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16 de outubro del 2006 |
Urariano Mota
Em 15 de outubro comemora-se o dia do professor no Brasil. Para sorte ruim dos mestres, quis o calendário que neste 2006 o dia caísse no domingo. Hoje, portanto, não haverá bolos, salgadinhos, refrigerantes, discursos dos alunos sobre a importância dos professores, discursos dos diretores das escolas sobre o "incansável sacerdócio". Discursos de tédio interminável, que se repetem todos os anos, em todas as turmas e classes, em quase todos os colégios do Brasil. A coisa vista por esse lado, talvez os mestres agradeçam a Deus o 15 de outubro ter caído no domingo.
Lembro, por exemplo, de um dia dos professores em que escolhemos a professora Rosa como símbolo. Mestra de desenho e de artes plásticas, Rosa era magra, alta, suave, um coração de mulher que todas as pessoas, meninos, meninas, homens, mulheres, gostariam de sempre ter a seu lado. Para minha sorte ruim o escolhido para escrever o discurso fui eu. E, primeira lição, que só agora reflito: um adulto não pode pensar que tem estilo, um adulto não pode pensar que tem o domínio de um assunto. Mas um adolescente, não, é um adolescente. Por isso naquele dia dos professores pensei um discurso cômico, pois muito à vontade me sentia, um discurso em que utilizasse trocadilhos, inversões de sentidos, extrapolações e reduções de significados, metáforas, sinédoques e metonímias todas geradas pela palavra rosa. Antes soubesse o latim com suas declinações para rosa, teria sido melhor. Sim, e como todo artista que esconde a sua arte, a nenhum amigo mostrei a prosa onde havia usado as melhores energias dos meus 15 anos. Para resumo do parágrafo, fui, li, venci, de uma inesperada maneira. Ao fim dos meus irresistíveis trocadilhos e inversões, a professora Rosa caiu em pranto, em lágrimas copiosas, emocionada, ferida no coração, enquanto a turma inteira prorrompia em aplausos. Comovidos. Não sei com que cara eu agradeci, mas ela devia ser a dos palhaços de um circo do absurdo. Daí que, escolado a esta altura, procurarei não falar do professor Arlindo com pretensões a fazer rir. Nem de fazer chorar, que é para não receber mensagens de felicitações pelo que eu não buscava. Falarei apenas para lembrar de passagem um professor, no último domingo. O velho Arlindo, como ainda o chamamos, sem a percepção de que temos hoje a mesma idade que o velho possuía quando éramos adolescentes, o professor Arlindo Albuquerque era um homem de estatura baixa, quase obeso, atleta dos prazeres da boa mesa, e prenhe no ventre e no espírito do amor pelo conhecimento. De ânimo sempre alto, quase até o delírio, era como se o cotidiano para ele fosse uma continuação imediata, sem transição, dos seus ideais. Daí que ele chegasse a ser esquisito, daí que ele fosse tomado quase como um lunático, acreditem os que não o viram, até mesmo pelo círculo mais íntimo, familiar. A sua esposa nos contava, quando aos domingos íamos à sua casa para almoçar, para comer e beber alimentos e lições, que o professor subia nos ônibus a cantarolar a Marselhesa, não em voz baixa, mas, esquecido de si, em voz alta, com um sorriso nos lábios, a cumprimentar, a dividir com as pessoas do povo o hino da revolução. Mal satisfeito do alheamento, nessa outra forma de alienação que é a de não estar estúpido como todos em volta, certa vez ele "socializou" os bagos de um pedaço de jaca com que se deliciava um menino miserável. Alertado pela mulher, apressou-se a pagar a injusta desapropriação. Com pedidos de desculpa e de permissão para comer mais. - Que maravilha é a sua jaca, meu filho. Que cheiro, que sabor! Vamos, você me vende mais um pouco? Esquecido de si, algumas alunas diziam que o professor às vezes se encontrava, quando ao dissertar sobre um autor fundamental, um samba, um músico, um poema, encoberto por uma bata azul, o que lhe dava um ar de erudito nos trópicos, punha-se a remexer e a coçar os testículos, o escroto, perdido no enlevo. - "Aquele aperto de mão não foi adeus. A nossa separação não convenceu...". Notem a letra deste samba. Como é lindo. Percebam... (E os dedos iam e vinham no alumbramento.) É sintomático como os nossos olhos vêem num ser aquilo que é conforme a nossa natureza. Entre as alunas que de alguma forma foram atingidas pelo calor do seu espírito, o professor não é lembrado por esse livre costume, que distraído exibia em público. Juçara, de beleza morena, com seu porte de mocinha índia, se viva