Mapa del sitio Portada Redacción Colabora Enlaces Buscador Correo
La insignia
22 de outubro de 2005


Um artigo sério


Fernando Soares Campos
La Insignia. Brasil, outubro de 2005.


Já faz um bom tempo que não escrevo um artigo que se possa chamar de "sério". Claro que estou falando "sério" quanto aos aspectos preocupantes, de efeitos profundos, portador de uma mensagem penosa ou mesmo polêmica. Evidentemente, levo a sério aquilo que escrevo com pretensões humorísticas, tentando provocar no leitor não uma risada escandalosa, boca escancarada; mas sim o riso subjetivo, daqueles que mobilizam neurônio enfadados, "hasta los huevos", como estaria Mario Roberto Morales diante de um esotérico texto de auto-ajuda.

Recentemente a editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) lançou um livro de autoria coletiva intitulado "Para além das grades - elementos para a transformação do sistema socioeducativo". Trata-se de uma obra organizada pela professora Maria Helena Zamora (1), que, para compô-la, convidou respeitáveis figuras do mundo acadêmico: Esther Maria de M. Arantes (2), Hebe Signorini Gonçalves (3), Irene Rizzini (4), Irmã Rizzini (5) e o estreante Paulo Roberto de Andrade Castro, recém-formado em Ciências Sociais e já fazendo a sua primeira pós-graduação.

Trabalho com adolescentes em conflito com a lei, jovens que cometeram atos infracionais e encontram-se acautelados por decisão judicial, por isso mesmo também fui convidado a participar do livro, no qual apresento um artigo sob a forma de um "estudo de caso". Sobre o meu texto, a Drª Irene Rizzini, no prefácio do livro, diz: "Fernando Soares Campos, em 'Adolescentes infratores acautelados: uma caricatura dos sistemas penitenciários', examina as relações e os conflitos entre os adolescentes institucionalizados e os agentes de disciplina. O autor reflete sobre os fatores que levam agentes a sustentar ou não práticas violentas em seu trabalho e discute algumas formas de reprodução da violência nas unidades de privação de liberdade". Já a partir do título, o leitor pode ter uma idéia do que expresso nas doze páginas do meu artigo. Dentre outros aspectos, trato das semelhanças entre o sistema socioeducativo (especificamente o conjunto de instituições destinadas ao acautelamento de adolescentes em trânsito judicial no Estado do Rio de Janeiro) e o sistema penitenciário próprio para os adultos.

A legislação brasileira distingue o adolescente que transgride a lei, tratando-o como "infrator", do infringente adulto, este enquadrado como "criminoso" ou "contraventor", dependendo das conseqüências sociais provocadas pela ação delituosa. Os atos infracionais praticados pelos adolescentes são julgados através do estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), enquanto, sobre os atos delituosos cometidos pelos adultos, aplicam-se as regras do Código Penal ou da Lei das Contravenções Penais. O ECA é considerado um dos mais avançados instrumentos jurídicos do Planeta, dispõe sobre a proteção ao ser humano ainda na vida intra-uterina (Art. 8º. É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal. § 1º. A gestante será encaminhada aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema. §2º. A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a acompanhou na fase pré-natal. §3º. Incumbe ao Poder Público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem). Trata dos Direitos Fundamentais da criança e do adolescente; Direito à Vida, à Saúde; Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade; Direito à Convivência Familiar e Comunitária; Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer; Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho; estabelece as Políticas de Atendimento e regulamenta as questões de guarda, tutela, adoção e medidas socioeducativas:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semiliberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional;
§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.
§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.

Os opositores do ECA alegam que esta seria uma norma em desarmonia com as estruturas sociais de um país como o Brasil, apontam no Estatuto um excesso de complacência com os jovens delinqüentes; portanto defendem a elaboração de leis mais rigorosas, que possam conter a delinqüência juvenil.

