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La insignia
22 de outubro de 2006


Brasil

O banquete de Pantagruel


Mário Maestri (*)
La Insignia. Brasil, outubro de 2006.


A democratização da posse da terra é realidade irresoluta que sangra incessantemente a sociedade brasileira. A importância histórica da estância, a permanência do latifúndio, a falta de terra para o pequeno produtor ensejam que a questão fundiária assuma caráter candente no Rio Grande do sul. Porém, paradoxalmente, não possuímos uma história geral da fazenda pastoril e são raros os estudos de caráter científico sobre a gênese da propriedade fundiária sulina.

A historiadora Helen Ortiz acaba de defender, em 29 de setembro, dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UPF - "O banquete dos ausentes: a Lei de Terras e a formação do latifúndio do norte do RS - Soledade, 1850-1889" - que avança substancialmente a compreensão da história da formação do latifúndio no município de Soledade, no Rio Grande e no Brasil. Examinaram o trabalho os doutores Mário Maestri [orientador] da UPF; Paulo Zarth, da Unijuí; João Tedesco, da UPF.

A aplicação, em 1530, da Lei das Sesmarias tentava transpor o feudalismo lusitano à América portuguesa. A propriedade latifundiária permitiria que os senhores vivessem nababescamente do trabalho do servo, então já liberto da servidão da gleba. No Novo Mundo, porém, a instituição assumiu caráter claramente escravista, pois a abundância de terra liberava o homem livre da obrigação de mourejar como rendeiro ou assalariado na grande propriedade. Em verdade, ele podia ocupar nesga de terra devoluta, para viver, como posseiro, de produção de subsistência. A vida do posseiro pobre era sempre preferível à do trabalhador arrendado do latifúndio.

Já foi dito sinteticamente, que, para que haja exploração do produtor direto, onde a terra é livre, o trabalho deve ser escravizado. De 1530 a 1822, a ocupação do Brasil apoiou-se no latifúndio, na escravidão e na monocultura exportadora. Os sesmeiros recebiam da Coroa, de mão beijada, treze mil hectares, se tinham cabedais para povoá-los com cativos, que produziriam rendas para eles e para o Estado. À margem do poderoso latifundiário e de sua ordem estatal, vicejou o posseiro livre pobre, ocupando precariamente pedaço de terreno, habitualmente expulso de sua nesga de terra pela expansão da fronteira agrícola mercantil.

Após a Independência, quando da Constituição outorgada, em 1924, a arcaica Lei de Sesmarias foi abolida, sem ser substituída por qualquer outro ordenamento institucional. Com sua Constituição autoritária, dom Pedro impôs o tacão imperial sobre o país, mas entregou a gestão da ocupação das terras livres às classes dominantes provinciais. Iniciou-se, então, o período das chamadas "posses livres", quando apenas a ocupação de fato da terra garantia direitos de propriedades. O novo arranjamento aumentou o apetite já pantagruélico dos grandes proprietários, senhores plenos da nação, desde o defenestramento do príncipe português, em 1831.

Em meados do século 19, os grandes cafeicultores escravistas haviam já consolidado fortemente seu poder sobre o país, através de dom Pedro II e do Segundo Reinado. Em 1850, sob pressão inglesa, aboliu-se a introdução de trabalhadores escravizados no Brasil. Muito logo, a exploração do trabalho deveria apoiar-se na necessidade econômica, e não mais na violência do chicote. Havia, portanto, que aprisionar a terra, sobretudo para que o imigrante que chegasse ao Brasil penasse nos latifúndios, sobretudo cafeicultores, antes de poder comprar a terra sonhada.

Também em 1950, aprovou-se a Lei de Terras, determinando que, doravante, o Estado concedesse a propriedade fundiária apenas por venda. A Lei determinou uma importante organização burocrática, sob a autoridade do poder central, encimada pela Repartição Geral das Terras Públicas, com a função de reconhecer todas as propriedades fundiárias públicas e privadas do país e administrar e vender as terras estatais. Até a constituição republicana e federativa de 1891, a gerência maior das terras nacionais voltou às mãos do poder central, como nos tempos coloniais.

O reconhecimento do direito das "posses" havidas antes da regulamentação da Lei, em 1854, era medida aparentemente democrática da Lei de Terras, pois permitiria aos pequenos proprietários regularizar suas posses. Ao referir-se às posses, a Lei compreendia sobretudo as terras ocupadas pelos grandes proprietários nas últimas três décadas, durante o regime de "posses livres". Em fina análise documental, a historiadora Helen Ortiz demonstra como a Lei de Terras impedia o reconhecimento das nesgas de terras dos posseiros pobres, enquanto liberava o prosseguimento do bacanal das terras estatais empreendido pelos grandes latifundiários. Ditada pelos grandes proprietários, a nova ordem permitiria, nos fatos, que o latifúndio prosseguisse abocanhando as terras devolutas ou exploradas por pequenos posseiros.

São irretorquíveis os dados de Helen Ortiz, sobre Soledade, região do norte do Rio Grande do Sul, ocupada nos anos 1821-60, referentes a 260 processos de posses, abertos sobretudo nos anos 1880. Os processos de reconhecimento de posses estudados referem-se sobretudo às terras florestais, já que os campos de pastos da região, mais valorizados, haviam sido ocupados anterioremente. Helen Ortiz assinala que, mesmo quando informado sobre a Lei de Terras, o que não era comum, o pequeno posseiro não possuía condições para "pagar a declaração de posse, custear a medição, ser reconhecido pelos confrotantes, contar com o apoio de testemunhas, resistir à pressão" dos poderosos. As paróquias, onde a declaração devia ser feita - Registro Paroquial -, ficavam distantes; o registro das posses era pago segundo o número de letras; a pesada multa por falta de declaração - duzentos mil-réis - terminava obrigando à venda das terras pelos posseiros pobres, não raro, pelo próprio valor da multa!

O direito de reconhecimento das posses determinado pela Lei de Terras tinha o feitio exato do grande proprietário. Os custos dos autos de medição, feitos pelos agrimensores, eram acessíveis apenas aos homens ricos. A lei permitia que o posseiro absenteísta mantivesse seus direitos, quando a posse fosse ocupada por seu capataz, peão, agregado ou, até mesmo, cativo! Os simples roçados, as derrubas e queimadas de matos, os humildes ranchos dos caboclos não eram considerados pela Lei como provas necessárias de cultivo e residência nas posses. O direito de requerer extensão de campos públicos igual à terra pretensamente ocupada era outra instituição latifundiária. Os favores da lei foram prorrogados por décadas, permitindo que as falcatruas se generalizassem. Não havia limite legal para o número de posses requeridas. Mais pedia e mais obtinha quem mais podia.

Helen Ortiz assinala que, em Soledade, a maioria dos requerentes que teve sua posse reconhecida declarou que não morava nas mesmas e que elas haviam sido adquiridas, em 92% dos casos, não por "posse, doação e herança", mas por compra aos primeiros e segundos ocupantes! O que registra a clara alienação das terras pelos verdadeiros posseiros ou a simples falsificação da documentação. Oitenta por cento das posses requeridas sobre as quais temos dados, possuíam quinhentos e mais hectares. Uma posse legalizada superava os 17 mil, ou seja, a concessão sesmeira dos velhos e bons tempos coloniais! Desde 1850, o Estado promovia a venda aos colonos-camponeses europeus propriedades de vinte hectares!


(*) Mário Maestri, 58, é professor do PPGH da UPF. E-mail: maestri@via-rs.net



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