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La insignia
30 de outubro de 2006


Louise, Lulu e Brooksie (II)


Carlos Eduardo A. Martins (*)
La Insignia. Brasil, outubro de 2006.



Ironicamente, A Caixa de Pandora, que mais tarde seria saudado como um clássico e viria a imortalizar Louise Brooks como Lulu, teve uma recepção inicial devastadoramente negativa.

A sexualidade que perpassa o filme de ponta a ponta, culminando no Liebestod que o encerra, foi demais para as sensibilidades da época. Pandora foi impiedosamente retalhado em todos os países em que foi exibido, e em alguns casos mais de uma vez no mesmo país. Nos Estados Unidos o final foi alterado, e incluída uma "redenção" em que Lulu abandona sua vida de lascívia e entra para o Exército da Salvação. A duração original era de 131 minutos; nenhuma das versões "restauradas" montadas décadas depois, na verdade tentativas de unir de forma coerente os retalhos espalhados pelos cinco continentes, chega sequer perto disso.

A mutilação do filme pode ser alegada como álibi, mas por si só não explica a reação da crítica. Presos a uma compartimentação por "gêneros", os críticos não sabiam como enquadrar Pandora, e o mais próximo que conseguiram chegar, por exclusão, foi categorizá-lo como um melodrama. Mas o melodrama, quer nos padrões europeus quer nos estadunidenses, se caracteriza por tentar transmitir o interior dos personagens pela exacerbação da ação exterior, o exato oposto da estética adotada por Pabst. O que é sutileza em Pandora foi visto como monotonia ou, na pior das hipóteses, inépcia.

Pabst já era um diretor renomado, e mesmo os críticos mais ferozes evitaram atacá-lo raivosamente. Sobrou para Louise. "Uma boneca inanimada", "Miss Brooks não é uma atriz dramática", "é difícil saber se ela está tentando expressar alegria, tristeza, raiva ou satisfação", e o veredito final: "Louise Brooks não sabe representar. Ela não sofre. Ela não faz coisa alguma." Louise, que até então só tinha recebido críticas elogiosas, se viu diante de uma torrente de comentários depreciativos.

O que tais comentários revelam é que a crítica não soube ver que Louise tinha conseguido fazer exata e brilhantemente o que Pabst queria. Lulu não precisa e não deve "fazer" coisa alguma para ser sedutora. Seu poder de sedução não vem do que ela faz; vem do que ela é. Nesse sentido, Lulu é a encarnação extrema da femme fatale - fatal por ser, como Pandora, a mulher essencial.

Da mesma forma, escapou aos críticos que, paradoxalmente, o total desinteresse emocional, intelectual e profissional de Louise por seus próprios filmes talvez tenha sido a chave para suas melhores atuações. Não tendo sequer idéia de quem eram suas personagens e do que signicavam, que dirá dos enredos, Louise simplesmente seguia sua intuição. E era nessas situações que seu talento mais bem aflorava. Num certo sentido, Louise não representava; dançava para a câmera, usando a expressividade natural de seu corpo e seu rosto como instrumentos dramáticos.

O quanto Louise tomou conhecimento das críticas, e o quanto foi afetada por elas, é duvidoso. Fosse como fosse, estava empenhada numa outra frente de batalha.

A exemplo do que foi feito com vários filmes originalmente mudos, a Paramount decidira acrescentar trechos falados a O Drama de uma Noite, e Louise foi chamada para filmar as cenas adicionais. Não estando mais sob obrigação contratual, e não tendo qualquer desejo de voltar a Hollywood, Louise primeiro ignorou e finalmente recusou os repetidos e cada vez mais frenéticos chamados, incluindo uma oferta de um bônus de dez mil dólares e a ameaça clássica: ou voltava, ou nunca mais trabalharia em Hollywood. A resposta de Louise foi igualmente clássica: "E quem quer trabalhar em Hollywood?"

Desesperada, a Paramount saiu à procura de uma atriz suficientemente parecida com Louise para, após uma sessão no cabeleleiro, poder se passar por ela, desde que seu rosto não aparecesse. E finalmente a encontrou, exceto por um detalhe crucial: a voz da escolhida não se encaixava, e quando o filme foi lançado o público imediatamente notou que não era Louise que estavam ouvindo. À ousadia de Louise em por duas vezes desprezar Hollywood e ao custo de encontrar uma substituta somava-se agora o ridículo em que o estúdio fora colocado.

