Mapa del sitio Portada Redacción Colabora Enlaces Buscador Correo
La insignia
10 de fevereiro de 2007


Revolução passiva e americanismo em Gramsci (I)


Luiz Werneck Vianna
Gramsci e o Brasil / La Insignia, fevereiro de 2007.


Não se vive mais o tempo das revoluções, e esta seria uma afirmação aparentemente consensual ao final deste milênio, depois de décadas em que a idéia de revolução acendeu o ânimo de gerações na esperança de uma sociedade mais justa. Mas a noção de tempo é definitivamente relativa, podendo-se constatar que uma fatia importante do mundo está conflagrada em conflitos revolucionários de natureza nacional-popular, em grande parte - como no Islã -, em nome da resistência de uma enraizada tradição religiosa e social ao projeto de secularização como fruto necessário da modernização.

Assim, no Oriente, no Leste europeu, às portas do Primeiro Mundo, vive-se, no cotidiano, a pesada lógica das revoluções, com suas crispações doutrinárias e promessas de utopia. Mas não somente lá, porque existem também manifestações revolucionárias no Peru, na Colômbia, na América Central, e mais essa surpreendente em Chiapas, no México. Além disso, desafia a prudência, o senso comum e a ciência, supor que certos cenários modernos e secularizados tenham se tornado imunes ao fenômeno da revolução, sempre uma hipótese onde e quando, como nas lições clássicas, a vida institucional não for capaz de expressar os conflitos em curso. A revolução persiste como um fato, embora não mais represente, na tradição iluminista que a instalou como momento necessário da luta pela igualdade, o fiat do desenvolvimento histórico.

Tendo estado presente no centro do mundo moderno, como na França da Comuna, na Alemanha dos espartaquistas, na Itália dos conselhos operários e na Rússia dos sovietes, com a conseqüente bolchevização da esquerda marxista européia, a revolução se faz expressão da periferia, da religião e das etnias subjugadas. O nacional-popular, em um mundo que unifica seus mercados por cima das fronteiras dos Estados-nacionais, deixa de ser uma forma expressiva de uma classe subalterna moderna - a classe operária -, para se instituir como o discurso e a prática de personagens da tradição.

A decadência heurística da revolução está francamente associada a fenômenos contemporâneos como globalização do mercado, deslocamento do Estado-nação do seu antigo monopólio na representação de identidades coletivas, assim como pelo efeito do "assemelhamento" universal - diagnóstico que já vinha da parte de Tocqueville -, e do esvaziamento da categoria trabalho como variável sociológica explicativa dos processos sociais.

Esse é um quadro que sugere a desqualificação da presença do ator no mundo, tido como um domínio do prático-inerte sartriano, reconhecendo-se somente o protagonismo dos "fatos". A revolução passiva, antes um processo referido a formações nacionais com precisa contextualização histórica, ter-se-ia convertido no único processo a ter vigência universal, comprometendo, por meio de automatismos inscritos no coração das instituições de reprodução social, a mudança com a conservação.

São essas as circunstâncias contemporâneas que põem sob nova luz os estudos gramscianos sobre o conceito e os processos de revolução passiva - histórias de "dialética sem síntese", na conhecida crítica de Gramsci a Croce. Muito particularmente no caso de realização do moderno pelo americanismo, em que Gramsci identificou uma aceleração das transformações moleculares, a partir de um vigoroso protagonismo dos "fatos". Em um mundo onde, apesar de continuar convivendo com as revoluções, não mais deseja se reconhecer nelas, o referencial analítico gramsciano para a interpretação da revolução passiva, bem como o "programa" de "guerra de posição" esboçado no seu tratamento do assunto, adquire uma atualidade geral, não dizendo mais respeito a casos singulares nacionais.

Aqui, apesar de ser este um subcontinente exemplar na imposição de processos dessa natureza [1], nunca faltou o ímpeto jacobino para rupturas revolucionárias - mais que uma ideologia, o guevarismo foi o estado de espírito de várias gerações da intelligentsia ibero-americana. A ruptura não veio, mas houve e está havendo a modernização capitalista e, em "ondas reformadoras sucessivas", se vem fortalecendo o processo de democratização que institui cada indivíduo dependente em um portador potencial de direitos à cidadania. Mas o "fato" da democratização ainda não encontrou, como também ocorreu no Risorgimento gramsciano, o ator que o interprete e lhe conceda expressão política, apresentando em seu nome uma reforma democrática do Estado e de suas instituições. O risco da dissociação entre ator e "fatos", por falta, naquele, de critérios para uma adequada avaliação da sua situação, está em que a revolução passiva se institua como um processo em que a mudança esteja sempre limitada pelos avatares da conservação, obrigando o mundo a uma permanente reiteração desencantada da ordem estabelecida [2]. Continuar a refletir sobre ela, em contextos, como o nosso, historicamente dominados por sua lógica, é uma forma de mobilizar o tipo de ação que venha a permitir a dinâmica da mudança ultrapassar a da conservação.


