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30 de março de 2003 |
Urariano Mota
Não sei que anjo mau pôs na cabeça do meu pai o sonho impossível de um dia ser dono daquela casa. Meu pai era um homem que acreditava no poder da força de vontade. E a esta força era soprado de vez em quando o presságio de um mau anjo.
Nós morávamos antes num quartinho apertado, num beco. Melhor dizendo, antes nós morávamos numa casinha subdividida em quatro células, dois "quartos", uma "sala" e uma "cozinha", conjunto todo da dimensão de um quarto. À hora de dormir mal respirávamos, eu, quatro irmãos, meu pai e a madrasta. Foi nessas condições que um anjo mau lhe soprou. O destino todo do meu pai foi a atuação de um espírito nas circunstâncias brutais de sua vida. Nele, a flor não brotou da lama. Não se abriram pétalas roxas no negror do pântano. Foi fiação escura da floração do mangue. O espírito, que em outras condições poder-se-ia materializar nas ternuras do coração, nele sobreviveu numa luz forte, que o elevava, miseravelmente, da miséria maior que o prendia. Meu pai falava inglês, francês, alemão. Mas nele isto não foi um aprendizado natural de civilização. Foi apenas um movimento prático de um garçom na beira de cais, que precisou desse três instrumentos para beber, comer, vestir e ter dólares como os gringos. Era como um desenhista que da natureza visse apenas um conjunto de linhas retas e curvas num plano. E se dissesse, a si mesmo: "para minhas necessidades, isto me basta". Ao mesmo tempo, mestiço, negro, meu pai sabia o seu lugar, não como um resignado encolhimento, mas como uma auto-suficiente diferença. É claro que nessa auto-suficiência residia também um certo ressentimento, afligindo e destruindo pessoas, que para ele se transformavam em instituições ou símbolos a serem pisados. Ele as forçava ao duelo. Ele gostava de se cercar de médicos e advogados, os doutores ilustres do bairro, atraindo-os para o combate com a isca do seu uísque arrastado dos navios da Mccormack. E lá pras tantas desandava expressões e invocações em inglês. O médico, que a essa altura não era mais um humilde servente da boa bebida, mas um Branco Senhor responsável por tantas humilhações passadas, defendia-se: "eu prefiro o francês. A língua de Pasteur". Era a deixa. Torrentes de Pétain Napoleão Luís XV Brigite Bardot gendarmes desciam fluentes na mesa, em francês de aluvião. O Culto Doutor Branco ia às cordas. Um jab, um nocaute: "eu não sei mais francês por causa dos maneirismos de pederasta", dizia meu pai. E afetava com a boca de lábios grossos, sem dentes, biquinhos oxítonos de afeminado. Para completar: "eu me sinto mais à vontade no alemão, uma língua poderosa, máscula". Naquele tempo nós possuíamos uma fartura de banana. Cento, cento e meio de bananas eram compradas todos os sábados. E a quantidade no balaio repleto, coroado por laranjas, e tomates, e abacaxis, enchia as vistas da vizinhança. Muita banana era um indicador seguro de que não passávamos fome. Pelo contrário, vivíamos fartos. O que nos deixava na condição de ricos na enfiada de casinhas. Tornou-se então imperioso mudar-nos para um lugar que fosse o nosso meio. O anjo mau deu-lhe um sopro para um vôo mais alto. A casa para onde nos mudamos me deixa até hoje a lembrança de um casarão tão imenso quanto escuro. Nós nos dizíamos, "a casa é grande". E com isso queríamos dizer não só que pela primeira vez morávamos realmente numa casa, como também que ela possuía cinco quartos, ladrilhos, duas salas, terraço, jardim e quintal. E uma fachada imponente, à semelhança dos jazigos grandiosos de cemitério. Mudança dessa natureza havia de comportar mudança de relações, de móveis, de estilo de vida. Perdemos o contato com os vizinhos do beco, embora ficássemos deles bem próximos, uns cinco minutos a pé. Ao mesmo tempo ficamos ilhados, entre duas casas semelhantes à nossa, porque éramos afinal gente do beco. Todas essas coisas