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La insignia
4 de fevereiro de 2004


Reminiscências do mundo dos sonhos


Rodrigo Gurgel (*)
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2004.


Para onde nos levam os sonhos? Que caminhos do nosso eu eles nos fazem trilhar? E ao enveredarmos, indefesos, nessas trilhas tecidas por símbolos, nos quais se mesclam lembranças, insatisfações, desejos e neuroses, para que estranho e desconhecido país elas nos levarão?

O mundo onírico me parece ser mais do que a tela na qual se projetam os desejos que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem empreendida aos subterrâneos da nossa mente esconde um sinal que, muitas vezes repetitivo, insiste no sentido de desvendarmos a nós mesmos.

Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário de minha viagem noturna, acalento essas lembranças - muitas vezes fragmentadas e repletas de lacunas - como se formassem, reunidas, o mapa de uma aventura que clama por ser reconstituída; e que apenas ao ser empreendida pela mente em vigília pode me oferecer o tesouro - quem sabe um inominável segredo - escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar, durante todo o dia - e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê-lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho, por si só muito fugaz, já se esvai -, aquelas mesmas etapas noturnas, como o menino que, encontrando no caminho aberto à sua frente as pegadas de um adulto, tentasse colocar, passo a passo, seus pés nas marcas deixadas na terra, e que ele só consegue alcançar com grande esforço.

Há algumas noites, depois de uma longa conversa com minha mulher sobre o processo de criação de meus textos e de como, naquele dia, esse assunto me deixara estranhamente ansioso, enveredei mais uma vez, durante o sono, para o meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, em algum momento depois de adormecer, ainda criança, um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por freiras e, naquela manhã, chegando para as aulas com as outras crianças, percebi que o alto da escadaria de metal, que todos os dias subíamos para chegar às classes, fora retirado. Alcançando determinado degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas todos os meus esforços resultavam inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois as aulas estavam prestes a começar. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando saber de minha dificuldade, instruiu-me sobre um caminho alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, mas seu semblante e seu sorriso pareciam revelar a promessa de que seria uma opção sedutora e prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a religiosa, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona mais à frente, quando encontraria, então, a entrada para a classe. Aceitei as orientações e, mesmo notando a existência de uma outra escada, esta semelhante a do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzei um longo gramado, circundando o prédio, e me encontrei diante de uma fonte circular, na qual mergulhei sem hesitação. E lá, sob a água absolutamente cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente amplo, deparei-me com algo deslumbrante: no centro daquele espaço havia como que uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à superfície, exemplares - animados e inanimados - de tudo o que compõe a realidade. Todo esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar em sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me ficar ali, esquecido das aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com um inigualável sentimento de completude que acordei.

Ainda sentado à cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-lo em todos os seus detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas idéias, não sei quais associações fizeram-me lembrar de um poema de Eugenio Montale:

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, como um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Com o livro de Montale aberto e os olhos postos na poesia, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, depois de ultrapassar o trecho da escada que fora retirado. A verdade jamais esteve no ambiente sufocante, repressivo e alienante da classe de aula, com suas filas de carteiras paralelas e um professor - a maioria deles - incapaz de mostrar-me o que subsistia além ou aquém da lição diária. A naturalidade - a quase alegria - com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável necessidade de buscar outro caminho deflagraram em mim a certeza de que eu não voltaria ali, de que uma experiência inusual me aguardava. A verdade, sempre a encontrei em outro lugar, quase sempre oposto àqueles apontados pelos bancos escolares.

Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância deixou-me desconfiado. E a repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que eu me afastasse dali, deixando esse possível atalho em nome do desejo de conhecer o ignorado.

Certamente não era à toa que as vestes da religiosa - notei bem enquanto ela me falava - refulgiam em um branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado; e que, depois, se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta "num ar de vidro" de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz insólita e, em breve, com um novo olhar.

A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um ritual iniciático, um rito de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos antigos rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste todos os seres, toda a vida, dessa coloração que os prepara a um novo começo, despertando-os da letargia noturna e estimulando-os ao enfrentamento da existência. O branco está, portanto, associado em nossa mente ao reinício, ao recomeço, ao renascimento que se segue à noite, a toda derrota, a toda morte, a todo fim. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar para ser impregnado da luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta última também um símbolo de purificação e regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago de águas estagnadas ou em um mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela também, recordo-me, toda branca, símbolo da vida que se debate, que se agita buscando a renovação, e cuja inesgotabilidade esconde não apenas o segredo da juventude, mas também da origem da vida e de todo o conhecimento. Em seu jorro, a se espargir na direção do céu, reconhecemos as promessas e os sonhos que lançamos ao futuro.

Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o centro por onde passam todas as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro daquele líquido translúcido conheci as coisas em sua forma original, primeva, quando elas ainda não estão nomeadas, quando ainda não foram classificadas e diminuídas pelo homem.

Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo está por ser descoberto. E sentia-me - espectador e personagem do meu sonho - como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória, e buscar o que, por acaso, houvesse perdido.

Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale - ainda que tenhamos alcançado o mesmo milagre -, pois se o poeta vislumbrou o terror que se esconde sob o que nos parece ser o real, ou seja, o vazio, o nada, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi a urgência de zerar a vida todos os dias, de recomeçar sempre, tentando captar a verdadeira face da realidade. E, ao final do meu sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que jamais "se voltam". Talvez exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele, a partir daquele sonho - e em todas as manhãs, esforçando-me para repetir aquele ritual onírico de maneira consciente - eu devesse calar-me "entre os homens que não se voltam", entre os homens que não sabem olhar, e carregar comigo "o meu segredo".

A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar as imagens do real, esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despi-las das camadas de fantasia que lhes pespegamos todos os dias; que devo reiniciar meu exercício de observação a cada momento, desacreditando do que vejo, a fim de revelar o caráter inusitado do qual a realidade acaba por ser destituída pela mesmice do cotidiano.

A revelação do mundo onírico é a de que a escrita - como toda forma de arte - deve recolocar a realidade em equilíbrio, ou seja, desestabilizá-la. E, para tanto, devo obrigar-me a enxergar o real a partir do seu centro, de onde ele desborda para o que é habitual, não se tratando de buscar sua essência - pois esta não é uma questão metafísica -, mas, sim, de se resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ele trágico ou pueril, inocente ou terrível.

De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam em mim, de todos os sonhos que carrego comigo - como se fossem um patrimônio que cabe à lucidez decifrar -, de todas essas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insufla em minha consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna de luz e água translúcidas por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir aos demais os frutos da sua descoberta? Como Montale, penso, talvez reste a ela apenas viver solitária entre os homens, carregando o seu segredo...

Tal solução, contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois me oferece uma facilidade ilusória. E se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema - e o conjunto de sua obra - e não o silêncio, então ele ofereceu aos homens uma tocha capaz de iluminar o desconhecido e a incerteza que, a cada esquina, nos aguardam.

Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto a denunciar-lhes a "ilusão costumeira", pronto a redescobrir a face incomum e inesperada do real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-la com a força e o vigor esquecidos pela maioria.


(*) Rodrigo Gurgel (http://www.rodrigo.gurgel.nom.br) é editor e escreve ensaios, artigos, resenhas e crônicas. Presta serviços de consultoria editorial, além de preparar originais para editoras. Colunista de Novae (http://www.novae.inf.br), La Insignia (http://www.lainsignia.org) e Beleza Inteligente (http://www.belezainteligente.com.br/).



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