O problema da inovação gramsciana nos textos pré-Quaderni

Todo grande autor pode sugerir várias interpretações de sua obra, e não somente porque o tempo do seu leitor muda, como porque o tempo da sua elaboração necessariamente variou, ora mais próximo do campo cultural no qual iniciou a sua construção particular - sua fase "juvenil" -, ora já no preciso lugar onde se efetivou a sua identidade como pensador original, e Gramsci não se afasta disso em sua trajetória dos conselhos de Turim aos Quaderni da prisão. Como pensador político, o caso da singularidade de Gramsci é particular na medida em que a sua "ruptura" com o campo intelectual em que se formou - o da III Internacional Comunista -, não vai implicar a sua exclusão dele - ao contrário de Trotski e de Bukharin, dois relevantes teóricos do marxismo, que são dela expurgados como dirigentes "práticos" do movimento revolucionário. Tal ruptura, entrevista nos escritos de 1926, como em suas cartas a Togliatti sobre o problema da unidade do partido russo e em suas concepções táticas sobre a situação italiana sob o fascismo [3], toma forma logo em seguida a uma dramática descontinuidade nas circunstâncias da sua própria vida: de líder da resistência ao fascismo passa à condição de seu prisioneiro. É a prisão que, ao separá-lo da sua prática, o leva a desenvolver uma vocação teórica, antes contida, embora manifesta, nos seus trabalhos anteriores, cuja natureza potencialmente diruptiva quanto ao marxismo jurisdicionado pela Internacional sob a liderança de Stalin será, em um paradoxo, "protegida" pelo seu isolamento no cárcere - Gramsci vai morrer como um membro heróico da III Internacional.

A elaboração dos Quaderni del carcere, que começa a redigir, em fevereiro de 1929, com a intenção de realizar obra duradoura, com a qual o autor pretendia triunfar sobre o isolamento e o silêncio a que tinha sido reduzido pela prisão, vai lhe permitir o desenvolvimento de temas antes embrionários no seu pensamento - como o dos intelectuais - e, sobretudo, vai lhe conceder a oportunidade de "revisitação" das questões que tinham dominado a sua prática de publicista e de dirigente revolucionário. Em seu caso, mais do que a clássica oposição entre fases juvenil e de maturidade, deve-se falar no que há de radical em sua separação, acarretada pela prisão, do "laboratório" vivo em que antes atuava. O que distingue, pois, um Gramsci de outro não teria resultado de mais um ato ou de mais uma experiência no interior daquilo que foi o seu "laboratório", mas da sua suspensão em relação a ele, quando, então, o que fora trabalho vivo veio a se organizar em reflexão. Nos Quaderni, em condições bem mais desafortunadas, Gramsci reitera o caso de Maquiavel.

Nesse sentido, os Quaderni passam a limpo, sob o registro de uma reflexão nova, o que teria sido o rascunho da atividade anterior, reorganizada e aprofundada por meio de uma pesquisa "desinteressada", nas palavras de V. Gerratana, de uma incidência prática imediata [4]. Sob o crivo da pesquisa "desinteressada", o material da experiência acumulada vai assumir uma nova projeção - a reflexão domina a experiência e o Gramsci da ortodoxia bolchevique das Teses de Lyon, de 1926, escritas em parceria com Togliatti, começa a processar um pensamento novo, certamente que assistemático e inconcluso em momentos importantes, reinterpretando seus próprios temas a partir de chaves de análises que não mais eram aquelas do seu tempo de experiência direta com os "seus" objetos. Assim com o tema da fábrica, que lhe acompanha desde a militância revolucionária da fase "conselhista" da sua juventude em Turim, com a ênfase soreliana de então na reforma ético-moral e na centralidade do mundo da produção, motivo comum na intelligentsia marxista européia dos anos 20, tema reconsiderado, na fase da bolchevização, como o lugar privilegiado de onde devia partir a aliança operário-camponesa a fim de realizar uma revolução de tipo nacional-popular, e que vai aparecer nos Quaderni, em uma reatualização imprevista de posições assumidas em L'Ordine Nuovo, sob a perspectiva da racionalização fordista, com o que entreabre enigmaticamente novas oportunidades para o agir e para a reflexão sobre as condições de transição ao socialismo [5].