O ECA dispõe no seu Art. 2º: "Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade". E o Art. 104 determina: "São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei". Portanto somente a partir dos dezoito anos de idade o indivíduo torna-se sujeito às prescrições do Código Penal. Porém tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que pretendem reduzir a maioridade penal para 16, 14 e até 12 anos. Ou seja: a partir de uma dessas idades, os adolescentes infratores receberiam o mesmo tratamento jurídico dispensado aos adultos. Geralmente os defensores do arrocho penal sobre os jovens acreditam que tal medida inibiria o inegável crescimento da delinqüência juvenil em nosso país. São pessoas que acreditam que a inimputabilidade penal dos adolescentes seja a principal causa de estes se aventurarem na prática de atos infracionais. Vão além, dizem ainda que, por tratar-se de uma legislação "branda", "indulgente", muitos jovens assumem a autoria de crimes praticados por adultos. Alegam ainda que o direito ao voto (facultativo), concedido aos jovens na faixa etária compreendida entre os 16 e 18 anos, equipara-os ao eleitor adulto, este sujeito às penalidades estabelecidas no Código Penal. Um raciocínio aparentemente silogístico: "os votantes estão sujeitos aos rigores da lei penal, os adolescentes agora são votantes, logo, os adolescentes também seriam imputáveis". É como se a letra da lei tivesse o poder de acelerar o processo de maturidade do indivíduo. Baseados na "lógica" dos partidários da redução da maioridade penal, teríamos que estender aos adolescentes o direito ao consumo de bebidas alcoólicas, tabagismo e, inclusive, reconhecer o "direito" de se prostituir, que as jovens de 16 já teriam "conquistado", pois no nosso país a prostituição de mulheres adultas não é crime (os artigos 227 a 230 do Código Penal estabelecem que crime é mediar, induzir, facilitar ou tirar proveito da prostituição alheia).

O deputado federal Vicente Cascione (PTB-SP), propõe um aumento da medida de internação para até 30 anos, alegando que, hoje, o adolescente que comete ato infracional não se sente estimulado a aceitar a medida socioeducativa porque sabe que ficará internado por, no máximo, três anos. Conforme entende o deputado, isso também facilita os casos de adolescentes que assumem a autoria de crimes praticados por adultos, considerando que um jovem permanece por pouco tempo na unidade de internação.

Em relação aos possíveis casos em que adolescentes assumiram a responsabilidade sobre crimes cometidos por pessoas adultas, tal fato não se relacionaria propriamente à suposta "brandura" do ECA, mas sim às condições de parte mais fraca a que os adolescentes estão expostos. Se as leis ditassem penalidades de igual para igual entre jovens e adultos, ainda assim, os adolescentes, vez por outra, seriam obrigados a fazer o papel de "buchas", conforme são cognominadas as pessoas indiciadas como autores de crimes dos quais não participaram. Quanto a se considerar "três anos" como um tempo curto de internação de um adolescente, há que se entender que este é o período mais importante na vida do ser humano. O adolescente não percebe o tempo com a mesma noção de um adulto. Lembro-me que, aos quinze anos de idade, um ano, para mim, representava uma verdadeira eternidade; hoje o sinto apenas como céleres doze meses, fugacíssimos 365 dias. Atuando numa unidade de internação total, presenciei vários adolescentes chorando, esperneando como crianças pequenas, resmungando, implorando pela sua liberdade. Se tantos outros não agiam assim, isso se devia ao medo de ser punidos pelos responsáveis por suas guardas, ou envergonhados de assumir uma postura infantil, o que os tornaria alvo de chacota. No entanto posso garantir que todos demonstram pesar pela condição de "presidiário". Existem raros casos de adolescentes auto-institucionalizados, ou seja, fazendo das instituições um refúgio, um "lar". Estes, geralmente, são aqueles que se tornaram muito obedientes, engraçados, mascotes, dependentes, gratos e, invariavelmente, (o que é mais doloroso) informantes do sistema. Geralmente surgem dentre aqueles que não têm residência fixa nem família identificada. Gozam de uma certa "liberdade" interna e até ocupam certos postos de trabalho nas instituições em que se encontram internados. No entanto sabemos que isso também ocorre com adultos encarcerados.

