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6 de outubro del 2003 |
Mário Maestri (*)
II. Letícia no país das maravilhas
O principal palco narrativo de A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchowski [Rio de Janeiro: Record, 2003], é o mundo sentimental e afetivo feminino, embalado pelas esperas e perdas motivadas pela guerra separatista sul-rio-grandense de 1835-1845. Portanto, é nesse plano, escolhido pela autora, que deve emergir e materializar-se o universo histórico que embasa e determina a narrativa. São desprezíveis tropeços menores do décor ficcional, como lareiras aquecendo as sedes das fazendas; campos precocemente cercados; facilidades e processos higiênicos modernos; cativos domésticos labutando na roça; telegramas e bombachas em 1835. O importante é que as emoções e as ações centrais da narrativa expressem, correspondam e materializem as formas de sentir e de viver de então. A experiência e a existência humana não são combinações variadas de mesmos ingredientes. Através dos tempos, mulheres e homens falam, agem e sentem subjetivamente de formas diversas, porque vivem e relacionam-se objetivamente em forma diversa. É função da historiografia e do romance histórico desvelar essa realidade e evolução através de suas linguagens singulares. A unidade e a diversidade das experiências históricas materializam-se em banais atos quotidianos. O modo como uma filha relaciona-se com a mãe e uma mulher com o esposo expressam nexos sociais profundos e necessários. O tratamento protocolar "- Senhora minha mãe; - Senhor meu esposo", usado ainda em forma arcaica em regiões do Brasil, registrava, no interior da família senhorial, a rígida hierarquia escravista e patrimonial, que tinha no matrimônio instituição angular. Casamento como negócio Racionalizadas e idealizadas, as funções patrimoniais do matrimônio eram naturalmente aceitas por noivos que não incorporavam, entre as expectativas da união, o amor romântico e o prazer sexual. Este último, para as noivas, constituiria descoberta e acidente matrimoniais transitórios e, para os homens, conquista externa ao casamento, buscada nos prostíbulos e queridas de luxo. Os namoros e noivados eram rigidamente controlados. Nos bailes do Brasil das últimas décadas do século 19, era visto como verdadeiro deboche noivo que dançasse mais do que algumas músicas com a prometida. Não raro, ao casarem, os esposos eram quase estranhos e comumente mantinham relacionamento contido por toda a vida. Quando atração e prazer intrometiam-se inesperadamente em aliança nupcial, o fato inesperado era mantido encerrado a sete chaves entre as paredes da alcova e sob os lençóis do leito matrimonial para que não comprometesse a boa reputação do casal atingido pelo estranho desvio comportamental. O universo senhorial determinava os contratos nupciais, via de circulação patrimonial. O controle das herdeiras era necessário para que a transferência de bens não se desse fora dos objetivos de classes. Até a poucas décadas atrás, as filhas do latifúndio sequer pensavam em passear sozinhas nos arvoredos próximos, quanto mais vagabundear pelas margens de arroios, como as heroínas de A casa das sete mulheres. "Mariana ficou desolada, fugiu para a sanga, restou lá uma tarde inteira a chorar." Casos extraordinários A vigilância era rígida devido a transgressões e ameaças reais e imaginárias. A ascensão social através do casamento com latifundiária - o tradicional braguetaço da fronteira - segue constituindo objetivo sobretudo mítico de jovens das classes médias pobres do mundo pastoril. A tradição lembra casos extraordinários de peões que se tornaram proprietários por abiscoitarem rica herdeira. A documentação registra transgressões singulares como sinhá que se entregou às delícias do sexo com seus cativos, pagando-os a seguir para eliminar o consorte condescendente mas incômodo. Comumente, castrava-se e degolava-se o raro cativo ou homem livre e pobre que seduzia uma herdeira, nos fatos ou na imaginação senhorial. Cobria-se a gravidez indesejada com aborto ou casamento com noivo condescendente, de origem social inferior mas não infamante. Tema habitual do romance de inícios do Segundo Reinado [1840-1889], a ameaça de sedução da heroína materializa o medo de matrimônio aviltante e reforçava os padrões matrimoniais de classe. O amor de Mariana, sobrinha de Bento Gonçalves, com o peão João Gutierrez, peca por fantasia e artificialidade. Trata-se de um outro dos domínios essenciais em que a narrativa de Letícia Wierzchowski afasta-se do verossímil para construir relato romântico e modernizado, de solução feliz e tranqüilizadora. Jovem livre e moderna A jovem Mariana desloca-se pela fazenda ao bel prazer, abandonando à noite a vigiada alcova de donzela com estonteante facilidade, considerando-se a topografia e hábitos das sedes pastoris, trancadas ao escurecer, pelo interior, e vigiadas por cuscos e capatazes, do exterior. Ao modo dos romances românticos oitocentistas de capa-e-espada, as personagens de A casa das sete mulheres adaptam-se em forma forçada ao enredo em vez dele construir-se harmonicamente a partir das determinações essenciais de personagens que singularizem categorias e relações sociais do passado. Para que os amantes comuniquem-se, o peão João Gutierrez surge na trama lendo e escrevendo, artes desconhecidas por boa parte dos senhores. Nesse então, o peão letrado era elevado à função de capataz, na fazenda, e de sub-oficial, nos exércitos, devido à inusitada habilidade. É também esdrúxula a modernização do sentimento paterno de João Gutierrez, ao conhecer seu bastardo. "[...] João Gutierrez percebeu que o mundo se resumia naquele serzinho delicado e morno, envolto em panos bordados, cujos sonhos por vezes provocavam sorrisos no rostinho angelical. - Ele é tão lindo, Mariana. - Parecido com vosmecê. Tem os seus olhos, João." O amor tudo vence No mundo rural, beleza e transbordamento de sentimentos eram tidos e vividos como qualidades e reações feminis, inaceitáveis em homem, quanto mais em peão! A determinação dos sentimentos pelo rústico mundo social engessava igualmente o modo de ser pai. A solução da contradição nascida da relação socialmente inaceitável constitui happy end ficcional. O belo e destemido peão volta da guerra para viver feliz, como administrador de latifúndio, ao lado da igualmente bela esposa e do filho amado, não menos belo. "Mariana, João Gutierrez e o menino foram viver na Estância do Brejo e lá tiveram existência calma e feliz." E isso devido ao fato do peão ter desvirginado e embarrigado, sobre um pelego sujo, na beira da sanga, a sobrinha de Bento Gonçalves que, por coisas de honra, fulminou o próprio primo, sangue de seu sangue! A solução ficcional socialmente integradora do caso do gaúcho safado agrava-se devido ao fato de que o empreendedor João Gutierrez constitui o único protagonista da narrativa que não pertence às classes senhoriais! Sua meteórica ascensão social sugere democratismo desconhecido pelo mundo escravista. Folga dizer que a superação social é apresentada como devida à capacidade do amor de vencer qualquer barreira! A mãe de Mariana, que rejeitara a origem espúria do neto, ao ver o menino, funde-se sob a força do amor: "João Gutierrez derrama-se do rosto do menino, e ela sente um princípio de raiva ao ver sua família misturada com o vaqueano; porém, a raiva logo se desfaz. É amor essa coisa boa latejando em seu peito." (*) Mário Maestri, 55, historiador, é autor de Por que Paulo Coelho teve sucesso. Porto Alegre: AGE, 1999. E-mail: maestri@via-rs.net |
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