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La insignia
25 de fevereiro de 2007


Sueño de Sol


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2007.


Tudo fora de fato muito estranho. Tudo se passou como uma sentença de condenação do tribunal da irrealidade.

Há um trecho da vida - houve um trecho naquele presságio - em que as fronteiras entre o possível e o impossível, entre o imaginável e o inimaginável, entre o sonho e o cotidiano, ou entre o subjetivo e o objetivo, como Sol e companheiros gostavam de dizer, e com "objetivo" queriam também dizer a realidade mais brutal e bruta, há um trecho da vida em que essas fronteiras são rompidas, melhor, são confundidas, melhor ainda, são borradas e se perdem em absoluto as fronteiras. Os psiquiatras, em sua simplificação da alma, dariam a isto o nome de processo esquizofrênico. Mas não estamos tratando aqui de um diagnóstico. Desejamos, se muito não for, acompanhar o real além da convenção, o real que a tudo envolve. Para melhor expressar o que houve, mergulhemos em Sol Barreto de Assunção, no tempo das vésperas dos seus 28 anos.

T, T, T, T, T. TTTT, T. No princípio ela viu e eram três cruzes. Melhor, no princípio era um T isolado. Depois se acompanhou de outros Tês, mais quatro. Depois houve um espaço, um hiato, até um T longe, que, ela bem notou, ganhava familiaridade e elos com os tês primeiros, e com muitos outros tês ocultos. No sonho, nos sonhos, que guardavam uma coerência de enredo, ou melhor dizendo, que guardavam uma coerência entre si, que guardavam uma relação entre si como se fossem capítulos de uma narração onde tudo em uma noite não pudesse ser dito, no sonho de uma noite havia o limite do espaço de "exposição", de expor o contável, o narrar breve, havia uma contradição entre o que o sonho sabia e o limite físico do que podia ser exposto, daí que os sonhos se faziam referência, ligavam-se, conectavam-se, em camadas distintas em dias distintos, como se dissessem, "na noite anterior", e retomassem a narração em outro ponto. Nos sonhos surgiu um T, surgiram os Tês, e esses Tês a confundiam durante a vigília, durante as horas do dia em que andava e falava e agia, como se desperta e letárgica estivesse. Mas esses Tês - cruzes que ela relutava em decifrar - entraram como elemento de reforço ao que ela sentira, pressentira antes, bem antes.

Ora, desde junho, a partir de junho de 1972, Sol começara a sentir que um perigo a rondava. Isto ela não disse - não informou - aos companheiros, mas sentia. E como mesmo, ela quase se perguntava, como mesmo ela poderia dizer que sentia um perigo, quando todos não viviam nem respiravam outra coisa a não ser o perigo, o risco, a possibilidade de uma queda, a sepultura do "cair"? Como dizer isto ou disseminar uma suspeita infundada, do vizinho, do vendedor de pipocas na esquina, do mendigo que batia à porta, do carteiro que deixava uma correspondência? Seria o mesmo que pôr fogo em um rastilho de pólvora de paranóia. Mas isto, um perigo palpável, uma sombra de carne e osso, um fantasma de músculos e dentes ela sentia: um perigo vinha crescendo e a rondava. Mas onde? Ela olhava para os quartos, para as paredes, para o teto, para os sapatos, para a cama, e não determinava com exatidão concreta e certa o perigo. A casa física onde habitavam iria cair? O teto viria abaixo, era isso? Ou, perigo maior, a casa, o ponto onde moravam, iria cair breve, cercada, fuzilados todos em casa, era isto? Voltava à cama, ao quarto.

Havia um cheiro de jasmim. Embriagante, pleno, perseguidor. E então, assim como os personagens que têm uma sina, e todos os acidentes, até o incidental canto de um pássaro, vêm compor, vêm a propósito de sua trajetória, Sol Barreto começou a pôr nas coisas os indícios do perigo que a rondava. Isto pensamos, a distância. Mas não seria mesmo um Aviso tudo, todas as coisas naquela altura das vésperas dos seus 28 anos? Não haveria mesmo um concerto, uma conspiração, um acúmulo de coincidências, e tão cumulativas, que se devia a elas dizer, "vocês, coisas, fazem uma canção dos meus últimos dias"? Pois foi naquela altura, naquele verão de 1972 que ela sentiu e pôde quase degustar, como se fosse a vez primeira, pois lhe veio o sentimento de que nunca mais perceberia nada semelhante, pois foi naquela altura que a perseguiu um cheiro de jasmim. De jasmins. De nuvens e ondas de jasmins. Era um perfume de entontecer, de tomar conta da gente, de pôr a mais remota carne a sonhar. Havia naquela casa, na ladeira do Bonfim, um jasmineiro. Ele ficava no jardim, próximo ao quarto de Sol. Enquanto ele não se denunciava pelo cheiro, pelas flores delicadas, miúdas e brancas, enquanto não florava e recendia no verão, ele não era nem se notava. Pelo menos até o dia em que o vento, ou a maturidade do tempo, derrubasse as florezinhas pequenas pelo chão, que se estendiam em um tapete de essência, o jasmineiro não era. Tão essência eram suas flores e pareciam restos decompostos no jardim, como se fossem uma coisa suja, um dejeto, um excremento de vegetal, quando caíam, e se mostravam deitadas e amontoadas, como se estivessem a manchar e atrapalhar a visão das flores que fazem bem aos olhos. No entanto, aquele branquinho sujo no jardim, quando em viço, quando posto nos galhos da trepadeira, que perfume embriagador espalhava por toda a casa. O perfume fazia da casa aposentos, câmaras de estar. Tão belas no vigor, e tão basuras quando caídas. Tão fundamentais na vida, tão repelentes, quando mortas. Haveria naquilo, haveria nas flores do jasmim algo a se enquadrar, a se organizar, havia ali alguma coisa orgânica com as cruzes, com os Tês dos sonhos?

Sol não acreditava em superstições, em feitiços, em irracionalidades ou bruxarias. Não acreditava nem poderia acreditar. "Essas coisas do atraso", como dizia. Pero outra coisa eram o concerto musical, o perfume do jasmineiro, os sonhos que vinham todas as noites em crescendo, as vozes murmuradas, o ar a subir em torno, um ar que se não era bem hostil, era um presságio ruim, um desagrado, um gosto mau que lhe vinha à boca, uma angústia que lhe entrava e não sabia por quê. Outra coisa era essa música, "faremos uma canção dos teus dias", como se fosse um concerto musical dos últimos dias. Dos seus, da Sol boa, da Sol ruim, da Sol terna, da Sol raivosa, da Sol vidente, da Sol cega. Outra coisa era o jasmim compósito e compositor, agente e paciente, clemente, inclemente. Então ela se disse - como uma penúltima tentativa de espírito alegre, com broma - "E se eu desse a tudo isso um nome, um outro nome, um codinome, como em nossa militância? Jasmim eu te chamo".



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