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La insignia
25 de novembro de 2006


Clara


Ivy Judensnaider (*)
La Insignia. Brasil, novembro de 2006.


Clara acordou quando a madeira apodrecida caixão fez um estalo, sob efeito da umidade e da terra que fermentava de vida, e era sempre assim, o sono interrompido por obra dos efeitos do tempo e da morte. Cuidadosamente, aproveitou a fresta e moveu-se, tênue fio de fumaça amarelada, para fora da tumba.

Ajeitando os trapos cinzentos de suas vestes, Clara iniciou a caminhada. Como fazia há dois anos, ao passar pelo corredor apanhou no canteiro o facão de cortar arbustos. Ao encontrar Sonia, sorriu. Deram-se as mãos, as duas, conversando enquanto alcançavam o outro túmulo, o do menino filho de Sonia.

Clara lembrava-se. Naquela terça-feira do assassinato do marido e do seu suicídio, o dia havia amanhecido cinzento. Clara acordou com fome e, na cozinha ladrilhada, preparou o café com leite, o pão quente com manteiga, a banana picada com açúcar e mel. Ao bom dia dado pelo marido respondeu silenciosamente, desejando desesperadamente passar despercebida. Comia de forma distraída quando viu o esposo na biblioteca, reclamando do pó nos livros e da desordem da mesa de trabalho. Ainda engolia o resto da fruta quando, num rápido impulso, ao retesar o corpo por causa da lembrança que invadia o seu coração, retirou a chave de fenda da gaveta de ferramentas e enfiou na garganta do homem com quem havia se casado. O mel ainda secava no palato quando Clara se jogou do oitavo andar, estatelando-se na calçada em frente ao edifício.

Ficou ali, durante horas. Apenas perto da hora do almoço chegaram as duas filhas, acompanhadas pelo advogado. Curiosa com o que imaginava estar acontecendo no apartamento, Clara lamentou a própria estupidez. Deveria ter se matado lá mesmo, para observar a movimentação de todos, divertir-se com o cadáver ensangüentado do marido, vigiar se não mexeriam nas suas coisas pessoais, se abririam gavetas ou roubariam as poucas jóias do aparador do quarto. Era tarde demais e esqueceu o assunto, ocupada demais em olhar o mundo dali do chão, e depois os preparativos do enterro, a roupa nova que nela colocavam, o trânsito do féretro até o cemitério, as rezas e o choro dos familiares.

Aproximando-se do túmulo do marido, Clara suspirou. Com vagar, levantou o tampo de cimento que protegia os restos do caixão. Os ossos ainda estavam lá, bem como as marcas das facadas anteriores, desferidas diariamente nos dois anos transcorridos desde o enterro. O marido abriu os olhos, fitando-a atônito, parecendo pedir o fim do pesadelo. Clara não contemporizou.

- Durma mais tarde. Acorda! Erguendo o facão de cortar arbustos, ela então golpeou o corpo putrefato. Uma vez, duas vezes, três vezes, cem vezes. Parou quando o que sobrava dos músculos começou a doer, impedindo-a de continuar.

- O que eu fiz de tão terrível, Clara, para merecer isso? Me explica, por favor...Me fala, me perdoa e me deixa descansar, Clara... Estou cansado, cansado demais... - o marido resmungou, num soluço.

A mulher sentou-se na grama, ao lado da cova exposta. Explicar? Seria possível explicar? Ele não fazia a menor idéia, ela tinha certeza. Não fora, afinal, por causa dos anos de silêncio e amargura em que ela vivera, à espera de um sorriso, por menor que fosse. Tampouco por causa da falta de carinho, da falta de jeito com que o marido a pegava todas as noites. Também não o matara por vingança, para lavar o sangue em que a empregada doméstica se esvaíra, o aborto mal feito da gravidez da qual o patrão não queria saber. Imaginou que o marido atribuísse sua vingança aos eventuais tapas que haviam trocado durante aqueles anos. Mas, nada disso havia realmente incomodado Clara, e era difícil explicar ao cadáver que suplicava justificativas e perdão. Para tudo aquilo, ela havia conseguido alívio nas preces, nas palavras ouvidas na Igreja, no conforto das amigas. Largando o facão de cortar arbustos, Clara sussurrou baixinho, no ouvido do marido:

- Você não consegue lembrar, e eu não consigo esquecer.

Com desprezo, Clara cerrou a tumba. Sonia já terminava de amamentar o filho e, juntas dirigiram-se aos seus próprios túmulos, o dia se anunciando e a hora do repouso retornando para todos. Tudo era silêncio no cemitério, as almas voando para os seus lugares, amantes se despedindo, pais e filhos se abraçando e prometendo reencontro breve. Clara perdoava tudo, só não conseguia relevar o ocorrido na noite em que a primeira filha nascera. Naquela noite, no hospital, Clara tinha dado à luz depois de um parto difícil, as dores esgotando-na. No quarto, enfaixada e sob efeito dos analgésicos, tentava dormir. Ao seu lado, o marido remexia-se e resmungava, inutilmente procurando se acomodar no pequeno sofá de acompanhante do hospital. Era madrugada quando o burburinho começou, orações ditas em uníssono, pessoas no quarto contíguo se lamentando. Também se ouvia o choro desesperado de uma mulher. Um menino havia nascido morto, a mãe urrava de dor e a família se desesperava. Momentos depois, mais barulho, a maca levando a mulher, os médicos tentando conter a hemorragia. No começo da manhã, os soluços do homem arrebentado pela dor da perda do filho e da esposa.

Como feixe de luz, Clara voltou para o buraco e acomodou a cabeça no montinho de terra que se fazia de travesseiro. Atenta, procurou acompanhar os ruídos da manhã que iniciava, embalando-se na lembrança: naquela noite, há mais de quarenta anos, Clara havia visto o marido, irritado com o barulho, dirigir-se até o balcão das enfermeiras. Nervoso, ele pedia, aos berros, providências imediatas para que os ruídos cessassem e ele pudesse descansar.

Clara, sentindo-se novamente vingada, adormeceu: os homens chegaram com as pás e, inquietos e barulhentos, começaram a cavar a abertura de novas covas.


(*) Ivy Judensnaider, escritora, é editora-chefe da arScientia.



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