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La insignia
17 de junho de 2007


A música imensa do Vale dos Tambores


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, junho de 2007.


Imagino Carlos Henrique Machado como um homem muito modesto. Não tanto pelo alarde nenhum que faz de suas qualificações exteriores, formais, que o apresentam como compositor, bandolinista, pesquisador, violonista, arranjador. Isso nada diz. Todo homem em seu trabalho sempre executa mais de uma coisa. Imagino Carlos Henrique modesto, porque tive a oportunidade de ouvir os dois CDs aos quais deu o nome de Vale dos Tambores. E acrescento: qualquer indivíduo normal, com a vaidade comum de que todos somos feitos, andaria depois de realizar essa música com um ar de quem bebeu com os deuses.

Aqui faço uma pausa. Sei que falo de um artista desconhecido pela burra, imensa, grande mídia. A produção musical desse homem está fora das gravadoras que abrem páginas inteiras de cadernos dos periódicos. Longe está ele de ser um pop star. Carlos Henrique se dedica a uma música instrumental, a um gênero de tocar e de arranjar e compor que os brasileiros chamam de choro ou chorinho. Vejam só que coisa agradável mais sem mídia! Por isso, como uma vacina ao possível exagero do que direi a seguir, recomendo uma visita a www.carloshenrique.mus.br, ou uma mensagem a chorobrasileirocarloshenrique@yahoo.com.br, para que se adquira o Vale dos Tambores e se perceba em som o que passo a escrever.

Digo sem medo de errar e com a mão na consciência: Carlos Henrique Machado realizou a melhor obra de choro dos últimos tempos. O que mesmo isso quer dizer? Valho-me de uma comparação - esse recurso de quem fala de marcianos para ser entendido por terrestres -, e espero conseguir assim a clareza. Aquilo que Paulinho da Viola faz no samba, de ser uma ponte entre a tradição e o futuro, Carlos Machado faz nestes CDs que ouço e escuto há dois breves dias. Com uma diferença: educado nessa tradição, ele foi até os ancestrais, quero dizer, ele escavacou as razões da sua sensibilidade, aquele gosto antigo que temos, que vem na comida, nos cheiros, nos tiques e esquisitices que temos, que todo povo tem e não sabe por quê. Observem como ele explica uma das composições:

"Todas as entrevistas que eu dava sobre o trabalho, apresentava a Catira como a música tese e explicava o que eu acreditava ser manipulado pelo meu subconsciente consciente e justificava. O tempo foi passando, até que um dia, há pouco mais de três meses, com a morte do meu tio Marino, é que pude entender tudo. Fui sozinho prestar a ele a minha última homenagem, já não havia mais ninguém lá. O estranho é que eu não sentia tristeza alguma. Voltei ao volante do carro e vim lembrando do meu tio alegre, do casarão antigo onde moravam meus avós em Getulândia. Meus primos, tios, pai e mãe, todos reunidos na cozinha e meu tio Marino iniciava um sapateado e estalava os dedos, meu pai se munia de uma caixa de fósforos onde batia na mesa e na mão, uma forma de bater caixa de fósforos que eu nunca vi ninguém bater. Lá iam os dois brincando para alegrar a molecada. Quando de repente me deu um estalo, aquilo que o meu tio dançava e o meu pai tocava, era catira. Aqueles pés batidos no chão e o estalar dos dedos era catira purinha e como é que não tinha percebido isso antes? E aí percebi nitidamente que aquela composição nada mais era que a remontagem de um quadro com uma força emocional que eu não tinha idéia".

