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La insignia
10 de setembro de 2006


A segunda morte de Trotsky


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, setembro de 2006.


Noite de sábado, o bar de seu João, que chamávamos de barraca do caldinho, com as portas cerradas. Sete horas, 1971.

Eu, Spinelli e Zanoni estamos em nossas melhores roupas para a sessão de arte do Cine Coliseu. Em frente ao pequeno muro, que limita o terreno da casa e barraca do seu João, fazemos o nosso ponto de partida.

O calor da noite do subúrbio de Água Fria faz seu João sair de camisa aberta sobre o ventre. Ele sai para nos ver, para um dedo de prosa, mas sai como se saísse por acaso, sem rumo, como se viesse apenas para descansar os olhos na poeira da noite. Amiúda os olhos e, para melhor assegurar-se de que não existem estranhos por perto, começa a conversa por comentários irrelevantes, enquanto vira o rosto para um e outro lado. Recostado ao portão da casa.

- Já "entropofogou", Zanoni?
- Tudo "entropofogado", tio.

"Entropofogar" é um verbo criado por seu João, que nem sempre identificamos o sentido. Entropofogar é um verbo que muda conforme as circunstâncias antenadas entre ele e seus íntimos. Pode significar, "você já comeu?", ou "deixou tudo arrumado, camarões, suco de limão, aguardente, para o domingo?", ou ainda: "já pôs no bolso o pagamento da sua semana?", ou, se a referência for a um cliente, "fulano estava embriagado?". Quem sabe? Quem há de saber? Seu João já insinuou, nesses tempos da ditadura militar, a sua máxima e provérbio de segurança: "Nunca se sabe". Então ele se dirige a nós, resto do grupo e sua presa e vítima dessa noite:

- Vão entropofogar?

Entropofogar agora pode significar, possivelmente, vão ao puteiro, meninos?

- Não, a gente vai ao cinema. Ao cine de arte, respondemos, mui dignos.
- Ah, voltam entropofogados.

Voltam fodidos, ele pode agora querer dizer. Engolimos seco. Não vamos discutir a volta, como se estivéssemos satisfeitos de corpo e alma, de uma sessão do cinema de arte! Seu João agora mais se acerca, para estreitar melhor o laço. Mas ainda com cautelas.

- Está um calor danado. As folhas nem balançam.

Olha para um lado, para o outro.

- João Aticum-Cagão passou por aqui hoje. Já chegou entropofoga. Queria porque queria puxar assunto sobre os Estados Unidos, sobre o americano, quer dizer, queria era meter mesmo o pau no imperialismo americano. Com o balcão cheio de gente. Fosse eu dar um pouquinho de corda, daqui a pouco ele estava falando... (baixa a voz) sobre o Vietnã, sobre Cuba, sobre Fidel ... Hem? Eu sou menino?! Ora sebo.
- Mas seu João, pondera Spinelli, uma conversa assim, desde que se o limite o nível da abordagem ...
- E eu sou navio, Spinelli? Hem? (Dirige-se ao resto, em busca de apoio) Para a minha barraca vem todo o tipo de gente. Homem, mulher, velho, jovem, preto, branco, entropofoga de lá, entropofoga de cá...
- Mas seu João ...
- Escute, preste atenção. Nunca se sabe. (E mais baixo) Ou você acha que eles vêm pra barraca de farda e baioneta? Tinha graça.

Corre um murmúrio entre nós que não se articula em som mais inteligível. Este murmúrio quer significar que discordamos do seu João, mas não temos muita força para soltar uma resposta que o contrarie. Para contornar o impasse, um de nós aponta uma saída:

- Vamos? Se não a gente perde o filme.

Mas é claro que seu João não está satisfeito. Por nosso murmúrio ele sabe que a sua tese não obteve concordância. E, mais claro ainda, ele não vai ficar sozinho a olhar as pedras da Rua Zeferino Agra, na altura do número 178. A um nosso movimento:

- Escutem. Psiu! Vocês entenderam?
- Claro, seu João. Nós entendemos ...
- Não é isso não, meu filho. Vocês ainda não entenderam. Só mais uma coisa.