A ruptura do seu presente com aquilo que foi a sua experiência é, nele, um fato a um tempo político, intelectual e psicológico - "parece-me que a cada dia se rompe um novo fio dos meus vínculos com o mundo do passado" [6]. Seu afastamento da atuação prática e da família, provocando a volta do antigo mal-estar de viver a vida fundamentalmente como manifestação de vontade [7], é ainda qualificado pelos novos acontecimentos depois de sua prisão: consolidação do regime fascista na Itália, refluxo do movimento operário e democrático europeu, o advento do nazismo na Alemanha, o triunfo do stalinismo e os expurgos dos dissidentes na URSS. Revisitar o passado, nesse contexto, não pode significar sistematizar o já vivido - de que os sucessos presentes consistem em uma poderosa e reconhecida crítica -, mas pô-lo sob uma nova luz. Os Quaderni são obra nova, decerto que elaborada a partir da matéria-prima dos trabalhos anteriores e de sua experiência prática de militante revolucionário, mas, longe de significar a sua conclusão linear, apontam para a direção oposta da descontinuidade [8].

A questão dos intelectuais pode ser considerada como exemplar disso - fracamente presente na fase obreirista dos "conselhos", tratada de modo convencional nos anos da bolchevização da esquerda italiana, somente será introduzida, como conceito estratégico para o seu modelo de análise, em A questão meridional, de 1926, poucos meses antes de sua prisão. Para a teoria marxista da época, que resumia o tema dos intelectuais à elaboração da consciência "externa" ao movimento operário e que com ele se deveria fundir, segundo a clássica interpretação de Kautsky divulgada por Lenin, trazer a primeiro plano esse estrato social importava uma inovação efetiva. Contudo, a novidade do tratamento sobre a questão dos intelectuais em A questão meridional ainda é prisioneira do enquadramento da situação italiana produzido pelas Teses de Lyon - os dois textos são de 1926, ano da prisão de Gramsci -, em que se assemelha a Itália ao caso russo - "o proletariado possui, na Itália, uma importância superior a de outros países europeus, inclusive entre os países de capitalismo avançado, e seu papel somente é comparável àquele que desempenhava na Rússia de antes da revolução" -, país periférico que constituiria mais uma

[...] confirmação da tese de que as condições favoráveis para a revolução proletária não se encontram necessariamente nos países em que o capitalismo atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento, e sim onde o tecido do capitalismo oferece menor resistência, por suas fraquezas estruturais, às lutas da classe revolucionária e dos seus aliados (Gramsci, 1990a, p. 230) [9].

Disso decorre que a questão dos intelectuais, com tudo que contém de potencialmente novo - inclusive, como observou L. Paggi, porque anuncia que "o papel da subjetividade, invocado anteriormente como fator determinante na aceleração do processo histórico, é agora visto como o lugar mais importante para a sustentação das velhas estruturas de poder" (Paggi, 1984, p. IX) -, nasce em um terreno diverso daquele que será o seu nos Quaderni: em primeiro lugar, porque o diagnóstico sobre as relações Norte-Sul na Itália, investigado sob uma perspectiva empírica nA questão meridional, é o das Teses de Lyon, com seu enquadramento "russo", alinhando a situação italiana a um Oriente político; em segundo, porque o cenário que inscreve o intelectual em A questão meridional é o do mundo agrário, selecionado sob a precisa motivação de conceber uma aliança operário-camponesa para atuar no contexto de um Estado que se supõe vulnerável à revolução proletária. Nos Quaderni, porém, se vai estar diante de outra "geografia", claramente dominante a articulação de tipo ocidental entre sociedade civil e sociedade política.

