Mapa del sitio Portada Redacción Colabora Enlaces Buscador Correo
La insignia
22 de maio de 2006


Os doces marginais de Poços


Luís Nassif
La Insignia. Brasil, maio de 2006.


Recebo o livro sobre a história do teatro em Poços de Caldas, mais um belo trabalhador do historiador local Hugo Pontes. Há fotos de Nicinha, Benigno Gaiga, Sebastião Pinheiro Chagas e outros pioneiros.

Senti a ausência do grupo de teatro do GGN (Grupo Gente Nova), nossa turminha mais politizada, e que tinha belos atores e atrizes, como minha prima Rosa Maria e o José Roberto da Silva.

Mas estava lá Fernandinho, o querido Fernandinho, que faleceu há uns dois anos, nossa bicha de estimação, como falávamos sem receio do patrulhamento do politicamente correto.

Além de ator, Fernandinho trabalhou por algum tempo como garçon do Caiçara (que depois virou Bachianinha), o boteco sofisticado onde minha geração teve sua iniciação na boemia e na vida adulta. Moleques de 17 a 20 anos, o Caiuby, o Dartagnan, o Oscarzinho, o Sérgio Peru, convivíamos com "coroas" agradabilíssimas, como a Iara e a Goga, que deviam ter pouco mais de 25 anos, e com boêmias precoces, como a Soninha, a Moema, a Dalvinha. Até os idos dos anos 70 Poços era uma cidade sumamente interessante. Fora das temporadas guardava o ar tranqüilo de interior. Nas temporadas, recebia turistas sofisticados de São Paulo, que se aboletavam no Bachianinha para ouvir o piano magnífico de João Viviani - que morreu há alguns anos em Ribeirão Preto.

Durante algum tempo, o Bachianinha era a única luz de inteligência e semi-erudição de Poços. Era lá que ouvíamos a música sofisticada da bossa nova e do samba-canção tocadas pelo Viviani, cantadas pelo Mauro, filho do dono de um cartório de Botelhos, pela Iara e sua voz rouca. Lá, curtíamos as fossas tipo "nouvelle vague" do Caio Lobato, ficávamos sabendo dos novos autores, saíamos para visitar nosso guru, o Jurandir Ferreira, escritor oficial de Poços. É curioso esse mundo do interior, muito voltado para si mesmo, muito preocupado com as pequenas coisas do dia-a-dia. Era no ambiente da boemia e da semi-marginalidade encontrávamos os tipos mais interessantes. Convivíamos com o pessoal do Bachianinha, com o Orozimbo, um pai de santo que se dizia especialista em capoeira, com o Zé Caé, homossexual, sujeito mais forte da cidade e dono de uma casa funerária.

A convivência com essa boemia me custou algumas dores de cabeça, de fregueses da farmácia do meu pai indo alerta-lo sobre as minhas más companhias. Ora, "más companhias", dizia meu pai, como é que a Goga, filha do Zé Prézia, a Iara do Correio podiam ser "más companhias".

Em casa tivemos sorte de jamais cultivar o preconceito. A bem da verdade, minha mãe tinha certo preconceito de vesgos. Não gostava de um colega meu, o João, que dizia ser invejoso e não ser confiável por jamais olhar de frente. "Mas ele é vesgo, mãe", eu tentava explicar. E dona Teresa: "Mas o Roldão é vesgo também, e olha de frente". O "olhar" não era físico e intuição de mãe é fogo.

Depois que me tornei razoavelmente conhecido, um dia encontrei em Poços o tal que ia atazanar a vida do meu pai por conta das minhas "más companhias". E ele dizia extasiado: "Mas que bonito era ver a sua turma no Bachianinha, tocando violão, fazendo serenata". É isso o que digo sobre certos tipos do interior.

Há poucos anos perdi duas das últimas âncoras que me amarravam a Poços: a querida Goga e o querido Fernandinho. Goga, nossa guru, a "coroa" falsamente agressiva, que se desmanchava em ternura na metade do primeiro copo de uísque. E o Fernandinho, que quase se acabou no carnaval de 1969, quando apareceram no Bachianinha duas bichas paulistanas belíssimas, reencarnações de Nefertite. Começaram a dançar no alto da escada do Bachianinha, que levava ao andar de cima. A cidade parou na porta para assistir. No piso de baixo, no balcão, o Fernandinho chorava que nem criança. "Porque está chorando, Fernandinho?", perguntávamos. E ele: "Porque jamais vou ser bonita assim". E nós, tentando consola-lo: "Mas você é mais bonito por dentro, Fernandinho". E ele, inconsolável: "Mas eu queria ser mais bonito por fora".

A cena inesquecível que tenho dos dois, mais a Dalvinha, a Moema e tantos outros, foi no baile no qual a Associação Atlética Caldense batizou sua biblioteca com o nome do meu pai. Saí de Porto Alegre, desci em Guarulhos, a família já me esperando com o carro e chegamos em cima da hora. Na porta da Caldense estavam meus amigos me esperando. Os doces marginais de Poços, que se recusavam a ir a qualquer ambiente que cheirasse a "burguesia" compareceram em peso em um ambiente com mais de mil pessoas, para levar o abraço ao amigo.

Em algumas noites solitárias de São Paulo, me vejo pensando naquela cena inesquecível e meu coração se aquece.



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción | Proyecto