E nos chama, com gestos, enfáticos e enfático, para um último segredo junto ao murinho. Em voz baixa:

- Tem muito quinta-coluna por aí, vocês estão entendendo? Com essa gente só o bigode de aço. Inoxidável. O bigode não tinha mas mas nem pero pero.

À medida que a sua voz baixa, no seu rosto sobem cores sanguíneas. A quem passa pela margem do Colégio Alfredo Freyre, no outro lado da rua, parece que ele nos passa uma inflamada crítica.

- Vocês sabem como morreu Trotsky? (Murmúrios) Psiu, escutem.

Calamo-nos, à sua volta.

- Desde Lênin que Trotsky pregava a contra-revolução. Mas Lênin era meio diplomata, muito intelectual, era Trotsky desfazendo e Lênin conversando, "pode ser Trotsky, vamos ver, Trotsky"...

Seu João respira fundo, como quem chega ao fim de longas caminhadas e conversações.

- Lênin morre. Lênin morre e assume Stálin, o bigode de aço. Aí a conversa já era outra. Era ação! vocês estão entendendo? A situação mudou. Os capitalistas tudo querendo, ó, botar nos russos, fazendo o cerco, hem, que é que vocês querem? É a mesma coisa que seu doutor e a senhora madame chegarem aqui, na minha barraca, pra mudar meu comércio, ao gosto deles, hem? - É deste muro pra fora.

Escutem. Então o que faz Trotsky? Se é de Trotsky mudar, não, ele achou que com o bigode de aço era mais fácil. Ele passou a querer, abertamente, derrubar Stálin. Escutem. Stálin, ainda por respeito a Lênin, tentou conversar: "Trotsky, você pare com isso. A coisa não é do jeito que você quer não. Vamos tirar por menos". E Trotsky falando, "Não, porque é muito cedo para a Rússia virar comunista, vamos frear, vamos parar", isso falando pra todo o mundo. (E noutro tom, como quem segreda: - O que ele estava querendo mesmo era fazer o jogo do inimigo, vocês estão entendendo? Era...) E Stálin, já perdendo a paciência: "Trostsky... Trotsky, eu estou lhe avisando". E Trotsky, pa-pa-pá, pô-pô-pô, está errado... e abrindo o flanco para o inimigo. Aí Stálin perdeu a paciência e expulsou Trotsky: "Dane-se, vá lá pra juntos dos americanos".

Escutem. Foi assim mesmo. Prestem atenção. Vocês notem que se Stálin fosse um homem perverso, podia ter despachado Trotski ali mesmo, de vez, lá na Rússia. Força, coragem, pulso forte, não lhe faltavam. Se ele arrasou as tropas de elite dos nazistas, se ele destruiu a maior força militar do mundo, hem?

- Mas seu João, ousamos provocar, não foi o general-frio que derrotou os nazistas?
- É, o general-frio ... Stálin era um general frio desgraçado.

E fica, a balançar o queixo, encarando-nos.

- Psiu! Não interrompam. Aí Trotsky roda, roda, e pára no México. Pára lá, mas continua falando. Vocês vão vendo como são as coisas. De lá do México Trotsky continuava a querer comandar os quintas-colunas da Rússia. E Stálin, de vez em quando mandava um aviso (e seu João diz "Trotsky" como um cão que rosna diante de quem lhe deseja tomar o osso): "Trotsky ... Trotsky .... olhe....", e Trotsky falando. Trotsky falava, escrevia, fazia ligações com os russos reacionários, com os ingleses, com os americanos...

Seu João olha para mim, olha para Spinelli, olha para Zanoni. Tem agora a certeza absoluta de domínio, é dele o poderoso desfecho.

- Pra encurtar a história. Encurtando a história. Aí lá no México, lá mesmo no México, espontaneamente, o povo mexicano se revoltou e matou Trotsky.

Sobre nós cai um silêncio que sentem os incrédulos diante de um testemunho de fé. Ficamos sem o menor ânimo de opor uma restrição, de corrigir, de emendar este segundo assassinato de Trotsky.

Deslizamos:

- Vamos?

Vamo-nos. Da esquina, antes de atingirmos a Júlio Ramos, ainda vemos seu João a nos fazer acenos, "psiu, só mais uma coisa". Apressamos o passo para o Cine Coliseu., antes que seja tarde. A Confissão de Costa-Gravas nos espera.



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