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La insignia
12 de maio de 2005


A dança dos sete véus


Nei Duclós
La Insignia. Brasil, maio de 2005.


Um bom livro vale tanto pelas perguntas que provoca quanto por suas revelações. No caso da obra .- "Orientalismo, o Oriente como invenção do ocidente", publicada originalmente em 1978 por Edward W. Said, esse duplo benefício se impõe, primeiro, por ser uma tese bem fundamentada de um fenômeno cultural atualíssimo, especialmente no cinema, na televisão, no noticiário e na visão distorcida que costumamos fazer do Outro. Podemos assim sistematizar nossa posição crítica em relação ao orientalismo que, segundo o autor, foi uma invenção européia para conquistar e dominar terras e povos situados numa vasta região geográfica da Ásia e da África e que mantém-se até hoje, imutável na sua essência, servindo especialmente como instrumento da política imperialista norte-americana.

Entre as inúmeras definições de Said para seu objeto de estudo, o orientalismo é descrito como uma rede de interesses, um estilo de pensamento e uma instituição organizada para negociar, dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. É também um corpo criado de teoria e prática, uma obra humana induzida e uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos.

Said adverte que idéias, culturas e histórias não podem ser estudadas sem que a sua força, ou mais precisamente, sua configuração de poder seja também estudada. Por isso, procura mostrar que a cultura européia ganhou em força e identidade comparando-se com o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo subterrânea, clandestina. Sua intenção, ao ilustrar, analisar e refletir sobre o orientalismo como um exercício de força cultural, é promover o estudo das alternativas contemporâneas ao tema. Quer, assim, contribuir com uma perspectiva libertária - segundo sua própria expressão - na investigação de outras culturas e outros povos.

Ele entende que o "orientalismo acomodou-se com êxito ao novo imperialismo" e propõe um novo enfoque para evitar os perigos e tentações de se empregar esse tipo de estrutura cultural sobre si mesmo e sobre os outros. A perspectiva libertária de Said é bastante ampla, extensiva a todos os estudiosos sérios, pois ele encara como uma limitação a idéia de que apenas os muçulmanos podem escrever sobre muçulmanos, ou negros sobre negros e assim por diante. Sua proposta é descolonizar totalmente os estudos da área para evitar que o orientalismo seja mais uma das "algemas forjadas pela mente".

A consistência do seu enfoque não elimina, entretanto, algumas dúvidas que se manifestam como o segundo benefício do livro, pois a partir desta pesquisa, somos obrigados a colocar em xeque o maior número de aspectos possíveis sobre o assunto. A primeira delas é sobre a resistência granítica do paradigma (ou "consenso de pesquisa acadêmica", conceito emprestado de Thomas Kuhn) transformado em dogma. Por dois séculos o orientalismo manteve-se idêntico, sem mudar de natureza? Ou seja, a especialidade da época de Napoleão conserva-se no tempo até chegar aos nossos dias para servir de arma ideológica no Oriente Médio? Essa dúvida persiste, mesmo levando-se em consideração todas as transformações apontadas por Said, de que o orientalismo nasce a partir dos antiquários, cresce no século 19 junto com a expansão européia, especializa-se na função de artigo de uso na virada para o século 20 e torna-se moeda de capital simbólico fundamental para a política externa dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra.

A impressão que se tem - e isso precisaria de um estudo mais detalhado - é que Said partiu da situação de hoje - onde o orientalista participa da guerra ideológica contra os árabes - e projeta sua crítica até o século 18, numa viagem anacrônica apresentada no livro pelo avesso - ou melhor, de trás para diante. Um dos embasamentos para esta observação é a maneira unilateral (sempre negativa) como Said se refere a uma das forças culturais que impulsionaram o orientalismo no início, ou seja, o Romantismo.

Como nota Gerd Bornheim, os românticos "valorizaram também a Ásia e sobretudo a Índia, dando início a uma atitude não apenas exterior, mas voltada, respeitosamente (grifo meu) , para a cultura e para a religião dos países asiáticos. Isso é tão importante que podemos dizer que, desde o Romantismo, a Europa já não é apenas a Europa, a ponto de Paul Valéry poder perguntar se ela não seria tão-somente um cabo da Ásia." A procura do Outro, o entranhamento nas terras ignotas, a busca de conhecimentos anteriores ao cristianismo, o estudo de línguas mortas, todas as preocupações, enfim, dos românticos que influenciaram o nascimento do orientalismo e acabaram relativizando a própria noção de Europa, são excessivamente reduzidas ao impulso político, aos interesses comerciais, à barbárie imperialista.

