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La insignia
5 de novembro del 2003


A segunda morte de Júlio de Castilhos


Mário Maestri (*)
La Insignia. Brasil, novembro de 2003.


O sentido social do castilhismo

Em 24 de outubro, há um século, Júlio de Castilho morria durante operação de câncer na garganta, realizada em sua residência, em Porto Alegre. Tinha, então, 43 anos. O transcurso do primeiro centenário da morte do fundador da ordem republicana que regeu a vida do Rio Grande do Sul por mais de três décadas apenas exacerbou a critica dos últimos anos contra ele e a ordem que ajudou a fundar.

Obras literárias, ensaios historiográficos, matérias jornalísticas, etc. com pretensões revisionistas centram-se, ultimamente, sobretudo na denúncia do caráter ditatorial do Estado republicano sulino, comandado por Júlio de Castilhos e, após sua morte, em 1903, por Borges de Medeiros, até 1928, e na apologia direta e indireta dos políticos e movimentos das elites que se opuseram frontalmente a eles.

A ascensão do castilhismo-borgismo não significou o assalto do Estado por homens sedentos de poder, como propõem explicações simplistas de cunho liberal, conservador e idealista. Não representou igualmente a consolidação de bloco político revolucionário, como sugeriram interpretações apologéticas daqueles sucessos. Golpe republicano

Nos fins do Império, a economia sulina mergulhara na estagnação devido ao esgotamento do padrão econômico tradicional centrado na exportação de charque e de couros para as demais províncias brasileiras e o exterior. Entretanto, esta estagnação não era geral.

Na segunda metade do século 19, a agricultura camponesa e capitalista, o comércio, o artesanato, a manufatura, a produção fabril da Serra, do Litoral e da Depressão Central em expansão haviam arrebatado a hegemonia econômica ao latifúndio meridional, que controlava porém ferreamente a política da Província através do Partido Liberal Antes de 1889, os republicanos defendiam projeto reformista-conservador para o Rio Grande através de diversificação da produção assentada no mercado regional que garantisse crescentemente a autonomia sulina. Porém, eles foram mantidos no ostracismo pelo regime eleitoral censitário e elitista do Império.

O golpe republicano de 15 de novembro pôs abaixo a monarquia e o governo liberal recém-eleito, permitindo que os republicanos rio-grandenses ingressassem e se mantivessem no governo sulino, apoiados pelo governo central, temeroso de revanchismo dos liberais-monáquicos, muito fortes no Sul.

Com o poder regional crescentemente nas suas mãos, os republicanos sul-rio-grandenses interpretaram as forças sociais proprietárias em ascensão nas últimas décadas da monarquia - comerciantes, criadores serranos, exportadores, financistas, industrialistas, plantadores, proprietários coloniais, etc. -, conquistando novo e forte conteúdo político e social. Em geral, esses segmentos não possuíam representação política orgânica.

Novo bloco socia

l Em Júlio de Castilhos e sua época [3a. ed. Porto Alegre: UFRGS, 1996] o historiador Sérgio da Costa Franco, pioneiro na definição do sentido profundo da ordem republicana sulina, lembra que apesar da chegada dos castilhistas ao poder não ter significado mudança radical da classe dominante por segmentos subalternizados, ensejou clara promoção de grupos sociais que estavam até então à margem do poder. Os setores proprietários emergentes apoiaram as políticas aduaneira e tributária e os importantes investimentos efetuados pelos republicanos na ampliação dos meios de comunicação - ferroviários, rodoviários, fluviais, lacustres e portuários. Essas e outras medidas mobilizavam-se pela extensão dos espaços de produção, circulação e realização capitalista no Estado.

Foi também significativa a adesão de setores urbanos médios, interessados na proposta de qualificação e de expansão da intervenção do Estado. O resultado do confronto em curso não era igualmente indiferente às classes trabalhadoras. A vitória do projeto modernizador republicano, ainda que conservador, permitia maior espaço relativo de realização econômica e de intervenção política e social para as classes subalternas. A expansão econômica do setentrião em relação ao meridião sulino determinara que, enquanto a população da primeira região crescia sem interrupção, a da segunda mantinha-se em estagnação tendencial. O regime eleitoral republicano permitiu que o Norte, mais populoso, vergasse o Sul despovoado, em pleitos em que a trapaça era regra e jamais a exceção.

Essência e consciência

A historiografia sulina explicou tradicionalmente o centralismo e o autoritarismo castilhista-borgista como decorrências da adesão ao credo comtiano. Ao contrário, é necessário definir os interesses sociais e econômicos que levaram à adoção dessa filosofia como expressão cultural do republicanismo rio-grandense.