mesquinhas, precárias, miseráveis, desabrocharam com uma força inesperada. Fomos proibidos de sair à rua, de brincar com as crianças do beco, a essa altura, moleques. E brincar para uma criança é a natureza mesma de sua relação com o mundo. Com isso nós apagamos de nosso convívio, e de nossa lembrança, Nego, Dirico, Goiaba, Delma, Dadá. Elegemos gente que comia queijo prato, maçã, leite com chocolate, para freqüentar-lhes a casa, ver seus brinquedos de corda, e suas roupas de domingo de todos os dias. Minha madrasta passou a nos chamar de mundiça, ora pelos hábitos adquiridos por gerações de moradores de cortiço ou de beco, ora pelo não aprendizado do que ela julgasse ser boas maneiras: esses vernizes de civilização, que quando não são naturais são um arremedo: lavar as mãos antes das refeições, mas com raro sabão, para economizar o sabão; no ato seguinte, de mãos banhadas, pegar em alimentos que não tiverem igual cuidado, pois que estavam expostos às moscas e postos sobre uma mesa apenas espanada; comer de garfo e faca - uma tortura, pois não víamos como dois ganchos, um à direita, outro à esquerda, poderiam substituir uma colher; dar bom dia, boa tarde, boa noite, cumprimentos de tal maneira cumprimentos que não se ligavam aos movimentos do dia, pois aqui e ali desejávamos boa tarde quando devíamos dizer bom dia. Não chegávamos a personificar um novo burguês fidalgo porque nessa mudança de pobres por formação para menos miseráveis por pretensão, havia um quê de infelicidade, ou de uma progressiva tristeza. O drama sufocava o cômico. Passamos a ler os jornais. Mas aquelas folhas impressas eram como virgens medievais, que eram desvendadas na seguinte ordem: meu pai, minha madrasta, e o resto. "Não quero que ninguém leia o jornal antes de mim". Aliás, o próprio ato de ler era um ato sagrado, mas de um sagrado proibido, a que se tinha acesso pelo caminho da adoração ou por um fio da interdição. "Menino, o que você está lendo? Ah, a vida de São Domingos Sávio". Gibis eram proibidos. As revistas coloridas deviam permanecer imaculadas. Os livros, só os didáticos. O cotidiano da casa foi-se enchendo de deveres: hora de comer, hora de tomar banho, hora de ir para a escola, hora de dormir. Não havia espaço para a antiga liberdade. Só uma grande margem para a simulação ou a fuga. A madrasta, enquanto estivemos no beco, não pudera ser a mulher, o gênio, o temperamento do seu costume. Os vizinhos já conheciam antes a minha mãe, o que não deixava minha madrasta à vontade. No beco, ela era a mulher virtuosa, de roupas compridas, atacadas, uma destinada à missão de suavizar feridas. Na casa ela se fez. O mau sopro que impulsionou o velho para sonhos mais altos, deixou-a mais livre para assumir o seu caráter. Vestiu-se de manhas que antes não apareciam, impôs regras mais ferinas e espicaçantes. Passamos a chamá-la de "mamãe". E isto foi conseguido sob promessas de um mundo menos tirânico ao mesmo tempo que sob ameaças de mais tirania. Olhando bem para trás, a gente percebe que o exercício da escravidão e da tirania são uma só e uma só coisa: enquanto "mamãe" nos dava banho, perfumava e vestia-nos, ela nos dizia, "que bom seria que vocês me chamassem de mamãe. Aí eu sairia com vocês, levava-os a passear, vocês iam ser meus filhos". Isto, para um órfão, não é só um balsamo, é quase um reencontro de um bem perdido; mais adiante, no entanto, nas faltas cometidas pelos... filhos, ela, se não espancava, fazia a intriga para o meu pai, aumentando, atiçando a raiva do velho à hora da janta, quando ele mal chegava. Tornava-se crime brincar na rua, porque brincar na rua com outros meninos transformava-se, em suas palavras, em porqueira ou anarquia. O velho, irado, descarregava na mangueira e nos socos a sua jactância de um passado brutal: "bato num filho como quem bate num homem". A docilidade arbitrada na palavra "mamãe", quando a pronunciávamos, tornou-se então uma defesa, um recuo