Essa gênese do que escrevemos, do que trabalhamos, de que nem consciência possuímos, porque atribuímos sempre o melhor de nosso fazer aos mais altos saberes que vêm da Grécia, quando não da França e da Inglaterra... no Vale dos Tambores, Carlos Henrique Machado foi buscar na própria aldeia, na sua cidade, e aliou a sensibilidade artística a uma paciência de historiador e execução de virtuoso. Imaginem só a felicidade. Seria como alguém realizar um trabalho de homenagem à literatura brasileira a escrever os capítulos à maneira de Machado de Assis, à maneira de Graciliano Ramos, à maneira de João Cabral de Melo Neto, e ainda assim, em todos os capítulos, à sua própria maneira. Ser vário e ser pessoal. Mais: mal satisfeito nessas homenagens, fosse além e, principalmente, recuperasse o valor de artistas fora dos livros, fora da fala culta, na fala certa errada de homens sem instrução formal. (Escuto agora mesmo um canto de jongo que antecede a composição Jongueiro, e isso dá na gente um gosto de carinho e leite que julgava enterrado na infância.) Percebem? Pois assim andam as composições em Vale dos Tambores. Nelas recebem a mesma reverência e dignidade o Maestro Jacy, a senhora Zelinha, Tia Marina, Ernesto Nazareth, Dilermando Reis, Cirandeiros Paraty, João Pernambuco, Maestro Cipó, Sapateiro Padilha, Zequinha de Abreu, trabalhadores de Volta Redonda, Altamiro Carrilho, maestro Nicolau, Luiz Martelo, Bonfiglio de Oliveira, Joaquim Callado, Claudionor Rosa, Jovaci, Josemir Tadeu, Isaura Villas Boas, Fatinha, Tânia Maria, Maestro Franklin, Mestre Luizinho, Mestre Caraüra... e as reticências aí querem dizer, mais precisamente, gerações de negros, índios, brancos e mestiços à margem do registro em linhas de livro. É um sapateado de gerações recuperado em música instrumental. E com um raro e humilde talento. É como se, compondo para servir a esse povo feito de arte e suor, um deus justo recompensasse o artista por tão generoso destino. Os abençoados somos nós.

Eu comecei a ouvir os CDs munido de método e análise fria. Papel a meu lado, ia anotando os nomes das composições para, munido do mais cerrado espírito crítico, apontar com flechas a minoria, se houvesse, que valesse a pena ouvir. Eu não sei se foi a falta de sol na última quinta-feira, não sei se foi o humor, o certo é que, ao fim de 35 músicas, eu possuía a maioria delas com flechas. Destaquei então, de imediato, Canto dos Quilombos, Cortando um dobrado (que título!), Jongueiro, Catira,. Sapateiro Padilha (título que parece roubado de um frevo, mas não, é uma homenagem), Mestiço, Lamento Negro, Casaca do Congo, Procissão de Santa Cecília, Sarau para Villas Boas, e mais, Tambor de Crioula (anotei ao lado, aplauso!), Cantiga, Tambus para Manuel Congo, Mestre Caraüra, Arrepia Tatunda, Sapeca Iaiá, Baile de Cabana, Lundu de Clementina, Todas as Cordas, Xinha... e quando volto a ouvir, como agora, percebo que fui injusto em não ter posto mais flechas, para uma composição como Do Barro a Madeira. Acredito que diferentes ouvintes notarão o que não percebi. Em Tambus para Manuel Congo mais de uma pessoa ouvirá ecos fortes de clássicos espanhóis do violão e de Villa Lobos. Em. Tambor de Crioula, o canto universal de Moacir Santos. Em Mestre Caraüra um sonho de cinema, para nada dizer de um trecho que é puro som de banda de pífanos. Arrepia Tatunda, alguém deve achar que é nossa velha guarda renascida. E, afinal, Todas as Cordas, acredito que todos perceberão que é um choro-homenagem-ao-choro. Ainda que um espírito duro anotasse, "conceda, não se pode escrever que todas as composições são boas ou são ótimas", ainda assim esse espírito, se justo fosse, não deixaria de anotar: "esse trabalho, quando não tem finas composições, tem arranjos e uma qualidade de músicos que beiram a felicidade".

E mais não digo e mais não falo, apenas copio o que escrevi na passagem de Canto dos Quilombos para Cortando um Dobrado: ouvir esses choros é como entrar no céu. No céu que imaginamos ser o céu, lugar de alegria e confraternização. É como ter direito a um pedacinho do céu, depois de todo o sofrimento.



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