A proposta de equilíbrio orçamentário, um dos dogmas da doutrina administrativa comtiana, correspondia às necessidades de produção mercantil simples que se ampliava através da extensão de sua área de atuação, permitida por crescimento do mercado regional e nacional garantido sobretudo pela melhoria dos meios de transportes.

O positivismo interpretava o novo bloco social. Entretanto, quando o apoio à expansão da produção capitalista regional exigiu intervenção do Estado na economia, o governo violou sem pruridos aquele axioma comtiano e contraiu forte dívida pública para encampar a rede ferroviária e portuária regional explorada por capitais estrangeiros.

O autoritarismo castilhista-borgista não foi idiossincrasia filosófica ou individual. A monocracia comtiana permitiu que a nova ordem afastasse do poder os interesses oligárquicos, impulsionando as transformações de cunho capitalista, sem interromper a subalternização dos trabalhadores. A longa permanência do PRR deveu-se sobretudo à coesão das forças sociais que apoiavam seu projeto, e não simplesmente à repressão. Os republicanos dissidentes e os liberais-federalistas conquistaram o poder regional em novembro de 1991, quando da queda do marechal Deodoro da Fonseca, sendo facilmente defenestrados do governo pelos castilhistas, em junho de 1892. A fragilidade do Governicho, igualmente autoritário, comprova a perda de dinamismo dos segmentos sociais liberal-pastoris.

Guerra fratricida

Em 1893-5, a inusitada violência da Guerra Federalista travada entre o bloco republicano em ascensão e o liberal-federalista em declínio - dez mil mortos em população regional de um milhão de habitantes - expressou a importância dos interesses econômicos, sociais e políticos em jogo e não surto de barbarismo mal-explicado.

O castilhismo-borgismo não possuía antagonismos estruturais com a produção latifundiária, à qual propôs opções modernizadoras. Porém, a nova orientação republicana feria profundamente interesses estruturais do latifúndio pastoril, representados pelos federalistas, refundação republicana do velho partido liberal rio-grandense.

Os federalistas opunham-se radicalmente ao protecionismo republicano da produção regional, viabilizado pela repressão ao contrabando do Prata. O contrabando deprimia as rendas do Estado e a produção sulina, sobretudo serrana, restringindo o mercado regional, mas barateava os meios de subsistência dos trabalhadores envolvidos na produção pastoril-charqueadora.

Os interesses do meridião sulino desinteressavam-se do mercado regional, pois vendiam o charque e os couros no exterior do Rio Grande. Os federalistas denunciavam a reorientação dos investimentos em obras infra-estruturais, em educação, etc. como desvio das rendas públicas de seu destino natural, ou seja, a satisfação dos interesses pastoris-charqueadores.

O novo Estado republicano contraditava igualmente interesses pastoris ao taxar a propriedade da terra e sua transmissão; ao limitar a apropriação latifundiária das terras públicas do norte do Rio Grande, destinando-as à imigração colonial, etc.

O projeto federalista

Em 1893-5, os republicanos acusaram os chefes federalistas de restauradores e separatistas. É mais correto propor que as simpatias monarquistas fossem fortes entre eles, sobretudo porque, após a morte de Pedro II, os federalistas compreenderam a grande dificuldade de um retorno à monarquia.

O fato de republicanos dissidentes encontrarem-se entre as filas maragatas limitava igualmente as tendências monarquistas federalistas. À medida que o PRR expressou bloco social em contradição com a grande produção pastoril, republicanos históricos, positivistas ou não, ligados direta ou indiretamente ao latifúndio, aderiram à oposição.

Não seria antipática aos chefes federalistas a separação da Campanha e uma eventual adesão ao Uruguai. Essas visões jamais se materializaram em projetos concretos. Os federalistas mobilizaram-se por democratização elitista da ordem política sulina que lhes permitisse ao menos interromper as transformações em curso.

Entretanto, uma vitória federalista em 1893-5 colocaria possivelmente em discussão a união do Rio Grande ao resto do Brasil, já que seria muito difícil a acomodação do parlamentarismo e do centralismo, defendido pelos maragatos, com o presidencialismo e o federalismo, implementado pelos republicanos, dominantes nacionalmente. A economia pastoril da Campanha, articulada com o norte do Uruguai, prescindia do setentrião. Os federalistas podiam estender seu controle até as Missões, mas a Serra, a Depressão Central, o Planalto Médio e o Alto Uruguai jamais aceitariam seu domínio. Uma linha invisível passava por Uruguaiana, Alegrete, Santa Maria, Rio Pardo e Porto Alegre dividindo o Rio Grande em duas regiões antagônicas.

