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La insignia
28 de janeiro de 2006


O cidadão Givaldo Gualberto


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, janeiro de 2006.


Givaldo Gualberto da Silva possui cerca de um metro e setenta de altura, que ele sempre corrige para algo em torno de um metro e setenta e seis, setenta e sete, setenta e oito, sem jamais atingir a marca de um e oitenta, pois ele bem sabe que nas boas mentiras não se deve exagerar muito. Numa idade em que o homem fica mais cordato, flexível, ponderado, ele não sofreu ainda transformações fundamentais, porque das suas várias faces modernas, queremos dizer, devemos dizer, recentes, ele ainda não vestiu a cara de conciliador, a doce feição dos que ultrapassam a idade de sessenta e quatro anos. "Sessenta e cinco. Incompletos", ele nos responde, em voz baixa, completa. Sessenta e cinco só em abril. "E nós estamos em janeiro, no começo do ano", acrescenta, como um alerta para o largo espaço de tempo que reside em três longos meses. Mas percebam, mirem como é complexa a pessoa humana. Se o senhor Givaldo Gualberto da Silva não é assim tão preciso em relação à própria imagem física, e nisso não podemos acusá-lo de usar de mentira, porque em relação à nossa imagem, a dos malditos espelhos, jamais possuímos um olhar objetivo, ele consegue no entanto ser muito preciso, diríamos, cruel e exato e de uma franqueza de pôr abaixo as mais elementares lições de etiqueta em outras situações. E é justamente aqui onde está a sua melhor natureza, de homem, cidadão, simpático para a maioria, antipático para as vítimas de ocasião. Por exemplo. Por exemplos, devemos dizer.

Sem, até onde sabemos, haver traído a confiança de quem quer que seja, ele é muito fiel, profundamente fiel, às mulheres dos amigos. Com mostras e exibições desse amor pela mulher do próximo aos próprios maridos. Do que não é capaz a ética humana.... Em uma dessas mostras de rigoroso senso moral e de absoluta falta de, digamos, trato para com a presença do esposo, Givaldo se encontrava uma vez na casa do economista Reginaldo Muniz. Era um bom fim de semana. Ora, quiseram as circunstâncias da agenda, por todos sabida, que Reginaldo não se encontrasse em casa naquele agradável domingo. Estaria em Salvador em algum congresso de resoluções revolucionárias, que mudariam a face do nordeste brasileiro. Vera, a esposa de Reginaldo, estava em casa, por supuesto. Então eis que, entre um disco de Chico e outro, entre uma cerveja e outra, entre revelações e queixas contra o mundo, alguém chama à porta, repetidas vezes. Givaldo vai saber quem é o intruso, a tocar a campa às 4 horas da tarde de um domingo. Abre a porta. O intruso é Reginaldo Muniz em pessoa. Que para surpresa de um e espanto de outro é assim recebido:

- De volta, tão cedo?! O que foi que houve? Você não era esperado agora.

E Reginaldo:

- O amigo dá licença? O amigo permite que eu entre em minha casa?

Reginaldo pôde entrar, porque não havia mesmo outro remédio. Em outra situação, o marido passou por pior. Isto aconteceu com Téo, que era casado com Lília, que era amiga de Givaldo antes de ser esposa de Téo. Amizade antiga, portanto, o que talvez explique o que se segue. Ora. É comum em casas e casais a existência de dias em que um conflito entre marido e mulher é um pouco mais pesado e nada pequeno. Isso é comum. O raro é que em um dia assim esteja presente um amigo comum, a passar um fim de semana entre o marido e a mulher. Dissemos entre e não usamos a preposição por acaso. Pois nesse conflito, Givaldo se encontrava entre duas opções: de um lado, Lília, a sua primeira amiga, de outro, Téo, o novo amigo, mas, que diabo, naquela altura também o provedor da casa, o mantenedor de todas as despesas. (Ao ler estas linhas, ele, o nosso amigo inesquecível, deve resmungar, "Mentiroso de uma figa. Por que não diz qual era o conflito?"). Pois bem, como dizíamos antes da interrupção dos parênteses, mas ainda assim respondemos, o que importa é saber que a resolução do conflito entre marido e mulher foi relatada tempos depois, nas palavras de Téo:

- Na minha casa, Givaldo sentava-se à minha mesa com raiva de mim. Ele só falava com Lilia.

Em favor do nosso amigo poderia ser dito que em um mundo ideal, em uma terra de socialistas de fato, não se presta reverência ao dono da casa, ao homem que paga a comida e a bebida. Isso é mera circunstância. Em um mundo ideal. Mas enquanto os mundos ideais não vêm, temos que viver neste mundo. Que é duro e ruim e seco e absurdo como o inferno. Daí que temos, aqui e ali, de preenchê-lo com a satisfação dos nossos desejos em um plano de hipóteses. Isso que acabo de dizer nada tem a ver com Givaldo Gualberto, o verdadeiro latin lover do Recife na década de 70. A saber.

