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La insignia
16 de janeiro de 2004


Entrevista com Arturo Pérez-Reverte


Helena Vasconcelos
Storm. Portugal, janeiro de 2004.


Cresceu num universo cheio de livros. O pai tinha uma grande biblioteca e desde a infância em Cartagena - nasceu em 1951 e tem assento na Real Academia de Letras Espanhola - que Pérez-Reverte se tem alimentado das palavras dos grandes mestres da literatura. É um herói por direito próprio porque conta histórias que deixam os leitores suspensos da primeira à última linha. Figura muito conhecida apesar do seu jeito de navegador solitário é autor de best- sellers que se vendem como pães e são imediatamente açambarcados pela sétima arte, a vampírica criadora de sonhos que não resiste a quem, neste universo sobrecarregado de imagens, ainda consegue fazer sonhar só com a magia das palavras. Sedutor, intenso, visionário, destemido, este homem é tido como um herói: trabalhou em plataformas petrolíferas e cumpriu missões como repórter de guerra nos piores lugares do planeta. Cobriu acontecimentos no Líbano, na Eritreia, nas Malvinas, acompanhou os conflitos armados no Sahara, em El Salvador, na Nicarágua e no Tchad, as crises da Líbia e da Tunísia, as guerras em Angola e Moçambique e as sangrentas contendas na Croácia e na Bósnia, ( estas últimas reportagens valeram-lhe o Prémio Príncipe das Astúrias de Jornalismo).

Mas foi nos livros que se lhe traçou o destino. Discípulo dilecto de Cervantes, Melville, Tolstoi, Faulkner, Dickens, constrói romances tradicionais com toda a mestria da narrativa contemporânea, sem desdenhar um piscar de olhos ao cinema e à B.D. Ele é o espelho dos seus heróis e heroínas, uma mistura de Clint Eastwood com Corto Maltese com laivos de Joana d'Arc e de Calamity Jane..Estudioso aplicado da História e dos seus mistérios, não perde uma oportunidade para inserir nas suas obras o estudo de documentos ancestrais, conferindo-lhes uma aura de fascínio que serve de cenário à inquietação dos seus heróis e heroínas, conscientes da herança cultural e despertos para a exploração das memórias partilhadas.

Mas desde que começou a publicar livros ("O Hussardo" 1986), Pérez-Reverte nunca tinha criado uma heroína da estirpe de Teresa Mendonza, a célebre "Rainha do Sul". (Ed. Asa, Portugal). Prepare-se para entrar num universo de violência, acção, paixões arrebatadoras e muita ambição.

Os heróis parecem estar mortos. Surge a heroína do século XXI.


Helena Vasconcelos: Os heróis dos seus romances não são modelos de virtudes e este seu último livro é tudo menos "politicamente correcto". O que o levou a criar uma heroína que é uma narcotraficante?

Arturo Pérez-Reverte .Toda a minha concepção da literatura assenta numa certeza, a de que existem duas espécies de heróis: os primeiros são inocentes e de coração puro - são Heitor e Aquiles. Mas esses heróis morreram em Tróia. E o que aconteceu aos outros, aos que tinham sangue nas unhas, que recordavam os troianos que chacinaram e que regressaram, a barba hirsuta, sujos, os olhos cegos, sem companheiros de batalha, sozinhos? Os meus heróis pertencem a este segundo tipo.

H.V. Os seus heróis são os descendentes de Ulisses?

A.P.R. Sim. São os que regressaram de Tróia depois de terem visto tudo. São heróis lúcidos.

H.V: Ou cínicos?

A.P: R: Os meus heróis são salvos do cinismo porque se regem por certos códigos. São heróis cansados. A única coisa que os salva é a lealdade e o cumprimento de certas normas.

H.V. A sua estrutura narrativa assenta no romance tradicional. E qualquer episódio, por mais rocambolesco, é descrito com abundância de detalhes. Preocupa-se com a verosimilhança na sua ficção?

A.P.R. Sim, claro. O meu trabalho baseia-se em três elementos fundamentais : os clássicos, gregos e latinos que me dão os temas; a literatura espanhola do "século de ouro" que me fornece a linguagem, ou seja, a ferramenta do ofício; e a literatura europeia do século XIX que me inspira a estrutura. Depois insiro as minhas fontes e adapto a narrativa ao tempo actual.