Por que estou escrevendo este artigo sério? Na verdade o que me inspirou a escrevê-lo foi a leitura de "EEUU: Millares de menores condenados a cadena perpetua sin libertad condicional. Um estudio de ámbito nacional realizado por AI y HRW determina que la mayoría cumplen cadena perpetua por su primer delito", aqui mesmo em La Insignia. Isto sim é sério! Aliás, mais que sério; seriíssimo!

Conheço pessoas que não acreditam na ressocialização de jovens que enveredaram pelos tortuosos caminhos da delinqüência. "São irrecuperáveis!", afirmam categoricamente. Certamente aí está implícita uma boa carga de preconceito, pois a massa de adolescentes acautelados naquelas instituições é formada por jovens favelados (negros e pobres em geral). Durante os meus cinco anos de atuação nas instituições próprias para o acautelamento de adolescentes que se envolveram em atos infracionais, pude observar que, entre os milhares de jovens com os quais lidei como agente de disciplina, raríssimos poderiam ser classificados como elementos situados numa classe social acima da linha de pobreza. E, ao contrário do que se afirma, observei que a maioria deles aspira a uma vida digna, demonstram interesse nos programas de profissionalização. Se não expressam esse mesmo interesse pelo ensino formal, isso pode ser atribuído aos pouco estimulantes métodos de ensino a que, porventura, tenham acesso. São, quase todos, programas obrigatórios, implementados com o único propósito de atender as determinações legais, porém ministrados de forma enfadonha e burocrática.

Creio que as pessoas que defendem a redução da maioridade penal esqueceram-se de que um dia foram adolescentes. Qualquer de nós que decida entregar-se a um momento de reflexão, auto-analisando-se com (na medida do possível) isenção de ânimos, despojado de idéias preconcebidas a respeito da juventude, lançando apenas um olhar sobre aquela fase da vida, tentando perceber as diferenças entre as formas de ver e sentir o mundo quando ainda se tem 16 anos e agora, presumidamente amadurecido. Mesmo que chegue à conclusão de que era um jovem relativamente equilibrado, comedido (uma exceção entre os jovens), ainda assim há de convir que o jovem adolescente não é o "modelo de maturidade". Ouço muita gente dizer que os instrumentos midiáticos hoje disponíveis, a profusão de informações por eles veiculadas, esclarecem os jovens e os transformam em pessoas com maior capacidade de entender a vida, do que os adolescentes de outras épocas. Essa opinião reflete tão-somente a imaturidade de quem assim pensa. Não se conquista a maturidade com o acúmulo de informações generalizadas. Uma pessoa se torna adulta através das experiências próprias, adquiridas ao longo dos anos, conflitando o emocional com o racional. Ninguém em sã consciência pode negar a necessidade de limites que se deve impor à criança e ao jovem, a fim de preservá-los contra a violência inata do ser humano (não tenho certeza de que isso exista, mas a visão do mundo e a história da humanidade parecem ratificar essa possibilidade).