Conta-nos ele, até hoje, uma aventura inolvidável. Em uma tarde chuvosa, de muita água e ventos, temporais fortes, como ocorre no Recife em alguns invernos, eis que estava o nosso amigo sozinho em sua livraria, sim, porque nessa época ele era dono de uma livraria pequena, alternativa à maior livraria do Brasil, a Livro 7... Pois bem. Grande conhecedor de livros e de mulheres, de livros é verdade, sem dúvida, eis que os olhos de Givaldo são despertados por uma jovem magrinha, franzina, que treme de frio, pois sabemos todos que mulheres sentem muito frio em temperaturas abaixo de 20 graus. (Esses dados reais, na sua narrativa, são o mais arrepiante.) Pois não é que a jovem possuía uma organização física e de roupas e utensílios de outras terras? Era magrinha, de formas harmônicas (o que na imaginação de cada um isto quiser dizer), delicada, o que vale dizer, o avesso e o contrário dos traços duros do senhor Givaldo Gualberto, de voz quente e vocabulário estranho. Seria uma deusa de outro planeta? nós na época perguntávamos. Não, respondeu Givaldo há pouco, no fim de 2006. Não, ó grosseiros, sem espírito, ela era a essência da feminilidade - corpo mignon, rosto grego, e ... os brutos não querem mais saber. Adiante, adiante. Sim, pois então se dá o seguinte diálogo. Dir-se-ia melhor, a seguinte anunciação:

- Você tem no acervo a Filosofia da História?
- A Introdução?
- Sim, isso.

Não havia nem haveria melhor introdução. Nem houve, segundo suas palavra, àquela altura. Porque da Introdução à Filosofia da História, um tema ótimo para se discutir em uma tarde de sábado, enquanto reinam os fenômenos meteorológicos lá fora, passou-se à compreensão da topografia especial do litoral pernambucano. De modo bem próprio, porque a senhorita era paulistana, e se encantava a cada informação do senhor livreiro Givaldo Gualberto. Ora, ele não é de contar vantagem, ele, como pernambucano de Caruaru, jamais receberia o depreciativo de papudo, porque jamais andara por terras gaúchas, mas o fato é que na sua narração, ao contar as, entendam, as preliminares, de passagem nos insinua que se viu tomado pelo fenômeno do espírito. Um calor de imaginação extraordinário, uma verve, uma qualidade quase espírita que o fazia inspirado a discorrer dos incunábulos à geografia, história e céus e tempestades do Recife. Enquanto chovia lá fora, ploc, ploc, ploc, pingos pesados sem dó nem piedade, a história e as aproximações da história se processavam. Frio, frio, arrepios. Em sua narração, sobre o Recife caíam cubos de gelo como caem em nossos copos de uísque hoje. Com melhor sabor, sem dúvida, porque no resumo da ópera:

- Foram 29 vezes. Em menos de 6 horas.

Ora. Assim como não entendemos nem alcançamos as distâncias em anos-luz das estrelas, assim também não entendemos semelhante aventura inolvidável. Até hoje não conseguimos entender. 29 completas cópulas do senhor Givaldo Gualberto em menos de 6 horas de vamor. Entendam, não houve erro na palavra, pois queremos apenas dizer, "vamos, amor". O fenômeno humano deve ser mesmo infinitamente mais alto que a mais elementar racionalidade. A nossas tentativas de melhor compreensão, como:

- Givaldo, conte-nos isto melhor. O que você quer mesmo dizer com 29?

Ele nos respondia:

- 29. Não sabe contar?
- Sim, mas ...

Então ele, numa rara penetração da inteligência de Caruaru, nos respondia com uma resposta irrespondível:

- Não fui eu. Foi ela. Eu nunca vi uma mulher como aquela. Deve ser a mistura de São Paulo com Pernambuco. E depois, chovia muito.

Ora. É natural que depois de tal feito, todo guerreiro merece um retorno em paz a Ítaca. Sem sereias e sem duelos terríveis a disputar Penélope. É natural. Givaldo Gualberto, esse cidadão implacável dos erros de militantes de esquerda, é também um homem que reconhece e defende o valor dos socialistas na adversidade. Dir-se-ia dele que o atravessa uma ética que não pergunta antes qual a filiação e cor e gradação política de um homem. Defende-o a partir dos fatos. Professor de História, diretor de escola, ele, quando não maldiz o mundo com a sua justa raiva, é capaz de comentários que são uma autocrítica de um passado sectário:

- De cabelos pintados, Givaldo? perguntamos na última vez em que o vimos.
- É claro. Eu pensava, quando era mais jovem, que pintava cabelo quem era marica. Agora eu mudei.
- De cabelo?
- Claro, de cabelo. Só de cabelo, meu amigo.

E depois de uma pausa, como uma ressurreição do velho Givaldo, que nunca morre:

- Só de cabelo. E eu sou tu?

Para nos contradizer, enviou-nos uma foto antes dos cabelos pintados. Tanto melhor. É o nosso velho Giba, para a posteridade.



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