estivesse, dele evocaria o professor que a chamava de "a pequenininha". Conceição, Nazirdes, do Carmo, onde estiverem no Brasil, dele falarão como o mestre que as saudava a partir das leituras que em pé faziam em voz alta. "Grande, Magnífico", ele lhes dizia. Até mesmo Solange, a perdição de sensualidade, ou mais precisamente de coxas, que ela prodigalizava naqueles carentes anos, dele afirmará que era um mestre incorruptível, pior que Robespierre: - Dona Solange, sente-se direito! Isto não são modos. Nós, os meninos, dele podemos dizer que ele era aquele mestre que só podiamos acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos. Por mim, posso dizer que ele me deu um conselho fundamental, que às vezes consigo cumprir: "Seja mais pessoal", ele escreveu à margem de um texto em que eu imitava o tom precioso de José de Alencar. Que coisa mais feia, ele poderia dizer, de onde você copiou isto, menino?, poderia perguntar. Mas foi mais longe que um reparo, um conserto, uma censura ocasional - passou um ideal de criação: "Seja pessoal", escreva conforme a sua experiência e índole, menino. A outro, ele pediu que o acompanhasse até a sala dos professores. E lá, diante do nosso amigo intimado, com medo de uma reprimenda, de um castigo, o mestre pediu com humildade: - Por favor, não me faça mais perguntas difíceis. Você me pergunta coisas que vão além da minha capacidade. Eu sou apenas um professor, compreenda. Mentira! Ele era apenas essa coisa rara, um professor de radical honestidade. Porque ele poderia com duas ou três citações destruir qualquer impertinência, mencionar autores sobre os quais nem sonhávamos, mandar-nos de volta para o lugar de estudantes pobres em começo de formação intelectual. Ou mesmo brandir ameaças de notas em provas de perseguição, como os professores medíocres executavam e executam, aprisionavam e aprisionam o espírito de um aluno mais rebelde. Em lugar disso, ele nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau. Acreditam nisso, meninos pobres em uma escola pública a ouvir o mestre em voz alta nos contar sobre o prazer de andar a pé? "Je n'ai pas besoin de choisir des chemins tout faits, des routes commodes; je passe partout où un homme peut passer; je vois tout ce qu'un homme peut voir; et, ne dépendant que de moi-même, je jouis de toute la liberté dont un homme peut jouir". ( E a partir disso, ele ia além de Rousseau - partia para, em bom português, falar do prazer imenso que era o alívio, do ato que vem ao fim de uma agonia, quando alguém descobre um lugar ermo e secreto para melhor defecar.) Depois voltava para o livro de Marcel Debrot, Le français au gymnase. Com freqüência, muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler esse gozo, "Sur la liberté de la conscience". Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 havia sido espancado, preso, porque fazia parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de Marcel Debrot vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase, dizemos e percebemos agora, que o mestre nos fazia ler "Sobre a liberdade da consciência". - Vejam a beleza. Repitam essa frase. O título é uma coisa extraordinária - silabava em ritmo lento - sobre a liberdade da consciência. E líamos, e passávamos pela Revolução Francesa, "Le peuple, que se croyait de plus em plus trahi, se porta em masse à l'Hotel des Invalides".... Essas coisas agora retornam como uma canção, como se fossem música, ainda que do francês mal consigamos conjugar os verbos Avoir e Être. Agora mesmo sou capaz de recordar as primeiras linhas de um texto cujo título era Ma Mère, que assim começava "Pose tes mains fraïches sur mes tempes. Là, oui, quel repos! Il me semble revivre les temps...". Eu lia essa frase e olhava para os lados, para não me flagrarem, porque envergonhado eu me encontrava diante do abalo desconcertante que me invadia. Pose tes mains fraïches sur mes tempes. Là, oui, quel repos! E no entanto, acreditem, pois exibição de ignorância sempre é verdadeira: do francês consigo apenas soletrar os verbos Avoir e Être no presente do indicativo. Com imensa dificuldade. Esse parco francês a gente lembra porque uma lição mais funda vinha naquelas aulas do professor Arlindo Albuquerque. Em lugar da conjugação mecânica dos verbos Avoir e Être ele nos legou um valor permanente de humanidade. Sem trombetas, de bata azul, em um subúrbio que hoje chamam de periferia. Isto tem e é beleza. |
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