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La insignia
20 de fevereiro de 2005


Ecologia de comunidades


Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2005.



O termo "comunidade" tem uma história de uso bastante flexível na literatura ecológica, quase sempre para fazer referência a um agrupamento de espécies que vivem temporariamente juntas. Dos três níveis tradicionais de estudo em ecologia (organismos individuais, populações de indivíduos, comunidades de espécies), a comunidade representa o mais arbitrário e abstrato de todos, pois, como nem todas as espécies que vivem juntas interagem de modo significativo, muitas vezes é difícil decidir quem participa ou não da comunidade. A rigor, na ausência de mudanças bruscas de hábitat, quando a paisagem natural tende então a diferir de modo mais evidente, a delimitação de comunidades é quase sempre uma decisão arbitrária, que varia de acordo com os interesses do observador.

Dificuldades metodológicas e operacionais, no entanto, não impedem que comunidades sejam um foco recorrente de estudos científicos. Antes de mais nada, o enfoque comunitário é necessário para investigar de modo apropriado uma série de fenômenos ecológicos emergentes (ciclagem de nutrientes, mimetismo, partilha de recursos, sucessão etc.), que não poderiam ser explicados ou reduzidos ao nível populacional - a exemplo, aliás, do que ocorre com atributos populacionais, que não podem simplesmente ser reduzidos ao nível individual.

A ecologia de comunidades mudou bastante ao longo do século 20. Os estudos iniciais eram essencialmente descritivos, inspirados nos relatos que os naturalistas europeus fizeram de suas viagens pelo Novo Mundo, nos séculos 18 e 19. Boa parte do trabalho consistia em nomear e classificar as comunidades, como se elas fossem organismos. Surgiu então a visão de comunidade como um todo integrado ("superorganismo"), defendida inicialmente por F. [Frederick] E. [Edward] Clements (1874-1945), ao mesmo tempo em que surgia uma escola contrária, liderada por H. [Henry] A. [Allen] Gleason (1882-1975). Com o acúmulo de estudos descritivos, diversas generalizações começaram a ser formuladas, embora os avanços tenham sido modestos até meados do século 20 [1]. Foi a partir da década de 1950 que a disciplina ganhou contornos mais nítidos e uma crescente sofisticação teórica e conceitual [2]. No final da década de 1970 e início da de 1980, surgiram polêmicas acirradas em torno do papel das interações contemporâneas (principalmente, competição) na estruturação de comunidades. Alguns autores passaram a enfatizar o papel de processos históricos, não-competitivos. Por sua vez, surgiram propostas metodológicas mais rigorosas, como os chamados "modelos nulos". No fim das contas, as perguntas e os testes tornaram-se mais rigorosos e menos ingênuos - em poucas palavras: afinal, as espécies que vivem juntas evoluíram especializações para evitar competição ou elas são capazes de conviver justamente por que já exploravam recursos algo distintos?


Comunidades, assembléias, guildas

Em termos pragmáticos, biólogos costumam definir comunidades com base em critérios que podem ser reunidos em três grupos principais: critérios espaciais, critérios taxonômicos e critérios tróficos [3]. A definição espacial é a mais ampla e liberal das três, podendo incluir todas as espécies que vivem em determinado hábitat (digamos, a comunidade formada por todos os organismos vivos de uma floresta ou um lago) ou em microhábitats particulares (a comunidade do dossel ou da serapilheira de uma floresta, por exemplo).

Os outros critérios são mais restritivos. Uma definição taxonômica, por exemplo, incluiria, entre todas as espécies presentes em determinado hábitat, apenas aquelas que pertencem a um mesmo agrupamento taxonômico (mesmo gênero, família ou ordem, por exemplo), independentemente do modo como interagem entre si ou exploram os recursos disponíveis. Agrupamentos de espécies definidos com base em afinidades taxonômicas são conhecidos na literatura ecológica como "assembléias" - podemos falar então na assembléia de samambaias ou na assembléia de formigas de determinado lugar.