A retaliação da Paramount e de seu chefão Schulberg não tardou; trataram de espalhar o boato de que a voz de Louise "não gravava bem", o que, a julgar pelos poucos filmes falados que fez depois, era uma total inverdade, mas que naquele momento de transição era o beijo da morte.

Decidida a não por mais os pés em Hollywood, sem ter planos ou ocupação, Louise permaneceu em New York, na companhia de seus amigos e amantes, torrando o que restava do dinheiro que havia recebido por Pandora e aos poucos se endividando mais e mais. Até que recebeu um telegrama de Pabst: René Clair a queria para o papel principal de um filme que iria dirigir, Prix de Beauté. E Louise deixou New York por Paris, onde a aguardava uma desagradável surpresa.

No caminho para o hotel, René Clair lhe disse que o projeto estava com dificuldades de financiamento, que a produção teria que ser adiada e talvez abandonada, e que se algum dia o filme fosse feito não seria ele o diretor. E aconselhou Louise a fazer como ele e abandonar o projeto. Mas Louise estava contratualmente presa, e de novo se viu sem ter o que fazer, agora longe de seus amigos e amantes, numa cidade estranha, e sem falar uma palavra de francês. Apesar de sua intensa curiosidade intelectual, Louise jamais se deu ao trabalho de aprender qualquer idioma estrangeiro.

Pabst entraria mais uma vez na vida de Louise alguns meses depois - meses que ela passou em Paris ainda à espera de que Prix de Beauté se materializasse. Dessa vez, era Pabst quem a queria em Berlim para seu próximo filme, Diário de uma Garota Perdida (Das Tagebuch einen Verlorenen).

Diário está muito mais próximo dos padrões do melodrama: a protagonista, Thymiane, após uma série de infortúnios, é acolhida em um bordel, torna-se prostituta e finalmente dona de seu próprio estabelecimento. Na versão original; o filme também teve seu final alterado para uma versão "reformista". Pabst de novo filma Louise amorosamente, e extrai dela uma atuação memorável, embora não tão marcante como em Pandora.

Embora Diário se amoldasse aos cânones estéticos de um gênero estabelecido, o mesmo não se aplicava quanto à moral vigente. Thymiane não é punida ou redimida; é recompensada, já que, como apresentado no filme, o ambiente do bordel é a seu modo mais íntegro do que a "respeitabilidade" hipócrita da sociedade burguesa.Além da mudança no final, Diário foi ainda mais violentamente esquartejado pelas tesouras dos censores do que Pandora. E, eclipsado pelo furor causado pelos filmes falados, foi um retumbante fracasso de bilheteria.

O mesmo aconteceu com Prix de Beauté, finalmente produzido, e dirigido por Augusto Genina, um discípulo de René Clair. Outro melodrama - e com um final trágico-moralista -, Prix foi prejudicado pela trama banal (embora de autoria de Pabst e Clair), e pelo fato de ser um "híbrido", meio mudo e meio falado (a voz não é a de Louise) com som e imagem mal sincronizados. Afora a presença de Louise, Prix só tem um elemento memorável: a sequência final, em que a imagem da protagonista Lucienne (Louise) em primeiro plano, assassinada por seu noivo ciumento, é contraposta à sua imagem projetada ao fundo, naquele que seria seu primeiro filme, plena de vitalidade.

E assim Louise voltou para os Estados Unidos com seu trabalho na Europa ignorado ou desprezado, e seus filmes anteriores esquecidos no entusiasmo pelo cinema falado.

Quase dois anos se passaram até o próximo filme de Louise, seu primeiro filme falado: de novo uma comediola - de apenas 21 minutos de duração, Windy Riley Goes to Hollywood, baseado numa tira de quadrinhos. Mas, enquanto o público era bombardeado com uma campanha maciça promovendo a estréia de Greta Garbo no cinema falado em Ninotchka - "Garbo fala!", trompeteavam os anúncios -, Windy passou total, e merecidamente, despercebido.

Nos sete anos seguintes Louise fez apenas mais cinco filmes, todos inexpressivos, e jamais voltou a ter um papel à sua altura. E, para completar, a franja tinha desparecido. Louise tinha rosto curto, boca pequena, testa larga demais. O "corte Brooksie" ocultava ou disfarçava essas imperfeições, e emoldurava o que tinha de mais marcante: os olhos, que dominavam a cena e atraíam irresistivelmente o olhar do espectador.