instintivo, quase um reflexo animal, de pescoço retrátil de um cágado que se furta à hostilidade. Mamãe. Passamos a aparecer, para o público externo, limpos, engomados, perfumados, no mesmo expediente de uma babá que puxasse os cabelos das crianças na ausência dos pais ("do povo"), e as deixassem cobertinhas de pó e laços de fita na sua presença. Internamente, porém, a sopa vinha com mais caldo e pedaços grossos e indigestos de cenoura e jerimum, o feijão com aterros de farinha e pelancas de carne. Meu pai parecia nada ver. Ele estava mergulhado em sua própria determinação. Se fôssemos mortos durante o dia, eu quero crer que à noite, quando chegasse, pelo estorvo ele surraria nossos cadáveres, para logo adiante encomendar nossos caixões. Quando se desse conta de nossas mortes, muito tempo depois, ele certamente as sentiria, para mais certamente ainda construir uma mitologia, onde figuraríamos como Os Filhos Sacrificados ao Destino. Porque a qualidade maior do meu pai, e qualidade vai aí apenas como um atributo que o personifica, era a vontade. Praticamente ele se considerava um homem que poderia ser o que quisesse. "Eu já fui guia de cego", dizia, num rompante que nada possuía de humildade, mas de arrogância, para deixar bem claro aonde havia chegado pelo próprio esforço: àquela casa, àqueles móveis, àquele sofá roxo de florezinhas encardidas, à fluência do inglês, do alemão e do francês a que derivava, para empulhar os doutores. Dizia: "meu pai era um português branco, um pastor crente, que emprenhou a negra da minha mãe para depois puxar a mala. Eu fiquei órfão de pai vivo. Eu fiquei só, eu e eu sozinhos. Minha mãe era tão ignorante que nunca me botou na escola, que era pra eu não aprender a fazer bilhete pra namorada. Tudo que sei eu aprendi sozinho. No inglês a primeira palavra que eu aprendi foi I. Eu achava graça, 'ai', como uma dor, então 'ai' quer dizer 'eu'". A vontade do meu pai, então, idealizou que ele fosse o dono daquela casa. Nós, nessa mudança de hábitos, havíamos sido até então somente inquilinos. Nós havíamos adquirido um novo modo de ser quase que por irradiação. O halo, a aura provisória que adquirimos, luz de flash-light, meu pai certamente pensava vir de um spot-light, ou, se estivesse embriagado, de um astro invernal. Para que todos vissem as instalações dos novos fidalgos, ele tratou de pintar a casa toda de verde, mas de um verde perene, grosso, escuro, de tinta a óleo. A casa passou a rebrilhar como musgo. Isto naturalmente não passou despercebido ao senhorio. O proprietário era um espertalhão, que divisou na vaidade do inquilino a oportunidade de fazer um bom negócio. E gritava no assédio: "Comandante, quando vamos comprar o nosso navio?". O comandante relutava. Era como um menino acanhado, que olha de lado e se enrosca ante um chocolate ofertado por um desconhecido. Depois o comandante crescia e assumia a sua patente: chamava o proprietário para novas rodadas de uísque, como quem nada quer. Mas era inútil. A vontade de ser dono da casa, ela própria já havia apertado o laço, ela própria já havia fechado a armadilha. A vontade de ser dono em meu pai, a vontade de ser um proprietário, já existia antes mesmo de qualquer objeto. O seu desejo era a posse, da mulher, dos filhos, da casa, dos protegidos, do seu destino. Mas nessa posse não havia zelo, não havia envolvimento com carinho, à maneira de um afeiçoado a flores que zelasse por seu jardim. A posse era conquista bruta, que lhe deixasse a ilusão de que os objetos ficariam inertes, dóceis, a um estalar de dedos. Mas o bom do ridículo da vida é que o pequeno chuta o pequeno, que chuta outro pequeno, que no final todos se chutam. A essa vontade do meu pai, o proprietário parecia dizer, "esses imundos querem casa, pois vão tê-la, à minha maneira". E sorria: Comandante, quando vamos desamarrar a âncora? Meu pai devolvia-lhe, "o imbecil não sabe nem o valor dessas paredes. Não sabe sequer o custo, o trabalho que dá levantar esse telhado. E ainda que me passar no bico. Hum". E respondia: O seu navio tem reforma demais pra ser desamarrado. É pesado. Comandante, dê o grito: dê o grito, que eu sou obediente. É cedo.