A definição trófica seria a mais restritiva das três, pois incluiria apenas aquelas espécies que exploram de modo semelhante uma base comum de recursos, a despeito de haver ou não afinidades taxonômicas entre elas. Comunidades definidas com base no uso de recursos são chamadas de "guildas" [4]. Podemos ter, por exemplo, a guilda dos bebedores de néctar ou a guilda dos predadores de sementes de uma floresta. Na prática, os critérios espacial, taxonômico e trófico costumam aparecer combinados, dando origem a uma ampla variedade de definições híbridas, tais como: a assembléia de peixes do rio Madeira; a assembléia de lagartos da ilha do Bananal; a guilda de aves frugívoras de um fragmento de caatinga; a guilda de besouros brocadores do tronco de árvores no Parque Nacional de Brasília; e assim por diante.

Sob qualquer um desses critérios, comunidades quase sempre são vistas como sistemas abertos, integrados por um número finito (ainda que desconhecido) de espécies e indivíduos, nos quais matéria e energia podem entrar e sair. Em termos funcionais, comunidades podem ser resumidamente descritas como "arenas de interações", caracterizadas pela presença de uma ou outra espécie-chave mais evidente [5]. Gravitando em torno desse núcleo básico, haveria um número mais ou menos variável de espécies associadas - isto é, espécies facultativas ou marginais, cuja ausência não descaracterizaria a comunidade, mas cuja presença pode representar um elo adicional de ligação (isto é, de fluxo de materiais) com outras comunidades.

Ao contrário do que possa parecer, no entanto, muitos desses elos são facultativos. Quer dizer, comunidades ecológicas - e os ecossistemas nos quais estão inseridas [6] - não são conjuntos perfeitamente integrados, dentro dos quais todas as espécies dependem umas das outras. A rigor, como foi dito antes, nem todas as espécies de uma comunidade interagem de modo relevante, pois muitos encontros são esporádicos ou apenas acidentais. Uma floresta não é um todo perfeitamente integrado ou um superorganismo, formado por um conjunto pré-determinado de espécies, que vivem em equilíbrio e são mutuamente interdependentes. Ao contrário, há uma boa dose de independência entre as espécies que formam uma floresta. Basta pensar no seguinte: se comunidades fossem mesmo um superorganismo perfeitamente integrado, a retirada de uma espécie qualquer deveria desestabilizar o conjunto ou até provocar o seu colapso. Por sua vez, a espécie retirada de sua comunidade original não deveria conseguir mais se estabelecer em nenhum outro lugar. Muitos casos que nos são familiares contradizem essas duas possibilidades, como mostra a rica literatura sobre as chamadas invasões biológicas, fruto da introdução (deliberada ou não) de espécies em novos hábitats [7]. Também vale a pena lembrar o que ocorre com as plantas cultivadas e os animais de criação que exploramos, quase todos vivendo longe do hábitat original de seus ancestrais.

Ao invés de um superorganismo, uma floresta seria mais bem descrita como um mosaico dinâmico heterogêneo (no tempo e no espaço), integrado por subsistemas funcionais (teias alimentares), que estão apenas frouxa e temporariamente interconectados. Desse modo, embora a aparência de uma floresta possa em linhas gerais permanecer mais ou menos a mesma (ao menos em nossa escala de tempo), provocando em observadores humanos a sensação de permanência, estabilidade e integração, seus atributos característicos, como a composição de espécies e a estrutura geral da vegetação, são dinâmicos e estão sempre mudando. A noção de florestas como paisagens estáveis e imutáveis, só tem uma fiel correspondência em nossas representações esquemáticas ou nas fotografias que tiramos delas.


Afiliação comunitária

Biólogos que estudam comunidades lidam com questões que envolvem a variedade e a abundância relativa de espécies, em diferentes escalas de tempo e espaço: por que umas poucas espécies são comuns e abundantes, enquanto outras são tão raras? Por que as espécies raras continuam sendo raras, enquanto as espécies comuns seguem sendo comuns? De onde vêm as espécies que formam uma comunidade? As espécies que formam uma comunidade local foram sorteadas entre as espécies presentes na região ou existem padrões na estruturação de comunidades? Por que comunidades tropicais são muito mais ricas em espécies do que suas correspondentes de regiões temperadas?