A despeito de sua petulância, Louise era extrememente insegura, beirando a paranóia, e se convenceu de que os estúdios estavam propositalmente procurando a humilhar. Não há dúvida de que era mal vista e que, de certa forma, tinha sido colocada numa espáecie de "lista negra". Mas o mais provável é que, simplesmente, fosse considerada passée.

Não obstante, Louise teve uma oportunidade de dar a volta por cima - e a desprezou. Wellman, seu diretor em Mendigos da Vida, ofereceu-lhe o principal papel feminino num filme policial, que seria estrelado por um ator ainda pouco conhecido. Louise, caprichosamente, recusou, preferindo passar mais uma temporada com George Marshall em New York.

O ator era James Cagney; o filme, Inimigo Público (Public Enemy), que projetou para o estrelato Cagney e Jean Harlow, que ficou com o papel que seria de Louise.

Em 1938, com sua carreira de atriz destruída, e depois de um segundo casamento fracassado e de duas tentativas igualmente infrutíferas de se estabelecer como dançarina de salão e como instrutora de dança, Louise voltou para Wichita.

As duas décadas seguintes foram uma contínua espiral descendente, primeiro em Wichita e depois em New York. Aos cinqüenta anos Louise era uma sombra de si mesma, precocemente envelhecida, esquecida, amargurada, reclusa, vivendo frugalmente de um estipêndio mensal que recebia da Fundação William S. Paley (instituição filantrópica criada e mantida pelo fundador e presidente da CBS e mais um ex-amante de Louise) - e cronicamente alcoólatra.

Mas Louise ainda tinha dois papéis a desempenhar: o de objeto de culto, e o de escritora.

O responsável pelo "renascimento" de Louise, que se transformaria em culto, foi James Card, curador do Museu Internacional de Fotografia da George Eastman House. Parte de seu trabalho, a que se dedicou diligentemente, era preservar e restaurar filmes antigos à beira da extinção, principalmente os mais ameaçados, os filmes mudos. Numa viagem à França, Card insistiu com Henri Langlois, fundador e diretor da Cinémathèque Française, até que este acedesse em lhe exibir Pandora e Diário. Langlois assistiu aos filmes junto com Card, e, como tantos outros antes e depois deles, ambos foram enfeitiçados por Louise.

Langlois estava organizando uma grande mostra sobre "60 anos de cinema". Na entrada para a exposição, os visitantes se depararam com dois enormes painéis fotográficos, um de Falconetti em La Passion de Jeanne d'Arc, de Carl Dryer, e outro de Louise em Pandora. Questionado sobre a escolha de Louise, e não de estrelas mais famosas como Greta Garbo ou Marlene Dietrich, Langlois proferiu a declaração bombástica que seria o grito de guerra da "redescoberta" de Louise.

Card, de volta aos Estados Unidos, estava determinado a localizar Louise, o que conseguiu graças a um encontro casual com John Springer, que sabia onde Louise morava. Springer alertou Card sobre o estado em que Louise se encontrava, mas aceitou servir de intermediário. Louise de início rejeitou a idéia de qualquer contato com Card, até que, em resposta a uma carta que Card lhe enviou, iniciou o que viria a ser uma extensa e intensa correspondência, e finalmente concordou em o receber em seu apartamento. Daí nasceu uma profunda - e tempestuosa - amizade, que eventualmente se transformou em romance, o último que Louise teve na vida.

Card conseguiu arrancá-la da letargia a que Louise se havia entregado. E quando Langlois organizou uma retrospectiva de seus filmes e a convidou a estar presente, Louise concordou em voltar a Paris, onde foi entusiasticamente saudada pela imprensa. Langlois organizou também uma recepção em sua homenagem, após a exibição de Pandora, em que Louise se viu cercada por uma multidão de jovens fãs brigando por seu autógrafo. O culto estava definitivamente lançado na Europa.

Deve-se também a Card a revelação de Louise como escritora. Impressionado com a qualidade literária das cartas de Louise, Card lhe propôs que escrevesse suas memórias. Na verdade, Louise já o havia feito (era parte de seu acordo com a Fundação, com a condição de que Pailey não fosse sequer mencionado) e destruído o manuscrito. Um segundo texto foi esboçado, e nunca completado. Em vez disso, ao longo dos anos diversos artigos de Louise foram publicados em revistas na Inglaterra, na França e no Canadá. Só três de seus artigos foram publicados nos Estados Unidos, um deles na revista Image, editada pela Eastman House. Assim como Hollywood não tinha sabido o que fazer com Louise a atriz, a indústria editorial estadunidense não sabia onde encaixar Louise a escritora.