Os intelectuais, e com eles o tema da cultura e do papel da subjetividade na "sustentação das velhas estruturas de poder", estão referidos ao paradigma do atraso, mas de uma forma tal que a análise do "poder local" da vida agrária italiana, na fina sociologia gramsciana, já contém uma concepção que antagoniza os fundamentos do cânon da III Internacional sobre a solução do problema operário-camponês. A questão meridional, como é conhecido, se inicia com uma avaliação da política agrária dos comunistas de Turim, a qual sofrera objeção por parte de um artigo da revista Quarto Stato, de inspiração liberal-socialista. Publicada em setembro de 1926, a revista acusou os comunistas turineses de procurar encaminhar a questão camponesa por meio de uma "fórmula mágica" que se limitaria à divisão do latifúndio entre os proletários rurais [10]. Contra essa afirmação, Gramsci recorda um posicionamento antigo de L'Ordine Nuovo, do começo de 1920, em que se sustenta o oposto:

[...] não há que buscar a regeneração econômica e política dos camponeses em uma divisão das terras incultas ou mal cultivadas, e sim na sua solidarização com o proletariado industrial, para o qual é necessário, por sua vez, a solidariedade dos camponeses, pois é de seu 'interesse' que o capitalismo não renasça economicamente da propriedade territorial e que a Itália meridional e as ilhas não se convertam em uma base militar da contra-revolução capitalista (Gramsci, 1990b, p. 305).

No texto, Gramsci reconhece o "envelhecimento" dessa posição, negando, contudo, que os comunistas de Turim se tenham limitado a uma política redistributiva, sendo deles a indagação: "o que pode ganhar um camponês pobre com a invasão de terras incultas ou mal cultivadas?" Mas é no diagnóstico do "envelhecimento" que se verifica a torção surpreendente quanto ao argumento tradicional: no cerne da questão camponesa o interesse não seria a matriz dominante, e sim a da cultura, porque, na Itália, em razão da sua singularidade histórica, a questão da propriedade da terra transcenderia a uma "questão camponesa e agrária em geral" (Id., p. 307).

Sem a mediação da cultura, o campesinato seria inacessível ao proletariado industrial. No entanto, a inovação gramsciana se produz e deveria operar no contexto de uma Itália assemelhada ao caso russo, ainda na perspectiva conceitual do tipo de "elo mais fraco" e vantagens do atraso. A inovação não procede, pois, do campo da teoria, e ainda não procura extrair conseqüências nesse terreno, mas se origina de uma inquirição empírica que visa enriquecer uma sociologia política das relações agrárias no Mezzogiorno. A percepção de que cultura consistiria uma variável estratégica, embora tensione o desenvolvimento da argumentação em A questão meridional, não chega a postular que a complexidade dos vínculos, no caso italiano, entre sociedade civil e sociedade política, demandaria o deslocamento da perspectiva do Oriente para o Ocidente. O novo se introduz em Gramsci a partir da sua busca de particularização da linha geral: sem que se domine a questão meridional e a do Vaticano, que singularizam historicamente o campesinato italiano, qualquer postulação de hegemonia do proletariado do Norte sobre o campesinato do Sul consistiria em uma estratégia abstrata e vazia de conteúdo (Id.).

Sob a influência da bolchevização, são deixados para trás os temas e os cenários da época do "conselhismo" e da fase de L'Ordine Nuovo, que, pela lógica da sua própria temática - a centralidade da classe operária e do mundo da produção - importavam um repertório conceitual inequivocamente ocidental, com suas fábricas, bairros operários, sindicatos e mobilizações de rua. O modelo da revolução de tipo nacional-popular, sob a liderança de uma aliança operário-camponesa, como correspondente italiano da fórmula russa de 1917 de revolução democrático-burguesa, sem dúvida que aproximou a política dos comunistas da realidade efetiva do seu Estado e da configuração da sua estrutura de classes, abandonando-se o radicalismo obreirista e a indiferença à política de antes (Spriano, 1967, Livro I, p. 28). Contudo, a inscrição do capitalismo italiano como periférico, e o seu assemelhamento ao caso russo [11], mais que nos temas, importava de fato mudança na geografia política: a Itália confinava com o Oriente. O cenário ocidental, que foi o de L'Ordine Nuovo, terá de esperar os Quaderni.