Essas e outras tantas questões intrigantes convergem para um tema central no estudo de comunidades ecológicas: a afiliação comunitária. Em última análise, a questão aqui é: afinal, por que as espécies ocorrem apenas em determinadas comunidades, mas não em todas? Três tipos de fatores ajudam a responder a essa pergunta [8]: restrições ou impedimentos adaptativos, limitações históricas e interações ecológicas.

1) Impedimentos adaptativos. Provocados pela ausência de atributos ("adaptações") que permitam a uma determinada espécie estabelecer populações viáveis em um certo hábitat. Pingüins da Antártida, por exemplo, dificilmente suportariam as condições climáticas predominantes em Manaus, assim como as seringueiras da Amazônia dificilmente conseguiriam prosperar sob as condições predominantes no Pólo Sul.

2) Limitações históricas. No passado, barreiras físicas persistentes (rios, cadeias de montanhas etc.) dificultaram a dispersão e a colonização de novos hábitats pelos ancestrais da linhagem em foco. Por exemplo, não existem pingüins no Pólo Norte, assim como não existem ursos polares no Pólo Sul. Todavia, ambos os animais provavelmente suportariam os rigores climáticos do outro pólo. Quer dizer, se alguém hoje lhes desse uma carona, ambos talvez conseguissem prosperar e estabelecer populações viáveis no pólo oposto; no entanto, como seus ancestrais colonizaram apenas uma das duas regiões que hoje chamamos de pólos, pingüins e ursos polares evoluíram dentro de áreas de distribuição geográfica distintas e mais ou menos restritas.

3) Interações. Mesmo quando não enfrentam as restrições mencionadas nos itens anteriores, muitas espécies não conseguem prosperar e estabelecer populações viáveis em hábitats aparentemente apropriados e acessíveis. De um jeito ou de outro, as comunidades parecem exibir um certo grau de resistência à entrada de novos integrantes, como se houvesse um limite superior ao número de espécies e/ou indivíduos que podem viver juntos. Quer dizer, muitas espécies poderiam expandir suas áreas de distribuição geográfica, de modo a ocupar áreas muito maiores do que aquelas que foram mapeadas pelos primeiros naturalistas. Ao que tudo indica, porém, muitas espécies não fazem isso simplesmente porque estão sendo "rejeitadas" por comunidades estabelecidas, como resultado de interações com outras espécies. Talvez estejam nessa categoria as causas que explicam porque nem todas as espécies de pingüins que vivem no Pólo Sul são vistas juntas, convivendo em um mesmo pedaço de solo antártico.

Em resumo, espécies que são candidatas em potencial à afiliação em determinada comunidade devem, em primeiro lugar, suportar as características físicas do hábitat (insolação, pluviosidade, temperatura, salinidade, textura do solo etc.). Como esses fatores tentem a variar de modo semelhante para as espécies que integram comunidades próximas, tais espécies tendem a exibir uma certa "convergência de aspecto". Por exemplo, quase todos os arbustos e plântulas de árvores que crescem na submata úmida e sombreada das florestas tropicais sustentam folhas de aspecto muito parecido - limbo lanceolado e ápice nitidamente pontiagudo. Tal morfologia foliar, ao que parece, facilita o escoamento da água da chuva e, portanto, resolve um problema comum (i.e., o acúmulo de água e microorganismos sobre as folhas, o que dificulta a fotossíntese). A convergência de aspecto para enfrentar desafios comuns (impostos, digamos, por regimes climáticos semelhantes) é o que explica porque as florestas são tão parecidas, mesmo quando são formadas por espécies botânicas inteiramente distintas.