Até 1982. Três anos antes, Louise tinha concordado em ser entrevistada por Kenneth Tynan, para um artigo que foi publicado na The New Yorker, "Louise Brooks: The Girl in the Black Helmet". Graças ao prestígio de Tynan e da revista, Louise foi finalmente "redescoberta" nos Estados Unidos. Como resultado, em 1982 alguns artigos de Louise foram reunidos em livro, com o título de Lulu in Hollywood. A capa era tomada pelo rosto de Louise, em uma ilustração baseada num cartaz alemão para Pandora.

Lulu foi um grande sucesso de vendas e de crítica, incluindo rasgados elogios da respeitabilíssima The New York Review of Books ("entre as melhores discussões do cinema americano"). O culto chegara aos Estados Unidos; Louise estava de novo na crista da onda, e com ela o look Brooksie. De todas as alusões e citações nos mais diversos meios, a mais flagrante seria a feita por Jonathan Demme em Totalmente Selvagem (Something Wild), de 1987, cuja protagonista (interpretada por Melanie Griffith) usa, além de uma peruca negra reproduzindo o corte Brooks, o pseudônimo Lulu.

Louise reagiu a seu renascimento de forma caracteristicamente ambivalente. A adulação lhe era agradável, mas ao mesmo tempo a assustava e reforçava sua insegurança. E o mesmo se dava com o reconhecimento de seu talento como escritora. Voltou à vida de reclusão, agora em Rochester, sede da Eastman House, para onde havia se mudado - instada por Card, com quem àquela altura já tinha rompido.

Louise declarou certa vez que em toda a vida só quis ser duas coisas: bailarina e, muito mais tarde, escritora. A primeira carreira havia sido abortada com sua expulsão de Denishawn; e a segunda chegara tarde demais. Sua saúde decaía a largos passos: além do alcoolismo, sofria agora de artrite e enfisema, ambos em estado avançado, e nos últimos anos de vida precisou de assistência constante para as menores coisas do dia-a-dia. E, o mais cruel dos destinos para alguém dotada de uma inteligência brilhante, já demonstrava sinais de senilidade.

Mary Louise Brooks morreu em Rochester, em 8 de agosto de 1985, de ataque cardíaco, aos setenta e oito anos.

Incontáveis exegeses foram feitas sobre Louise, cada uma capturando, com maior ou menor precisão, um aspecto de sua pessoa. Mas, como peças de um quebra-cabeça incompleto, mesmo reunidas não conseguem formar uma imagem completa.

Seria fácil desmitificar Louise Brooks. Ao dispensá-la de Denishawn, Ruth St. Denis sentenciou: "Seu problema, Louise, é que você quer que a vida lhe seja entregue numa salva de prata." Não faltaram salvas de prata na vida de Louise, que, como Pandora, tinha os dons de beleza, talento e inteligência, e os malbaratou por uma mistura de egocentrismo, arrogância, inconseqüência e devassidão.

Mas isso seria outro reducionismo, pior porque moralista.

A vida de Louise Brooks, com seus altos e baixos, acertos e erros, pertence a ela, e só a ela. Sua arte pertence a todos nós, preservada e exaltada em cada fotograma que sua presença ilumina.


Notas

Louise Brooks (Doubleday, New York, EUA, 1989), de Barry Paris, é a biografia definitiva, e uma ampla e detalhada visão da cultura estadunidense e da história do cinema nos anos 20 e 30.
Lulu in Hollywood teve uma reedição ampliada lançada em 2000 pela University of Minnesota Press.
Duas novas edições de A Caixa de Pandora estão sendo lançadas em DVD; em Portugal, por Filmes Costa do Castelo (com entretítulos em português), e, nos Estados Unidos, por Criterion Company (com entretítulos em inglês). A edição da Criterion inclui o documentário Louise Brooks: Looking for Lulu (1998), de Hugh Munro Neeley, com roteiro de Paris e narração de Shirley MacLaine, e um livro com, entre outros textos, o artigo de Kenneth Tynan, também disponível em http://www.geocities.com/debstj/tynan.html.
Existe uma Louise Brooks Society cujo endereço na internet é http://www.pandrasbox.com.

(*) Carlos Eduardo A. Martins é economista.



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