Para Gramsci, porém, como demonstrou em A questão meridional, a aliança operário-camponesa não consistia em um ponto abstrato de doutrina, mas um princípio para a ação. Encaminhá-la, dependia de um estudo concreto do tema camponês, que, por sua vez, remetia a uma questão nacional - "as populações trabalhadoras do Mezzogiorno [se encontram] em uma posição análoga à das populações coloniais" (Gramsci, 1990a, p. 230) -, em que a pesquisa da singularidade do caso italiano vai acabar por produzir a acumulação de novos conceitos e problemas que não mais se ajustarão ao paradigma do "elo mais fraco". Em Gramsci, e isto ainda não foi demonstrado amplamente, há uma vigorosa sociologia, como no caso de A questão meridional, e serão suas descobertas nesse campo uma das responsáveis pelo seu desconforto diante de muitas das teses do marxismo oficial à sua época.

A caracterização do Estado italiano nas Teses de Lyon - momento teórico da fase da bolchevização [12] - ainda segue irradiando sua influência sobre A questão meridional, tentativa de particularização da linha geral, e não uma proposta alternativa às Teses. Em Lyon, fixou-se como ponto de partida a constatação de que não existiria, na Itália, a "tradicional luta econômica entre industriais e agrários" (Gramsci, 1990a, p. 228), questão que, com maiores ambições teóricas, dominará a reflexão sobre o Risorgimento nos estudos dos Quaderni. Os interesses modernos da indústria estariam solidarizados com os setores dominantes do mundo agrário, em geral de extração nobiliárquica e parasitária, resultando dessa composição um Estado não-homólogo ao empresariado industrial - "assim como não controla, por sua natureza, toda a economia, a classe industrial também não consegue organizar, por si só, a sociedade global e o Estado" (Id., p. 229).

A forma do Estado seria derivada de uma solução de compromisso entre as elites industriais e agrárias, cada uma ocupando uma base territorial própria - as industriais, o norte; as agrárias, o sul. O domínio burguês não estaria dotado de capacidade de universalização, fusão de particularismos, faltando-lhe um "caráter unitário e uma função unitária" (Id., p. 230). O capitalismo italiano, força determinante na sociedade, estaria assentado sobre uma arquitetura superestrutural desequilibrada, nisso que seria a expressão da sua monstruosa deformidade, ao solidarizar, sob um único sistema de dominação, o norte industrial ao sul agrário e retardatário, em que o primeiro desempenharia o papel de metrópole capitalista em relação ao segundo, ao mesmo tempo em que, no interior deste, suas elites, como nas relações coloniais, "se aliam à metrópole para manter submetida a massa do povo trabalhador" (Id., ib.).

Este o ponto a ser retomado de modo inovador em A questão meridional: o que há de disforme no capitalismo italiano implica a valorização de uma perspectiva que não se limite ao ângulo do interesse e da exploração econômica nas relações entre as classes, sem o que a sua singularidade não se torna apreensível conceitualmente nem permite descortinar rumos para uma ação efetivamente transformadora. O problema do Mezzogiorno é também - em um certo sentido, sobretudo - superestrutural, na medida em que teria suas origens na forma do Estado e no tipo de opressão política exercida por ele, ininteligível, nas condições italianas, sem a análise da questão dos intelectuais e da cultura.

A natureza compósita do Estado, raiz do específico autoritarismo político italiano, diziam as Teses de Lyon, emprestaria a essa instituição um caráter vulnerável - tema "russo" do elo mais fraco, "das forças estatais menos eficientes", da vantagem do atraso -, credenciando a Itália com condições favoráveis à revolução, a ser buscada por uma classe operária numerosa e influente, "único elemento que, por sua própria natureza, exerce uma função unificadora e coordenadora da sociedade como um todo" (Id., ib.).

Mas "assemelhamento" não é identidade, como Gramsci deixa claro em texto dos primeiros dias de agosto - coincidente, pois, com a elaboração de A questão meridional -, apresentado à direção do Partido Comunista Italiano - PCI. O fato de que, em "estados periféricos típicos, como Itália, Polônia, Espanha e Portugal as forças estatais são menos eficientes", não apontaria para o contexto clássico de separação entre sociedade política e sociedade civil, tal como no caso russo (Gramsci, 1990c, p. 286). Ao contrário da Rússia,

[...] nesses países, entre o proletariado e o capitalismo existe e atua um amplo estrato de classes intermediárias que desejam e, em certa medida, conseguem, conduzir uma política própria, com ideologias que, em não poucas vezes, exercem influência sobre vastos estratos do proletariado, e que têm uma particular capacidade de atração sobre as massas camponesas" (Id., ib.).