As leis brasileiras (acredito que as de todo o mundo) estipulam idades a partir das quais o indivíduo torna-se apto para o exercício de cargos públicos elegíveis: aos 18 anos, é obrigado alistar-se no Serviço Militar, tornando-se titular do direito de votar (se não o tiver feito aos 16, quando ainda lhe era um direito facultativo), e do direito de ser eleito para vereador; aos 21 anos, o cidadão incorpora o direito de ser votado para deputado federal, deputado estadual, deputado distrital, prefeito, vice-prefeito e juiz de paz; aos 30 anos, obtém a possibilidade de ser eleito para governador e vice-governador de Estado e do Distrito Federal; finalmente, aos 35 anos, o cidadão chega ao ápice da cidadania formal, com o direito de ser votado para senador, vice-presidente e presidente da República. Evidentemente isto se fundamenta numa suposta maturidade conquistada a partir de certa idade. Aliás, no nosso caso, estabelecemos até mesmo uma escala e maturidade, com definidos graus, a partir dos quais o indivíduo estaria pronto para assumir determinados cargos. Seria um contra-senso pretender responsabilizar criminalmente como adulto aqueles que, nos termos da lei, não apresentam capacidade para legislar sobre seus próprios atos. Se um indivíduo já pode receber penalidades como um adulto que assim legislou, então este mesmo indivíduo estaria apto a participar da elaboração das leis que estabelecem tais sistemas penais. Lógico? Bem, eu estou apenas perguntado e não afirmando. É lógico? Gostaria de sabê-lo, pois tenho apenas 55 anos, não entendo de Filosofia, Sociologia, Psicologia ou mesmo de cartomancia. Mas lembro-me, vagamente, de que fui adolescente. Lembro-me dos impulsos homicidas que assomavam à minha adolescente mentalidade. Não esqueço da vibração impulsiva a me instigar para a prática de ações delituosas. E garanto que não foi nenhuma legislação que me fez refrear tais estímulos. O que realmente me segurou foi a oportunidade de ter tido uma família, foram as chances de receber educação, carinho, atenção. Ao meu entender, qualquer jovem que sucumba aos desequilíbrios psicológicos próprios de sua idade necessita muito mais de assistência médica especializada do que de punição.

Nunca escrevi tão transtornado, tomado de tamanha angústia. Sentindo-me o mais impotente dos seres. Estou pensando naquelas "2.225 personas cumpliendo cadena perpetua sin libertad provisional por delitos cometidos cuando eran menores de 18 años".

Lendo o estudo realizado pela Anistia Internacional e Human Rights Watch, a gente tem a impressão de estar vivendo entre a antiguidade e a Idade Média. Veja este trecho:

"Diez estados [EEUU] no han fijado una edad mínima para condenar a menores a cadena perpetua sin libertad condicional, y actualmente hay al menos seis menores cumpliendo esta pena que tenían 13 años cuando cometieron el delito del que fueron declarados culpables. Una vez condenados, estos menores son enviados a prisiones para adultos y tienen que vivir entre bandas de adultos y depredadores sexuales y en condiciones muy duras".

Leia o restante, aqui mesmo em La Insignia. Porém advirto: hay que tener cujones.


Notas

(1) Maria Helena Zamora - Doutora em Psicologia e pesquisadora sênior do Ciespi - Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância. Coordena, assessora, avalia e presta consultoria a projetos de âmbito nacional e internacional de ONGs, do governo, de universidades e de movimentos sociais diversos;
(2) Esther Maria de M. Arantes - Psicóloga, doutora em Educação pela Universidade de Boston. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e coordenadora do Programa Cidadania e Direitos Humanos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro;
(3) Hebe Signorini Gonçalves - Autora do livro "Infância e Violência no Brasil". Doutora em Psicologia. Desde 1996 está vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo atuado junto ao Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência;
(4) Irene Rizzini - Professora do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e diretora do Ciespi. Mestre em Serviço Social pela Universidade de Chicago e doutora em Sociologia. É presidente da rede internacional de intercâmbio de pesquisa na área da infância (Childwatch International, Noruega). Entre as suas publicações, destacam-se: "O século perdido"; "A criança e a lei no Brasil: revisando a história"; "Vida nas ruas - Crianças e adolescentes nas ruas: trajetórias inevitáveis?"; e "Globalization and children";
Irmã Rizzini - Mestre em Psicologia Social e doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professora de metodologias de pesquisas na Universidade Santa Úrsula e é pesquisadora sênior do Ciespi. Autora de diversos livros, tendo como a mais recente publicação "A institucionalização da criança no Brasil: percurso histórico e desafios do presente", em co-autoria com Irene Rizzini.



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción | Proyecto