A faceta mais ecológica da afiliação comunitária é representada pelas restrições impostas pelas interações (diretas e indiretas) entre populações contemporâneas (do tipo predador-presa ou parasita-hospedeiro) e pela dinâmica na exploração dos recursos disponíveis. Em outras palavras, muitas espécies que suportariam as condições físicas de um hábitat podem estar sendo ativamente excluídas por fatores contemporâneos - e.g., os recursos necessários são escassos (alimento, espaço, abrigo etc.) ou há, digamos, uma sobrecarga de inimigos naturais (competidores, predadores, agentes patogênicos etc.). Quando fatores contemporâneos estão mesmo impedindo a entrada e o estabelecimento de espécies exóticas, pode ser então que o relaxamento de um ou outro desses fatores restritivos altere a balança em favor dos intrusos, em detrimento, quem sabe, de espécies que estavam anteriormente bem-estabelecidas. A modificação de extensas áreas de hábitat nativo, provocada pelo desflorestamento, por exemplo, pode representar assim a porta de entrada para muitas espécies invasoras, cujo estabelecimento bem-sucedido tem conseqüências (biológicas e econômicas) que em muitos casos ainda são difíceis de avaliar.


Estrutura de comunidades

A estrutura de uma comunidade é o conjunto de propriedades que resultam das interações entre seus integrantes individuais, como partilha de recursos, número e abundância relativa das espécies, níveis tróficos, entre outros. Muito comumente, estudos sobre comunidades tratam de grupos de espécies que exploram os mesmos recursos (guildas), focalizando o número e a abundância relativa das espécies como indicadores da sua estrutura geral. Nesse sentido, uma questão de interesse fundamental é saber o que determina o número de espécies que podem viver juntas, explorando uma base comum de recursos.

Como regra geral, o número de espécies que formam uma guilda pode aumentar se (i) a base total de recursos for ampliada; (ii) a largura média da fatia explorada por cada espécie for reduzida; ou (iii) o grau de sobreposição entre as fatias exploradas pelas diferentes espécies for aumentado. Interações competitivas entre duas ou mais espécies afetam as opções 2 e 3, embora o papel da predação e de distúrbios naturais recorrentes também sejam importantes. A riqueza e a abundância relativa das espécies que formam uma guilda de consumidores primários (e.g., uma guilda de insetos folívoros), por exemplo, são afetadas pela presença de predadores, de tal modo que a remoção destes últimos comumente resulta em um empobrecimento da guilda. Esse tipo de efeito, aparentemente contra-intuitivo, é ainda mais pronunciado quando os predadores capturam suas presas de acordo com a abundância. Na ausência de predadores, algumas espécies de presas tendem a monopolizar o uso dos recursos, levando espécies menos eficientes às vias da extinção. A reintrodução dos predadores tende a restaurar a situação original, na qual o número de espécies de presas que convivem é maior, ainda que o número total de indivíduos que exploram a base de recursos possa ser mais ou menos o mesmo nas duas situações.

Neste ponto, devemos ter em mente que riqueza e diversidade não são sinônimos, embora sejam conceitos relacionados. O primeiro termo faz referência apenas ao número de espécies presentes em uma comunidade, enquanto o segundo é uma medida que leva em conta tanto a riqueza como a abundância relativa das espécies. Por si só, o número de espécies é insuficiente para representar a diversidade biológica. Para expressar a diversidade de uma comunidade, precisamos obter amostras nas quais possamos distinguir as espécies presentes e suas abundâncias relativas. Duas comunidades podem ser igualmente ricas (i.e., ambas abrigam o mesmo número de espécies), mas exibir índices de diversidade inteiramente distintos. Vejamos um exemplo: imagine duas comunidades, A e B, cada uma das quais formada por 10 espécies de borboletas. Tomamos amostras de igual tamanho das duas comunidades e descobrimos o seguinte: na comunidade A, a amostra é formada por números equivalentes de indivíduos de todas as 10 espécies; já na comunidade B, a amostra contém representantes de todas as espécies, mas o número de indivíduos capturados por espécie difere bastante. Em números:

Comunidade A - Em uma amostra de 100 borboletas, estão presentes todas as suas 10 espécies, cada uma das quais representada por 10 indivíduos.
Comunidade B - Em uma amostra de mesmo tamanho, também estão presentes todas as suas 10 espécies, mas em números desproporcionais: 91 indivíduos são de uma única espécie, enquanto os nove indivíduos restantes representam as outras nove espécies, cada uma das quais representada por um único indivíduo.

