos do que ele nos conta:

- Buenos Aires é uma cidade plana, ela é construída sobre a região dos pampas, entende? Não tem ondulações, morros. Ela é uma cidade planejada. Ela é como um tabuleiro de xadrez.

E aqui somos obrigados a uma interrupção burra. Escrevemos "somos" por plural de imodéstia, porque sou eu quem lhe pergunta:

- Tabuleiro de xadrez, como assim? Vista do avião a cidade tem 64 quadrados?

Hugo é humilde para com os que não conhecem a cidade, e por isso, sem afetação, responde:.

- Não, não, não. Ela é quadriculada. Os seus quarteirões são quadrados bem distribuídos sobre um plano, entende? ("Si, por supuesto", nos esforçamos.)

- Toda a cidade? (E assim perguntamos porque nos vem uma interrogação: que tão belo projeto é este que não se altera pela ocupação humana?)

- Toda, não. A sua parte central. O que mais me chamou a atenção foi o conjunto arquitetônico da cidade. São edifícios antigos, mas conservados, entende? É uma cidade imponente. As épocas distintas, diferentes, estão preservadas. Eu senti que os argentinos têm uma preocupação com o porte, com a estatura. São prédios que em média possuem 12, 13 pavimentos. Majestosos. Sim, mas não é só a estatura. São prédios majestosos, sólidos, bem construídos. Têm um acabamento sofisticado.

E nos exibe fotos onde sinto falta de igrejas barrocas, de construções mais antigas, pois o desenho nos remete, no máximo, ao século XIX, se muito. No centro da cidade não se percebe o passado colonial. Então eu, que tenho Mota no nome, me recordo da expressão argentina "negro de mota", e lhe pergunto:

- E os negros? Você viu muitos negros em Buenos Aires?

- Vi dois.

- Dois?! Aonde foram parar os negros? Como se explica?

- Conceição perguntou isso a um argentino que nos pareceu um homem culto. Ele nos respondeu que os negros foram exterminados na Guerra do Paraguai...

Isso não explica, penso agora, aqui, enquanto escrevo. E as mulheres, e os filhos dos negros, também foram todos mortos como soldados na Guerra do Paraguai? Talvez uma pista seja a falta do passado colonial de Buenos Aires, que não aparece no centro, assim como os negros. Onde falta negro, falta um elemento plástico fundamental em qualquer lugar da América. Mas essa é uma discussão difícil, para não dizê-la dolorosa, que não cabe nessa hora da tarde em que o nosso amigo nos mostra a civilização da cidade. Por isso vamos a outras fotos. Ao túmulo de Evita Perón. Pero aqui, como a se recuperar deste momento em Buenos Aires, o pernambucano Hugo Cortez mostra a sua observação de sociólogo:

- O PC argentino hoje faz uma autocrítica, por ter querido um proletário sem Perón. Nessa pureza, os comunistas perderam a massa.

Rápido então saltamos para o Hotel City, que possui um desenho belo em suas linhas. Então vamos ao quarto do hotel, de cama larga e espaçosa. Então vemos fotos ao lado de um obelisco. Então vamos ao mais famoso recanto de Buenos Aires, a la Plaza de Mayo.

- Ela é muito grande?

- Não, é do tamanho da nossa praça do Derby, responde Conceição.

- Não, é bem maior, Conceição. Muito maior, Hugo discorda .

Bueno, se não temos medidas corretas do espaço físico, em uma coisa todos concordamos: a dimensão simbólica na luta política dessa praça é única, em toda a nossa América. E assim chegamos ao que, pelo menos aos olhos de quem não foi a Buenos Aires, constitui um desenvolvimento real, um modelo para todos os cidadãos do mundo. À consciência política dos crimes da ditadura militar.

- É impressionante como isso está entranhado na vida de toda a gente. A guia turística nos informou abertamente, sem pudor, o número de mortos e desaparecidos na ditadura que sofreram. Onde teríamos isso no Brasil?

Jorge Luis Borges, esse gênio de citas, copia em Livro dos Sonhos estas palavras de Samuel Taylor Coleridge:

"Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e lhe dessem uma flor como prova de que havia estado ali, e se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... então o quê?".

Borges dá a essas palavras o nome de A Prova. Talvez por isso o nosso amigo me regalou ao fim de sua palestra sobre Buenos Aires com um livro comprado na Librería Dickens. É o Diario de un Clandestino, de Miguel Bonasso. Tem-me sido útil nesses últimos dias. Se o sociólogo Hugo Cortez vai a Buenos Aires e lhe traz ao fim um livro como prova de que a viagem foi boa, e se ao escrever sobre isto você tem o livro nas mãos... então o quê? - Buenos Aires es buena y me gusta escribir con los ojos de un amigo.



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