(E depois de uma pausa) Tem navio no cais com novo estoque da Escócia. Quando vamos bebê-lo? Às ordens, comandante. E batia continência. O acordo viria a galope. Entre uma rodada e outra do uísque contrabandeado da Mccormack, entre maços de Camel e de Chesterfield, generosamente espalhados sobre a mesa, o proprietário, sem pejo dos mimos que recebia, riscou sua oferenda, numa noite de sábado. Tinha a voz embargada: Olhe, comandante, falo desarmado, com o peito descoberto. Esta casa em que o senhor mora, que por todos os direitos já é sua, meu pai me deu por herança. Eu não quero mais. Casa pra mim é feito árvore, ela só serve enquanto der fruto. Esse negócio de ficar recebendo aluguel, aquela mixaria, todos os meses, não me satisfaz. Eu quero a safra toda, de toda a vida, de uma só vez. O senhor me entende? Desembuche, amigo. Comandante, minha proposta é a seguinte: o senhor me dá uma entrada de trezentos mil, e paga o resto de em doze prestações de vinte e cinco mil cruzeiros cada uma. Pronto! Negócio fechado? O negócio se fechou. Meu pai resmungaria, ao amanhecer do domingo, que somente no valor do adiantamento já estava quase todo o preço da casa. Mas não falava que concordara, sem discussão, pelo capricho de ser o dono daquela casa nas barbas do ex-proprietário, que vinha a ser também o nosso vizinho. Um capricho que viria a se mostrar caro. Como toda traição, aquela se anunciou por indícios absolutamente irrelevantes. Primeiro foi o dedão do pé, que amanheceu inexplicavelmente dormente. Meu pai não lhe deu muita atenção. Depois foi o pé, e mais adiante a própria perna direita, que perdeu gradativamente a sensibilidade. Mas isso ainda não era o mais grave, porque meu pai continuou a ser o comandante, a ir ao trabalho apoiado em uma bengala, e a origem do mal era atribuída ora a uma remota queda em alguma esquecida tarde, ora ao mais simples reumatismo, associado ao mistério de alguma desconhecida complicação. Quando o mistério atingiu a paralisação de toda a região inferior à cintura, foi que o anjo mau perdeu o fascínio, embora conservasse a hierarquia de anjo grave, que impunha respeito: o ex-proprietário, ou proprietário, não se soube ao certo depois, argumentou, amigavelmente, que tendo em vista o estado de saúde do meu pai, abria mão de receber as prestações devidas pelo comandante, até o dia do seu completo restabelecimento. A casa podia esperar, a saúde do comandante, não; não, isto, a saúde, em primeiro lugar. Acreditamos, por força de ter que acreditar. O mal era câncer, na espinha dorsal. God era Cod. O deus do meu pai era bacalhau, na mesma confusão mental em que ele uma vez se atrapalhou, querendo God escreveu Cod, bêbado, quando tentava o nome de sua força na areia do quintal. A sua força era composta daquela matéria pobre, de cheiro ativo, que indicava a miséria de quem a comesse naquele tempo. A propriedade da casa não se concretizou, pelo não cumprimento da promessa de compra, expressa no restante das prestações de vinte e cinco mil cruzeiros. O comandante ter-lhe-ia passado um calote, conforme arrazoou nosso vizinho, ao pedir a retomada do imóvel. Mau pai ficaria reduzido a seus olhos frios, grandes, pidões, sobressaindo-se no conjunto do corpo, um fio dependurado à sua cabeça como um apêndice. O anjo mau pairou na sua dor, crucial, que era mais consciência da própria queda que dor física, do tumor necrosando um terminal nervoso. A trocadilhos graves, a erros ambiciosos ninguém ri. Talvez por isso no enterro do meu pai ninguém tenha sorrido da lembrança do homem que buscando Deus, querendo God, achou Cod, o bacalhau que circunscreveu o mestiço raivoso na sua dimensão. |
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