H.V.: Este seu último romance é construído como um relato jornalístico…

A. P.R. É um falso jornalismo. Tinha de escrever documentando-me muito, indo a lugares e recorrendo a antigos amigos, a polícias, a traficantes, à polícia aduaneira, etc.

H.V: Utilizou os informadores habituais dos seus tempos de jornalista mas para criar uma ficção?

A. P.R. Sim, mas desta vez tive liberdade para manipular a informação. Quando era jornalista era muito rigoroso não me afastava dos factos. Como romancista, tudo pode ser como eu quiser. Para um velho jornalista como eu é muito divertido trabalhar desta forma.

H.V: Ao ler os seus livros é possível sentir cheiros, ouvir sons, experimentar emoções. O leitor é guiado no seu território - fornece muitas pistas, de pormenores técnicos até ementas de restaurantes - e fica preso da trama. É importante, para si, essa conquista?

A. P.R. Um livro é, essencialmente, um acto de sedução. Preciso de sentir que a história me interessa ao ponto de escrever quinhentas e tal páginas e dedicar dois anos da minha vida a contá-la. Depois, tenho de seduzir o leitor. Quando estive na guerra aprendi como se faz uma emboscada: coloca-se a arma num ponto, mais adiante as minas e por aí fora. Planificar um romance é como planificar uma emboscada para o leitor e saber como é possível apanhá-lo.

H.V.: Nos seus romances, as pessoas não têm famílias tradicionais. Para si, essa é uma forma de liberdade?

P.R. Claro. Na realidade, não quer dizer que as minhas personagens não tenham família mas, no momento em que o leitor as segue, estão em movimento, físico e intelectual. São pessoas desenraizadas.

H.V. Os seus personagens usam o próprio instinto e parecem viver num universo sem Deus. Há algo de animal neles. Concorda?

P.R. Sim. Os deuses morreram em Tróia. Quando Ulisses regressa já não há deuses. Ele é que tem de descobrir a forma de escapar aos perigos. É aí que o herói se torna moderno. Todos os meus personagens são Ulisses, navegando. Eu não nego a existência de Deus nos meus livros, é um assunto que não me interessa. O que se passa é que as minhas personagens não têm um deus que os ajude e têm que lutar sós.

H.V. : Nos seus livros existem, basicamente, dois tipos de personagens bem definidas. Não lhe parece demasiado maniqueísta?

A.P.R. No mundo há, genericamente, dois tipos distintos de filhos-da-puta: há os que têm cartões de crédito, gravatas, etc. e que, quando algo corre mal, nunca pagam o preço devido; são sempre outros a pagar pelo o que eles fazem. Depois há os filhos-da-puta de fronteira, os que dão luta, que jogam e ganham ou perdem. Que arriscam. Se ganham, ganham muito e se perdem não se queixam. Gosto deste último tipo. Respeito-o tanto como desprezo o outro.

H.V.: Nos seus dois últimos livros, as mulheres - Tânger Soto, Teresa - ganham um papel muito mais relevante. O que é que mudou na sua vida para ter começado a descrever heroínas tão fortes?

A.P.R. Tenho 52 anos, idade suficiente para compreender coisas que antes não compreendia, e já me atrevo a escrever sobre mulheres. Antigamente eram um incógnita tão grande que eu não sabia. E quando olho para trás vejo que tudo o que se passou de importante na minha vida, se passou com uma mulher.

H.V.: As mulheres nos seus livros são corajosas e dão valor à acção, ao companheirismo, à cumplicidade. Não têm muito espaço para o amor. Parecem quase uma versão feminina dos homens. Concorda?

P.R. Não é bem assim. O que sempre me atraiu foi o silêncio das mulheres. É um enigma que me fascina cada vez mais. A mulher é um soldado permanentemente em território inimigo. Um soldado, nessas condições, está calado. Teresa Mendonça é um bom exemplo: ela compreende que o mundo em que vive é um mundo masculino, com regras feitas pelos homens e que a única forma de sobreviver é jogar de acordo com as regras masculinas. Se fizer o jogo feminino não tem hipóteses Uma mulher que joga inteligentemente com armas masculinas é muito eficaz. Geneticamente, uma mulher é mais lúcida, mais cruel. Quando uma mulher luta pela sua sobrevivência é implacável.