Isso é verificado quando o autor reconhece que o orientalismo era uma erudição, apesar de ser um equívoco. A dúvida é: por que, neste livro, a erudição é todo o tempo subestimada em favor dos erros? Não estaria, neste caso, o orientalismo sendo submetido a uma camisa de força? Será que este livro é capaz de conter toda a diversidade ( não no sentido de extensão, mas no de significados múltiplos e muitas vezes contrários) do orientalismo? É claro que Said adverte sobre esse problema metodológico no primeiro capítulo, mas será que ele não estaria delimitando o campo de estudo à custa da mutilação do tema?

Um exemplo dessa limitação é o papel atribuído por Said aos orientalistas que atuaram no período próximo à Primeira Guerra Mundial. Bastaria dizer que o individualismo impunha uma visão diferenciada dos estudiosos dessa época? Ou seria preciso colocar a contradição ética de T.E.Lawrence, por exemplo, que é a espinha dorsal do roteiro de Richard Bolt para a obra-prima de David Lean ("Lawrence of Arabia", 1967), baseado nos "Sete Pilares de Sabedoria"?

Acusar este texto de Lawrence -admirado pelo pragmático Churchill- de ser "patentemente ficcional" não elide o problema focal, que é a divisão interna do orientalista, puxado de um lado pelo mundo que escolheu e por outro pelo mundo ao qual pertence. Pode-se argumentar que, ao fim e ao cabo, o filme de Lean obedece aos parâmetros apontados por Said ( personagens árabes importantes, como o príncipe Feisal, são representados por atores ocidentais) e que Lawrence realmente serviu ao imperialismo anglo-americano na briga contra os turcos e na manipulação dos árabes. Mas isso só seria válido se Said pudesse provar que a contribuição da Revolta Árabe - onde Lawrence foi uma figura central - para os futuros movimentos nacionalistas no Oriente Médio foi absolutamente nula.

Outra dúvida importante é sobre o conceito de Oriente real que aparece de surpresa no livro - compactuando com a visão pré-concebida do leitor - e que, ao longo da exposição, como numa dança dos sete véus, revela-se uma ilusão, uma representação. Ele usa as expressões "Oriente real, realidade moderna do Oriente, o Oriente vivo, contemporâneo, o Oriente tal qual ele é" e conclui que "não é tese deste livro sugerir que existe algo como um Oriente real ou verdadeiro." É como prometer a virgem e não entregá-la ao noivo na hora das bodas.

A dúvida é a seguinte: por que Said, já falecido, não assumiu todas as implicações da análise do discurso logo no início do livro? Ao basear a tese na pesquisa do discurso orientalista, não seria fundamental voltar-se metodologicamente para esse enfoque, abraçando todo o aparato teórico decorrente dessa opção? Por que Said preferiu envolver o leitor com uma análise do discurso fundada no paradigma marxista - já que é o poder, a política e o comércio que definem a delimitação do campo? Com um pé em Ranke - já que ele cuida, no fundo, do orientalismo como um vetor da história do Estado -, outro em Marx - onde a força cultural, a superestrutura, é condicionada pelas forças econômicas e políticas do imperialismo, a infra-estrutura - Said invoca Hayden White de leve, como se temesse ser confundido com os modismos que carregaram o debate da historiografia nos anos 60, mais tarde denunciada por Pierre Bourdieu .

Se essas observações forem corretas, o autor estaria projetando no seu livro o crime que detecta no seu objeto de estudo. Pois o orientalismo denunciado por Said fica parecido com o árabe dos orientalistas - eterno e imutável. A diversidade do tema não convence Said de que o orientalismo é um tema rebelde a qualquer esforço reducionista. Ao contrário: para Said, toda a multiplicidade das manifestações orientalistas volta-se contra o próprio orientalismo, servindo apenas para confirmar o tom reacionário imputado ao tema ao longo de todo o livro. Talvez seja essa projeção - o estigma do assunto contaminando a análise crítica - a grande dificuldade no estudo das ciências humanas, um perigo tão real quanto o anacronismo. O historiador e o cientista social se envolvem tanto com o campo delimitado que acabam ocupando nele uma posição incômoda.

Essa ameaça assemelha-se à síndrome de aprendiz de feiticeiro. É como se o autor fosse levado, como Lawrence, de roldão pelas forças que desencadeia.



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