Embora a riqueza seja a mesma (10 espécies), as duas comunidades diferem bastante em termos de diversidade, que é muito maior em A do que em B. Não há mágica: a diferença nos índices de diversidade dessas duas comunidades se deve ao fato de que a eqüidade é muito maior em A do que em B. No caso de comunidades igualmente ricas, o índice de diversidade será maior naquela em que a eqüidade for maior [9]. Uma interpretação possível para essa situação é a seguinte: quando a eqüidade aumenta, diminui a chance de que a próxima espécie capturada em um processo de amostragem seja igual à precedente. E vive-versa: quando a eqüidade diminui, aumenta a chance de que a próxima espécie seja igual à precedente. No caso da comunidade B, em mais de 90 por cento das ocasiões amostramos indivíduos de uma única espécie; já na comunidade A, a incerteza sobre a identidade da próxima espécie é muito maior, pois todas são igualmente abundantes.

Essa noção de diversidade tem implicações biológicas importantes. Imagine, por exemplo, uma borboleta adulta grávida, que procura por sítios de oviposição pousando na vegetação de modo aleatório. Imagine também que é só após o pouso que ela testa a identidade da hospedeira em potencial; se a planta não é adequada, a fêmea abrevia suas atividades e reinicia sua busca aleatória. Pois bem, para todo e qualquer herbívoro que procure plantas-hospedeiras desse modo, um aumento na diversidade local de plantas significa um aumento correspondente no grau de incerteza sobre a identidade da próxima planta sobre a qual pousará. Generalizando ainda mais: a busca aleatória de recursos torna-se um modo progressivamente mais inconveniente de forrageio à medida que a diversidade local aumenta [10].


Promovendo a diversidade

As comunidades mais ricas e diversificadas não estão distribuídas de modo aleatório pelo planeta. Ao contrário, um dos padrões biogeográficos conhecidos mais fundamentais é o aumento que ocorre na riqueza e na diversidade de espécies quando nos deslocamos dos pólos em direção ao equador: há (muito) mais espécies vegetais e animais vivendo nos trópicos do que nas altas latitudes; comunidades temperadas, por sua vez, tendem a ser dominadas por umas poucas espécies. Mais de 30 hipóteses diferentes já foram propostas para explicar a origem e a manutenção desses gradientes latitudinais, embora apenas uma meia dúzia delas sejam atualmente consideradas como promissoras [11].

As hipóteses correntes diferem, entre outras coisas, pelo alcance de suas pretensões explicativas; as mais abrangentes procuram responder questões do tipo "por que existem mais espécies vivendo nos trópicos?", sem levar em conta particularidades taxonômicas ou ecológicas. Um enfoque menos abrangente restringe a atenção sobre determinados grupos taxonômicos (borboletas, formigas, samambaias etc.) ou ecológicos (produtores primários, herbívoros, parasitóides etc.). Um exemplo de hipótese deste último tipo afirma que a elevada riqueza de espécies de árvores observada nas florestas tropicais é uma conseqüência da heterogeneidade físico-química do solo. Solos heterogêneos, compostos por um mosaico de manchas diferentes entre si, por si só favoreceriam o estabelecimento e o crescimento de diferentes espécies de árvores, cada uma delas mais ou menos especializada em um determinado tipo de mancha. Para certos autores, a mudança na composição de espécies entre comunidades vegetais que crescem em solos distintos refletiria, portanto, diferenças inerentes às próprias espécies vegetais. No fim das contas, a especialização elevaria o número total de espécies de árvores que poderiam conviver e partilhar recursos sobre um solo heterogêneo. O alcance dessa hipótese poderia ser estendido para os níveis tróficos seguintes, uma vez que diferentes espécies de árvores em geral formam a base de sustentação de diferentes comunidades de consumidores - i.e., cada uma é explorada por um elenco próprio de animais herbívoros, que por sua vez são atacados por um rol mais ou menos particular de predadores e parasitóides e assim por diante.

