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La insignia
3 de fevereiro de 2005


Um destino indivisível


__Especial__
FSM 2005
Luiz Inácio Lula da Silva (*)
Envolverde/IPS. Brasil, janeiro de 2005.


A metáfora do século assumiu proporções devastadoras nas ondas gigantescas que invadiram o sul da Ásia no final de 2004. Uma voragem de água nos fez recordar que na história, como na geografia, não há destinos isolados nem limites que não sejam comuns. A nova geopolítica da existência humana revela uma capacidade inédita para lutar pelos grandes interesses coletivos, exigir respostas decididas, solidárias e coordenadas. Porém, não se trata de opor um ponto de vista autárquico e isolacionista às fronteiras expandidas pela globalização, mas de revestir suas bordas com a convergência da riqueza e dos direitos, reafirmando a vocação humana de economia e de progresso.

A partir dessa perspectiva renovada devemos examinar outra devastação nas estatísticas destes tempos: um terremoto silencioso se propaga desde as profundezas da desigualdade planetária e nos reitera o desafio de converter a cooperação no grande abrigo dos povos no século XXI. Abundância e injustiça são os traços marcantes do século XX. Nos últimos 40 anos o PIB mundial duplicou, enquanto a desigualdade econômica entre o centro e a periferia do planeta triplicou. Os 25% dos mais ricos consomem 80% dos recursos disponíveis, enquanto quase dois bilhões de pessoas subsistem abaixo da linha da pobreza, com menos de dois dólares por dia. As economias industrializadas gastam US$ 900 bilhões para proteger suas fronteiras, mas dedicam menos de US$ 60 bilhões às nações pobres, onde a fome é a principal arma de destruição em massa: mata 11 crianças por minuto, 24 mil pessoas por dia, o equivalente a um tsunami por semana.

Aterroriza a idéia de uma civilização que despeja ondas de morte sobre sua própria infância. Se não se conseguir deter o aumento da desigualdade, se as Metas de Desenvolvimento do Milênio não forem cumpridas, isto significará a primeira grande derrota humanitária deste século. Para romper a injustiça é necessário sacudir a indiferença. O encontro contra a fome e a pobreza, que reuniu uma centena de países e dezenas de chefes de governo na ONU, em setembro de 2003, faz parte desta empreitada coletiva. A organização dos países pobres em blocos regionais é outro esforço para incorporar a energia do comércio mundial à luta contra a desigualdade.

Antes de tudo, é necessário reformar a hierarquia das instituições multilaterais. Para que os países pobres possam colocar a luta pelo desenvolvimento nas prioridades da agenda global é preciso aprofundar a democracia nos centros de poder. A reforma da Organização das Nações Unidas, e em particular do seu Conselho de Segurança, fazem parte dessa agenda. Mas a linha de desigualdade não será alterada enquanto o poder político continuar congelado em um sistema financeiro que eterniza as relações prevalecentes. Quarenta por cento do poder de decisão do Banco Mundial pertencem aos sete países mais ricos. Cinco economias centrais retêm 40% dos votos do Fundo Monetário Internacional, enquanto 23 nações africanas prostradas pela fome têm 1%.

A solidariedade com a vida deve sempre superar o chamado da morte. As dívidas devem ser honradas, mas seu pagamento não pode significar a eutanásia do devedor. O excedente financeiro de riqueza tem que considerar o déficit social que aflige três quartos da humanidade. Isto não se enquadra no automatismo de alguma fórmula contábil. Trata-se, na realidade, da grande ação renovadora que se espera da democracia neste século: que a justiça social crie a nova fronteira da soberania no espaço globalizado. A reacomodação da esfera nacional do desenvolvimento com a dimensão global da economia converge assim para o território da cidadania, emprestando atualidade renovada às palavras do poeta José Martí: pátria é humanidade em ponto pequeno. As necessidades históricas de cada país encerram, portanto, um componente universal avesso a panacéias desagregadoras que reduzem a humanidade, e os povos, a uma abstração desprezível.

A eficiência desprovida de valores despojou o idioma econômico da linguagem dos direitos humanos. A trágica ilusão dos anos 90, com a aposta desenfreada na auto-suficiência tecnológica e na livre circulação de capitais, decretou a irrelevância do debate sobre o desenvolvimento. Por isso, devemos agora reafirmar a idoneidade dos fundos públicos para a recomposição solidária da sociedade e para promover o crescimento. Trata-se, em muitos casos, de resgatar os fundamentos da vida comunitária, como o direito à alimentação, à infância e à velhice, que são as vias de inserção afirmativa de um povo no espaço globalizado.

A luta internacional contra a fome e o programa Fome Zero, no Brasil, são o resultado dessa convicção estratégica. O programa Bolsa Família já garante uma renda mínima a 60% das famílias pobres. É o maior programa de transferência da renda na América Latina, que chega a 6.571.830 lares. As 20 milhões de pessoas beneficiadas por este programa incluem 15 milhões de crianças que freqüentam a escola, como contrapartida exigida pelo governo. No final de 2006, o Bolsa Família atenderá mais de 11 milhões de famílias, atingindo a totalidade dos pobres ou extremamente pobres no Brasil.

A mesma preocupação orienta outras iniciativas de meu governo, como a promulgação do Estatuto do Idoso, o fortalecimento da agricultura familiar, a reforma agrária produtiva, a massificação do microcrédito e as políticas afirmativas que abrem a universidade à juventude pobre e negra. O caminho necessário não é o que está pronto, mas o que se está construindo e ele deve ser ampliado e aprofundado. Vivemos um tempo de possibilidades humanas incontrastáveis. Nenhum pretexto utilizado para evitar que se empreste fisionomia e movimento às grandes esperanças trazidas do passado encontra justificativa tecnológica ou financeira neste amanhecer do século XXI. E onde surge uma dificuldade, se impõe o diálogo para repor a condição humana na condução da história.

Este plano inclui a tarefa de discutir pontos de possível interesse comum entre Davos e Porto Alegre. Não se trata de pedir a ninguém que deixe de ser quem é, mas de estabelecer um elo entre comunidades unidas pelo indivisível destino humano. Não se deve temer a palavra justa nem o interlocutor necessário. Mais do que nunca, outro mundo é possível, e qualquer forma de isolamento, bem como todo tipo de auto-suficiência, será derrotada em um tempo em que o desejo de justiça é tão forte quanto o poder da democracia para realizá-la.


(*) Luiz Inácio Lula da Silva é presidente de Brasil.



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