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La insignia
11 de fevereiro de 2007


Cumpleaños de Sol


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2007.


Na véspera dos seus 28 anos, Sol Barreto de Assunção disse aos amigos que não mais queria celebrar aniversários. "Basta de festas", ela disse aos mais próximos. A uma pessoa de natural tão alegre, essa mudança pareceu muito súbita e sem razão. Por isso, primeiro brincaram, e espalharam a boa nova de que Sol evitava a vizinhança dos 30 anos. E por isso e assim lhe perguntavam, aqui e ali, entre um discurso e outro sobre as tarefas do movimento:

- Quando fazes 30 anos?

Ao que ela respondia, em um tom de causar constrangimento:

- Jamais terei 30 anos.

Então voltavam:

- Claro, claro. Primeiro farás 28, depois 29, depois 31, mas jamais 30 anos.
- É uma certeza, amigo. Talvez nem 29.

A essa precisa afirmação, sempre que estava presente, intervinha o companheiro e amante:

- Temos que respeitar as individualidades. Isto é uma idiossincrasia, afirmava o companheiro a separar as sílabas, saboreando "idiossincrasias" como se fosse menta. E acrescentava, antes de cambiar o rumo da conversa:
- Devemos respeitar uma singularidade.

Diego, ou Moisés, ou Lucas, de nome de batismo José, tinha boa compreensão dessa idiossincrasia. Fiel, ou quase fiel marido de Sol, uma parte dessa idiossincrasia ele bem alcançava. Outra parte, uma outra metade, não. Mas aqui, em se tratando da singular pessoa de Moisés, de Lucas ou José, as duas metades não faziam um inteiro. Mesmo a metade conhecida não era uma só, não era a mesma. Havia uma metade comum, de domínio público, que ele e os companheiros bem entendiam. Havia nessa mesma metade um lado de cálculo que traduzia o esquisito de Sol, mas que ele e somente ele alcançava.

No domínio comum, o presságio de Sol mais se assemelhava a um devir lógico. Mais cedo ou mais tarde, como cartas de um baralho em pé, em um equilíbrio precário, todos, de uma forma ou de outra, todos cairiam, porque era um destino comum o raro passar dos 30 ou 33 anos. No entanto, assim saber não é o mesmo que ter a mais clara e fundada consciência. Outros cairiam, pensava cada um, outros que não eu. Pois se assim é uma lei geral dos viventes de todas as crenças, raças e tempos, quando assim pensamos enganar a morte, enquanto a nós próprios enganamos, quando nos dizemos e com essa crença vamos em frente, "outros morrem, mas isto não é comigo", e, portanto, "outros morrem, mas este não é o meu caso", com mais propriedade falavam a si mesmos Aurora, Jarbas, Eremias, Pauline, "outros têm caído, mas isto não ocorrerá comigo". E queda, "cair" no jargão, era o primeiro nome com que pensavam enganar a morte. Pero não só. Cair, antes de um verbo, era um substantivo, e um substantivo que chamava, exigia às ocultas uma horrenda qualificação. Cair podia ser morte de forma e modo cruel, sob torturas que aviltavam o corpo e o espírito. Em lugar de uma noite escura, de uma cela escura, de uma noite em que perderiam o fôlego, a consciência e o grito, em lugar da pele arrancada e das unhas extraídas a ferros, em lugar da delação e da mentira e da calúnia sobre companheiros para a posse fugaz de um segundo só de alívio, eles diziam "cair", para mais adiante dizerem, não aos demais, mas a si mesmos e somente, "outros caem, mas isto não ocorrerá comigo".

Seria interessante, mas não agora, neste momento, bem seria interessante um capítulo da adequação das palavras, do seu novo sentido, um estudo do léxico e da linguagem particular que os militantes clandestinos criavam, que criam, de criar e de crer. Havia uma adequação entre as suas identidades, falsas identidades de cartório, os seus nomes de guerra, com que passavam a viver como se fossem os seus nomes de verdade, havia uma coerência grande entre o que viviam e as palavras a que davam um outro acento e significado. Pois assim como Aurora se chamava Marina, pois assim como Jarbas se transformava em Torquato, Eremias em Fabiano, e Pauline em Sônia, "cair" tinha uma cara outra, que uma figura de linguagem chamaria de eufemismo, mas as figuras de linguagem são menores e mui mesquinhas para expressar o movimento que impunham a essa palavra, que significa a morte, a humilhação, a impotência, o ser posto fora de combate, o não ter direito sequer ao próprio corpo, ou num suave ocultar, o fim da vida útil, para não dizer a absoluta ausência. Em corpo, em alma. "Cair" era pronunciado de passagem como se fosse um estado passageiro, ou uma sentença de um tribunal que não admite recurso, a depender da forma e da ênfase. Dito rápido, cair era um alerta e um chamado urgente para a fuga, para a dispersão, pegar rápido a mala e sumir. O companheiro que caíra não podia agüentar mais que um dia de cacete. Isto se o caído fosse um militante duro. Cair, quando pronunciado grave, com olhos baixos, ou a olhar para outra direção, "caiu", era o mesmo que dizer, "morreu sob tortura infame um nosso irmão". No entanto, se "cair" fosse dito como um repórter que anuncia novas, poderia significar a queda e morte de militante de grupo rival, odiado, que por sua liberalidade, cujo significado era irresponsabilidade, recebera um castigo justo. Por isso quando cair se referia à própria pessoa, quando então cair se tornava mais que ameaça, um destino, para esse quadro de terror os militantes capturavam o significado de cair para os outros: "os liberais, os imprudentes, os irresponsáveis caem, mas este não é o meu caso". E em uma voz mais quieta, íntima, diziam-se: "Eu serei salvo no último segundo, quando tudo estiver perdido".

Esse era o lado comum, o previsível do presságio. Em um lado desconhecido, como se fosse uma terra oculta que se entrevê por flash ou por iluminação súbita de raios, Sol Barreto de Assunção previra o seu presságio em um sonho. Não há engano na frase, Sol Barreto de fato previra o seu presságio.



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