Em certo sentido, essa hipótese foi recentemente contestada. Isso ocorreu depois que Paul V. A. Fine (Field Museum of Natural History, Chicago, EUA), Italo Mesones (Universidad Nacional de la Amazonia Peruana, Iquitos, Peru) e Phyllis D. Coley (University of Utah, Salt Lake City, EUA) publicaram os resultados de um estudo experimental pioneiro [12], conduzido no campo com o objetivo deliberado de investigar (i) o papel do tipo de solo sobre o crescimento e o estabelecimento de árvores; e (ii) o papel combinado do tipo de solo e da carga de herbívoros sobre o crescimento e o estabelecimento de árvores. Mais especificamente, o que eles fizeram foi monitorar, ao longo de 21 meses (de maio de 2001 a fevereiro de 2003), o crescimento de plântulas de 20 espécies comuns de árvores na Reserva Biológica de Allpahuayo-Mishana, próxima a Iquitos (Peru). A vegetação do local cresce sobre um solo nitidamente heterogêneo, formado por um mosaico de manchas bem-definidas, incluindo: solos arenosos extremamente pobres em nutrientes e solos argilosos, mais ricos em nutrientes. Além da composição nutricional, esses dois tipos de solo diferem bastante na capacidade de armazenar água - a capacidade de retenção da água em geral diminui à medida que saímos de um solo argiloso em direção a solos mais arenosos. Estudos anteriores, conduzidos por outros autores na Reserva de Allpahuayo-Mishana, já haviam mostrado que esses dois tipos de solo sustentam floras distintas, ainda que relacionadas: diversos gêneros de árvores, por exemplo, possuem espécies particulares em cada tipo de solo.

O que os pesquisadores fizeram? A exemplo de tantos outros trabalhos de campo em ecologia, o experimento envolveu mais engenhosidade e trabalho duro do que equipamentos caros e sofisticados. O desenho experimental envolveu o seguinte: plântulas de árvores "especialistas" em solo arenoso foram colocadas para crescer sob quatro cenários distintos - solo arenoso, sem a presença de herbívoros (que foram mantidos afastados por uma gaiola de exclusão); solo argiloso, sem herbívoros; solo arenoso, com herbívoros; e solo argiloso, com herbívoros. Os mesmos cenários foram montados com plântulas de árvores especialistas em solo argiloso.

E o que eles descobriram? Bem, as especialistas de solo argiloso cresceram significativamente mais depressa do que as árvores de solo arenoso em ambos os tipos de solo, mas com um detalhe muito curioso e importante: apenas quando os herbívoros foram mantidos longe. Quando os herbívoros entraram em cena, o resultado experimental refletiu o que é visto na natureza: plântulas de árvores especialistas em solo argiloso cresceram melhor apenas neste tipo de solo, enquanto plântulas de árvores especialistas em solo arenoso cresceram melhor em seu próprio tipo de solo. Trocando em miúdos: os resultados experimentais "explicam" o que se passa na natureza, mas de uma jeito bem mais sutil do que as primeiras impressões levam a crer. Quer dizer, as árvores estão crescendo onde o fazem melhor levando em conta o contexto comunitário em que vivem, e não porque sejam incapazes de crescer em outro lugar. Sem as restrições impostas pelas interações, as árvores especialistas em solo argiloso muito provavelmente já teriam invadido as manchas de solo arenoso, levando as árvores que crescem aí às vias da extinção. Nesse sentido, a diversidade poderia ser vista como uma propriedade genuinamente emergente das comunidades.


Notas

(*) Biólogo (meiterer@hotmail.com), autor do livro ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003).