H.V. Como as heroínas da tragédia grega?

A.P.R. Sim. O homem quando luta é por ambição, por luxúria, por dinheiro por mil razões. A mulher luta pela sobrevivência, sabendo que, se for derrotada, não terá segunda oportunidade. Uma mulher que, entre os dezoito anos e os trinta anos não estabeleceu a sua identidade profissional, intelectual, será sempre prisioneira do homem. Por isso, quando a mulher luta, a batalha é muito dura.

H.V.: Não teve problemas com os traficantes, depois de sair o seu livro?

P.R. Não Conheço-os, cheguei a receber cartas de alguns que estão presos em Tucson, no Arizona e que leram o romance em mexicano e me escreveram a dizer que tinham gostado muito.

H.V.: Os capítulos do seu livro têm títulos de canções populares como as que se cantavam no velho "far-west" ou nos folhetins do século XIX ou mesmo na Europa medieval. Era uma forma muito popular de "fazer História". Desejou fazer o mesmo?

P.R. Sim, a história do México tem-se feito com canções . A tradição oral é muito importante porque as pessoas são analfabetas. Dantes eram as histórias de Pancho Villa agora são as dos traficantes

H.V. Nos seus livros, o Bem e o Mal confundem-se sistematicamente. Há um extremar dos limites. É um aviso em relação à sociedade contemporânea?.

A.P.R. Só nas fronteiras que é possível ter a lucidez suficiente para compreender o sentido da vida. Na retaguarda vive-se tão organizadamente anestesiado que já não há surpresas. As fronteiras, físicas, intelectuais, estéticas são o lugar onde é possível renovar-nos. Creio que o ser humano - e o escritor - que não procura uma fronteira está condenado a tornar-se monótono.

.H.V. Nos seus livros choram-se os amigos mortos, respeitam-se os adversários, tem-se nostalgia de um "lar" - que está sempre a escapar-se - e faz-se o que há para fazer e bem feito. É o universo mediterrânico. Acha que, neste momento da História, nos estamos a afastar desse modelo e a tornarmo-nos mais frios, corruptos e indiferentes?

A.P-R.: Estamos a converter-nos em órfãos e a esquecer a nossa razão de ser. Nenhum de nós pode explicar a sua existência sem considerar que somos o resultado de milhares de anos de memória mediterrânica, com a Bíblia, o Islão, a Grécia, Roma, a época medieval, a partida para as Índias, para a América. Esse é o nosso material narrativo e cultural. Nos meus romances existe sempre esse substrato. O erro grave que está a ser cometido na narrativa europeia é esquecer o território que lhe é próprio. O nosso Deus é um deus fanático, vingativo, rancoroso que vem na Bíblia mas também temos a abertura dos deuses pagãos e mediterrâneos, o culto do trigo, do azeite, do vinho. Mudar isso é um erro cultural gravíssimo que está a matar a narrativa europeia.

H.V: É por essa razão que numa entrevista disse que "la literatura há estado secuestrada por una banda de gillipollas"?

A. P.R. Tudo isso acontece não apenas na literatura mas também na política, nas artes, na moda, na cultura em geral. Nunca houve tantos idiotas a dizer o que devemos ler, comer, beber, pensar, ser. Não sou ninguém para lutar contra isso nem é esse o meu objectivo mas na pequena parcela do meu território narrativo tento manter-me fiel a ideias próprias.

H.V. Como reage ao facto de ser classificado como um autor de "best-sellers"?

A.P.R. Vender livros dá-me liberdade. Não tenho chefes. Comecei a escrever com 35 anos, mas sempre sobre os mesmos temas, sobre o que me apetecia. Claro que mudei um pouco, agora sou mais Ulisses do que Heitor. Sei que me lêem no mundo inteiro. Mas nada muda a minha vida. Sou um escritor coerente que não quer deixar de o ser. Quando se esgotar este território, vou para o mar navegar que é o que me dá mais prazer.



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