Tal particularidade, deixaria a periferia européia do capitalismo sob uma dupla lógica: "russa", pela perspectiva do "elo mais fraco" e da "vantagem do atraso"; e especificamente européia, uma vez que os setores subalternos, principalmente no campo, por meio da mediação de estratos intermediários, mantinham vínculos político-sociais com as classes dominantes, estando sob a sua influência, interditando ao proletariado um acesso direto ao campesinato. A "menor eficiência" da armação do Estado, seria, então, compensada por essa "sociologia", atenuando o impacto das crises do capitalismo. Assim, aquilo que valeria "especialmente para os estados capitalistas mais importantes", em que "o aparelho estatal é muito mais resistente do que, em geral, se supõe e consegue organizar, nos momentos de crise, forças fiéis ao regime, e em uma proporção bem superior ao que se poderia supor diante da profundidade da crise" (Id., ib.), também deveria, embora em grau menor, ser entendido como eficaz em sua periferia.

Para se usar as metáforas dos Quaderni, a "guerra de posição" ainda não é concebida como via alternativa à "guerra de movimento", e sim como um momento da "preparação técnica e política da revolução" em países, como a Itália, que se encontrariam em uma "fase intermediária, em que uma determinada forma de organização técnica pode acelerar a organização política das massas e acelerar, em conseqüência, o trânsito para a fase decisiva da conquista do poder" (Id., ib.). A Itália, a partir de 1923, quando se teria revigorado, no interior das classes médias, o processo de transformações moleculares, levando-as ao alinhamento com a esquerda, seria um indicador "clássico e exemplar" desse movimento, que igualmente se manifestaria na Espanha, em Portugal, na Polônia e nos Balcãs (Id., p. 287).

Tratava-se, pois, de confirmar o deslocamento político e social das "classes intermediárias", tornando, afinal, possível a exposição do campesinato ao proletariado industrial, momento que deveria anunciar o primado da "preparação técnica" da revolução. Ainda segundo as metáforas dos Quaderni: devia-se chegar ao Oriente pelo Ocidente, em que o assalto à máquina do Estado fosse precedido de uma lenta erosão do bloco histórico agrário, cujo cimento seriam os intelectuais. Para tanto, era necessária uma orientação que privilegiasse o superestrutural sobre o infra-estrutural, e que viesse a conceder prioridade estratégica à questão da dominação cultural, confirmando-se o leninismo no mesmo movimento em que se o inovava.

É, pois, no terreno clássico da revolução como fenômeno do atraso, que a inovação gramsciana rompe caminho, descobrindo-se, aí, e não no norte industrial e moderno, com suas universidades e sua rica imprensa, a significação política dos intelectuais. Importa que "um ou mais intelectuais, individualmente, venham aderir" ao programa e à doutrina do proletariado, mas, sobretudo,

[...] que se produza uma fratura de caráter orgânico [entre eles], historicamente caracterizada; que se crie, como formação de massas, uma tendência de esquerda no sentido moderno da palavra, isto é, orientada em direção ao proletariado revolucionário. A aliança do proletariado com as massas camponesas exige essa formação, ainda mais necessária para a aliança do proletariado com as massas camponesas do sul. O proletariado destruirá o bloco agrário meridional na medida em que consiga, por meio do seu partido, organizar massas cada vez maiores de camponeses pobres em formações autônomas e independentes; mas somente conseguirá cumprir essa tarefa se for capaz, entre outras coisas, de desagregar o bloco intelectual que é a armadura flexível, mas muito resistente, do bloco agrário (Gramsci, 1990b, p. 326).

O Mezzogiorno se constituiria na peça de sustentação da "monstruosa deformidade" do Estado italiano, com 3/5 da sua burocracia estatal ocupada por meridionais. Ele é, para Gramsci, como a questão do Vaticano foi para Maquiavel, a pedra de toque para uma solução "unitária", nacional e popular, que conceda à Itália o acesso ao moderno, deixando de ser um país de capitalismo periférico. O compromisso entre o norte industrial e o bloco agrário do sul gerara um Estado imobilizado em soluções particularistas, impondo a emergência revolucionária de um universal por meio da aliança operário-camponesa. Gramsci, em 1926, ainda não sabe que a sua descoberta, ao explorar a sociologia política do Mezzogiorno, em vez de estar destinada a abrir caminho para uma revolução do tipo de "elo mais fraco" singular, referida às especificidades do mundo agrário italiano, na verdade, vai estar na raiz de um novo modelo para a atuação da esquerda nos países de grandes "reservas políticas e organizativas".



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción | Proyecto