1. Um trabalho pioneiro na história da ecologia de comunidades foi realizado nos domínios do cerrado de Lagoa Santa (MG); ver Warming, E. 1908. Lagoa Santa: contribuição para a geographia phytobiologica. BH, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais; sobre as noções de Clements e Gleason, ver Ricklefs, R. E. 2003. A economia da natureza, 5a edição. RJ, Guanabara Koogan.
2. Para detalhes históricos, ver Ehrlich, P. R. 1993. O mecanismo da natureza: o mundo vivo à nossa volta e como funciona. RJ, Campus; e Kingsland, S. E. 1985. Modeling nature: episodes in the history of population ecology. Chicago, The University of Chicago Press. Sobre as polêmicas referidas no texto, ver Strong, D. R., Jr.; Simberloff, D.; Abele, L. G. & Thistle, A. B., eds. 1986. Ecological communities: conceptual issues and the evidence. Princeton, Princeton University Press; para um balanço recente, ver Ricklefs, R. E. 2004. A comprehensive framework for global patterns in biodiversity. Ecology Letters 7: 1-15.
3. Ver Roughgarden, J. & Diamond, J. 1986. Overview: the role of species interactions in community ecology. In Diamond, J. & Case, T. J., orgs. Community ecology. NY, Harper & Row.
4. Para uma distinção operacional entre comunidades, assembléias e guildas, ver Fauth, J. E. & outros 5 co-autores. 1996. Simplifying the jargon of community ecology: a conceptual approach. American Naturalist 147: 282-286. Em obras publicadas no Brasil, a palavra inglesa "guild" [guilda] aparece às vezes traduzida como "grêmio". Para a formulação original do conceito de guilda, ver Root, R. B. 1967. The niche exploitation pattern of the blue-gray gnatcatcher. Ecological Monographs 37: 317-350.
5. Espécies-chaves podem ser entendidas como aquelas cuja presença caracteriza e em boa medida define a base ou a própria dinâmica dos recursos explorados pelos outros integrantes da comunidade - e.g., árvores cujos frutos são utilizados por muitos consumidores diferentes ou grandes animais predadores que ocupam o topo da cadeia alimentar. Para detalhes sobre esse conceito, ver Gilbert, L. E. 1980. Food web organization and the conservation of Neotropical diversity. In Soulé, M. E. & Wilcox, B. A., orgs., Conservation biology. Sunderland, Sinauer.
6. Comunidades ecológicas estão inevitavelmente inseridas em uma matriz física (elementos do solo, da água ou do ar), cujo conjunto recebe o nome de "ecossistema". Para um enfoque ecossistêmico em trabalhos de campo, ver Golley, F. B.; McGinnis, J. T.; Clements, R. G.; Child, G. I. & Duever, M. J. 1978. Ciclagem de minerais em um ecossistema de floresta tropical úmida. SP, EPU & Edusp.
7. Ver exemplos em Crosby, A. W. 1993. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. SP, Companhia das Letras; para uma discussão mais técnica, ver Groves, R. H. & Burdon, J. J., eds. 1986. Ecology of biological invasions. Cambridge, Cambridge UP.
8. Ver referência citada em [3].
9. A riqueza de um lugar é o número de espécies presentes, enquanto a diversidade é uma medida que combina a riqueza e a abundância relativa das espécies. Trata-se, portanto, de uma medida mais difícil de ser obtida. Existem vários índices de diversidade, sendo que um dos mais utilizados é o chamado índice de Shannon-Weaver, comumente simbolizado por H. Para detalhes técnicos, ver Magurran, A. E. 1988. Ecological diversity and its measurement. London, Chapman.
10. Sobre comportamento de forrageio, ver Krebs, J. R. & Davies, N. B. 1996. Introdução à ecologia comportamental. SP, Atheneu.
11. Willig, M. R.; Kaufman, D. M. & Stevens, R. D. 2003. Latitudinal gradients of biodiversity: pattern, process, scale, and synthesis. Annual Review of Ecology, Evolution and Systematics 34: 273-309.
12. Fine, P. V. A.; Mesones, I. & Coley, P. D. 2004. Herbivores promote habitat specialization by trees in Amazonian forests. Science 305: 663-665.



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