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La insignia
25 de julho de 2005


Improviso para Jean Charles Menezes


Nei Duclós
La Insignia. Brasil, julho de 2005.


Tua biografia escassa, Jean Charles, jaz fuzilada com cinco tiros pelas costas. Tua precariedade é tão profunda, que por instantes foste confundido com um terrorista no metrô de Londres. Nossa vista cansada embarcou nessa nota fria, antes que te reconhecessem, antes que confessassem a culpa. Não eras apenas a rotina dos assassinatos de uma metrópole tomada pelo medo. Eras um pouco mais. Descobriram que encarnaste por alguns minutos esse pânico que gera o terror e põe a culpa nas vítimas. Vinhas de um nebuloso conjunto de apartamentos vigiados pela vingança. Ias para o trabalho com teus olhos de índio, que uma testemunha definiu como asiáticos, com tuas pernas criadas no interior de Minas, que ao expressarem pressa sugeriam fuga. Vestias um casaco num dia de calor, porque aprendeste como é traiçoeiro o clima para quem confia excessivamente nele. Mas a suspeita provocada pela tua roupa era apenas a violência engatilhada na esquina. Não eras tu, eletricista sem nome na multidão em trânsito, em busca da cidadania que te negaram. Eras um "criminoso" levando embaixo do braço, oculto no casaco improvável, uma estupidez que enfim puxou o gatilho.


Covardia

Estavas lá por acaso, Jean Charles, porque eras indiferente à trama que aprontaram neste tempo de covardia. Nada tinhas a ver com a armadilha. Eras o único bravo num evento medonho, em que o terror está em quem persegue movido pela cega certeza, mira por falta de juízo, e mata por vocação. Vivias longe da política, mas não te deram esse direito sagrado. Trilhavas uma sobrevivência sadia, e isso te bastava. Mas escolheste o lugar onde não te queriam. Tua identidade oficializada num passaporte por anos experimentou essa sensação de viver num lugar que parecia de verdade, e não num país abandonado pela incúria, como acontece na tua nação de origem. Desde cedo, como lembra tua família, querias aprender lá fora o que aqui não te ensinavam. Cedo descobriste que, aqui, só a mentira enriquece, enquanto a verdade pede esmola nas calçadas demolidas. Por isso quando estavas pronto, quando havia determinação suficiente no teu espírito, tiveste coragem para dar um salto e lá foste viver o teu exílio desta terra sem palmeiras. Talvez na viagem lembraste os passarinhos que caçaste no mato junto com os primos e os amigos, Jean Charles. Fugiste da gaiola pela porta da frente e nada devias na cidade que é vista como um modelo de tolerância. Mas enquanto atravessavas o mar, o mundo mudava e o rosto da paz possível tomou a forma da máscara do horror sem limites.


Abutres

A polícia britânica, que era tão famosa por jamais usar armas, sinal de um país civilizado num mundo cercado pela barbárie, agora bate no peito e se diz arrependida. Como poderão ser perdoados, se estás morto, compatriota? Se te mataram porque eras um desterrado em terra estrangeira? Se tua avó, que tanto te amava, não dispõe mais da esperança de mostrar, orgulhosa, as fotos da tua viagem bem sucedida? Se teus parentes choram o amargo fim de uma vida que a todos encantava? Como poderão ser perdoados esses abutres de olhos fuzis, que, tomados pelo mais profundo medo, encontraram em ti o motivo para resgatar as vidas que perderam naqueles trens jogados no fogo? Eles queriam expiar a culpa de terem perdido tantos cidadãos de uma só vez. Estavam envergonhados porque isso aconteceu nas fuças deles, tão competentes que são, tão científicos nas divisões que fazem da humanidade, entre hispânicos, caucasianos e asiáticos. Como se fôssemos gado, animais em busca de comida.


Bravura

A verdade é que Jean Charles não precisava de vocês, seus megalômanos de merda. Nós temos uma civilização aqui, caralho, e ela se manifesta na bravura de um povo e não na incúria dos ladrões que sempre nos governaram. Não somos este país quebrado, somos um povo que não foge à luta, que enfrenta chumbo todos os dias, que verte sangue direto da carne exposta, que assim mesmo se movimenta pelo país e o resto do mundo numa diáspora inspirada na insubordinação, fundada na esperança e direcionada para a grandeza. Não somos cavalos, por isso não nos chamem com esses nomes racistas que fazem a civilização de vocês. Somos a humanidade, meus caros. Somos de uma outra natureza e de outra têmpera. Somos brasileiros cidadãos do mundo. E Jean Charles, que não conhecíamos porque isso não era da conta de ninguém, apenas da família dele, é o que temos a oferecer. Velem seu corpo brutalizado. Expatriem seu esforço e fiquem com vosso ódio. É isso o que vocês merecem. Devolvam Jean Charles e mantenham perto de vocês os inimigos que vocês mesmo criaram, graças à soberba que os governa, a ambição que os aniquila, a dor que vocês compartilham com quem nada tem a ver com isso. Nós ficamos com nossa pobreza e nossa biografia escassa. Não somos nada, nem ninguém. Somos um corpo peneirado pelas balas no subterrâneo de um país distante. Somos Jean Charles Menezes, nome próprio de uma nação que é a soma de todas as outras. E que chega à pátria que o esqueceu para ser depositado no pranto de quem o amou.



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