Arcaico e moderno

Em 1893-5, a defesa dos projetos econômico-sociais federalistas e republicanos divergentes expressou-se também em organização militar diversa. Formadas por fazendeiros, peões e agregados, as tropas maragatas estavam precariamente armadas, dependendo das cavalhadas para a locomoção. Sua unidade básica era o fogão, ou seja, cinco a oito homens - a força de trabalho de uma fazenda -, que se alimentavam, acampavam e combatiam solidários.

Ao contrário, os republicanos possuíam tropas militares modernas, bem armadas, formadas parcialmente por soldados, suboficiais e oficiais profissionais que utilizavam as ferrovias para locomoverem-se e conheciam divisão e especialização de funções - infantaria, cavalaria, artilharia, intendência, etc. No campo de batalha, defrontavam-se o passado e o futuro.

Do resultado da Revolução Federalista dependeu a orientação da história gaúcha. Se vencessem os federalistas, a colonização seria interrompida; o contrabando, liberalizado; as rendas estatais, entregues aos interesses pastoris. A vitória dos pica-paus impediu que o Rio Grande se transformasse, no melhor dos casos, em um Uruguai falando português ou, no pior, em um imenso Bagé!

Os castilhistas-borgistas compreendiam-se como defensores do Estado republicano e do federalismo regional conquistados com a derrota da monarquia, em 1889, e de seus representantes, em 1893. Viam-se como intérpretes da ciência, do progresso e da civilização contra os resquícios do obscurantismo monárquico e escravista.

Os republicanos fundaram o moderno Estado gaúcho; ampliaram a produção, circulação e realização de mercadorias; limitaram as supervivências pré-capitalistas da produção latifundiária que se apoiava na renda da terra, possuía ampla esfera de produção natural e praticava formas não-capitalistas de assalariamento.

Tarefa democrática

O grande limite da modernização castilhista-borgista foi sua negativa de pôr fim ao latifúndio, tarefa imprescindível ao desenvolvimento da produção agrícola, manufatureira e industrial, que esbarrava no acanhado mercado e na baixa taxa de acumulação pastoril.

A expropriação do latifúndio era programa que se encontrava além dos mais avançados sonhos modernizadores republicanos. A sua realização necessitava mobilização dos trabalhadores do campo de desdobramentos inaceitáveis aos senhores do poder. A democratização republicana da terra restringiu-se ao apoio à expansão da propriedade colonial.

A ditadura da ordem castilhista-borgista abateu-se igualmente sobre as classes trabalhadoras sulinas das cidades e do campo, às quais fortaleceu objetivamente. Frágeis, dispersas e inexperientes, elas não conseguiram expressar em forma clara e permanente projeto político autônomo, permitindo que a oposição à nova ordem republicana fosse feita sobretudo pelo passado, e não pelo futuro.

Neo-maragatos

A incessante campanha ideológica liberal-conservadora dos últimos anos desenvolve-se sobretudo através da apologia dos líderes federalistas e libertadores - Gaspar Silveira Martins, Gumercindo Saraiva, Assis Brasil, etc. - e da execração dos próceres republicanos - Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, etc.

Essa operação ideológica tem seu melhor exemplo no ensaio, de grande sucesso, de Décio Freitas sobre Júlio de Castilho - O homem que inventou a ditadura no Brasil [Porto Alegre: Sulina, 1998] - no qual Gaspar Silveira Martins surge como verdadeiro herói do passado sulino e Castilho como vilão democraticida.

A defesa das velhas lideranças liberais-latifundiárias da República Velha e a critiquice incondicional ao castilhismo-borgismo combatem indiretamente o direito e a obrigação do Estado de intervir em favor do desenvolvimento social e da proposta de produção e consumo voltado para o mercado interno.

A campanha contra o castilhismo-borgismo constitui elogio indireto das políticas neo-liberais de achincalhamento do Estado e da privatização e internacionalização da economia e da sociedade que nos últimos anos rapinaram e destruíram bens e serviços públicos construídos e organizados quando da primeira gestão republicana do Rio Grande.

Ao voltar à liça desfraldando as velhas bandeiras do liberalismo e da grande propriedade, os maragatos do novo milênio constrangem-se apenas em envergar aquele que foi a mais querida marca material de seus ancestrais sociais e ideológicos, já que ela constitui hoje o símbolo de tudo que abominam e daqueles que mais combatem - o orgulhoso lenço vermelho que, negando-se a aceitar qualquer derrota, retorna sempre bizarro ao combate.


(*) Mário Maestri, 55, gaúcho, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net



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