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La insignia
3 de abril de 2005


Primeiro de abril


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, março de 2005.


"Historicamente", assim começa um comunicado militar, ao relembrar os acontecimentos que deseja de 31 de março de 1964, "as Forças Armadas, lídimas representantes de todos os segmentos sociais, participaram, ativamente, de todos os episódios importantes na caminhada e no exercício da democracia. Exemplos dignificantes de amor à Pátria, esse sentimento que nada tem de exclusivista, marcaram cada período arduamente construído pelos que nos precederam."

No dia primeiro de abril de 1964, Sílvio chegou gritando:

- Bira levou um tiro na testa!

No mercado público de Água Fria, alguns meninos, adolescentes, cercaram Sílvio. Que brincadeira de mau gosto, rapaz. Todos conhecíamos Bira. Ele era o nosso intelectual, o nosso sábio, o mais velho de nós, o que lia, muito, "Bira já leu tudo", dizíamos, ele nos deslumbrava com as teorias de Darwin, ele exibia argumentos poderosos contra a revista Seleções. Aquilo, a sua queda com um tiro de fuzil na fronte, somente podia ser mais um primeiro de abril. Mas Sílvio tremia. Sílvio estava pálido. Sílvio já era um homem. E por assim estar, ele nos transmitia uma dúvida torturante. Que brincadeira bem representada, Sílvio. Vamos, diga que é mentira.

- Tem certeza que foi Bira!?

Sílvio olhava para os lados, e não mais gritava. Mais falava por inflexões dos olhos:

- Eu vi. Os soldados atiraram nos estudantes, na Pracinha.
- Mas foi Bira? Você viu o corpo?

Àquela altura, a desgraça não era uma hipótese. Sabíamos, pelo rádio, porque os locutores se esgoelavam para anunciar o golpe em marcha, com tanques. Os adolescentes apenas queriam que a fuzilaria na Pracinha do Diário, no centro do Recife, não houvesse atingido o nosso amigo mais sábio. Bira, aquele que sabia de tudo. Como ele não poderia saber que os gorilas se arregimentavam para matar qualquer ilustração? Como ele, Bira, o nosso amigo, não poderia evitar a própria morte? Talvez um tiro, uma bala na testa pudesse vir como um acidente. Atiraram na multidão, pensamos, atiraram a esmo, e sem querer talvez tivessem acertado alguém parecido com o nosso ídolo. Porque a multidão, deveria existir uma multidão revoltada, pensávamos, o povo em uma só voz estava em pé, em armas, para defender o seu governo. Por isso não entendíamos, por mais que Sílvio nos falasse com gestos, com a voz que parecia descer um tom, em um tom que não adivinhávamos ainda que se ia tornar um sussuro, um assobio clandestino, nos próximos anos.

- O nosso amigo Bira está morto.

Então entendemos, compreendemos, digerimos e acreditamos. Porque então percebemos Sílvio baixar os olhos, mudar de voz. Ele perdera o riso que gozava com a nossa inexperiência adolescente. Ele recuava para o balcão de sua lojinha de tecidos, num box do mercado público. Ivan deveria saber disto. Era urgente. Então fomos para a sua casa, a casa do marchante Joaquim.

"No início de 1964", continua a ordem do dia do Exército, "vivíamos um ambiente que refletia as inquietações de um mundo ideologicamente bipartido. Receios, incertezas, conflitos e perplexidade por toda parte. Agitadores infiltrados nas instituições legais realizavam um trabalho destrutivo das estruturas. Buscavam substituir as Forças Armadas por milícias. Disseminavam a anarquia. Virtudes, autoridade legal e consciência nacional claudicantes. Foi preciso coragem para defendê-las e preservá-las. O povo brasileiro precisou de alta dose de disciplina para manter-se fiel discípulo de sua própria vontade."

- Cadê Ivan? - perguntei, porque eu queria com ele conversar os últimos acontecimentos, dizer-lhe que talvez Bira houvesse morrido, queria que ele me explicasse os tanques na rua, se aquilo era um mau filme, se os comunistas haviam perdido a batalha. Se aquilo não era mais uma piada de mau gosto de primeiro de abril. - Cadê Ivan?

- Vem ver o teu amigo. Veja como ele está. - E sua mãe me conduziu até seu quarto, que era uma divisória de tabique sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. E ela se pôs a chamá-lo, a dizer-lhe que eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar à realidade, realidade que ela não sabia ser o pesadelo a se inaugurar. Chamava-o, "Ivan", para torná-lo ao Ivan de 31 de março, ao rapaz que era a esperança daquela família de seu Joaquim-da-carne-de-porco.

Ele ouviu, hoje sei, ele ouviu porque respondeu, para explicar o seu tormento:

- As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.

"A convivência respeitosa e tolerante não implica aceitação de uma ideologia tirânica disfarçada de sublime utopia aos olhos dos ingênuos. A tolerância ajuda a superar o fanatismo pela verdade única."

De fato, as impressões digitais de Eremias Delizoicov já estavam confirmadas pelo datiloscopista da Delegacia de Crimes Contra a Pessoa, de São Paulo, no dia 11 de dezembro de 1969. Era um cadáver de 18 anos: perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque uma só ferida, os cabelos, tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, davam a impressão de flutuar no chão seco. Nada havia naquele cadáver que lembrasse o jovem que eu conhecera. O menino que eu vira em 1968 não anunciava aquele fim. Eremias não era aqueles olhos apertados, a boca aberta, à procura de ar, a lembrar um afogamento. Um estranho peixe, com os cabelos a flutuar no seco.

Essas fotos dos mortos da Polícia Técnica são bem falsas na sua chocante realidade. Das simulações pornográficas estas são as mais mentirosas. É impossível discutir aqui a perversão das lentes da câmera, a direção que a mente acostumada à perversão dá a estas lentes, a convivência do fotógrafo com a perversão. Ou mesmo discutir o defunto dessas fotos como uma perversão. Defuntos que se apresentam como a encarnação da morte, quando deveriam ser apenas o resultado natural da morte. Esses fotógrafos de Institutos da Polícia Técnica são homens bem medíocres. São amantes e diretores de filmes de terror de quinta categoria. "Vesti azul, minha sorte então mudou. Vesti azul, minha sorte então mudou...", não, não pensem que enlouqueci. Há uma coerência entre essas canções despretensiosas, alegres, leves, e os cadáveres de terroristas do IPT. Não pensem jamais que vicejam hinos do Drácula em épocas sombrias, de repressão. Pelo contrário. Como cantavam Leno e Lílian, "é algo tão estranho que eu mesmo não consigo mais compreender, uma coisinha estúpida que eu gosto de sentir que é amar você".

Um ano antes daquelas fotos, eu conheci Eremias Delizoicov na Escola Técnica Federal de São Paulo. Um anos antes de ele virar um estranho peixe. Eremias era um menino que desejava ser homem, como todos da nossa idade. Ele foi a minha salvação no meio daqueles meninos burgueses, lembro. A Escola Técnica Federal de São Paulo daqueles anos possuía alunos da elite econômica do Brasil. Certo dia, percebi que um jovem gordo, que se vestia com blusões de couro tão natural como uma segunda pele, era filho do dono da Aços Villares. E eu então me encolhi mais em minha camisa de algodão, nos 10 graus do inverno paulistano. A conversa daqueles alunos toda era sobre carros, motos, motores, gatinhas, esportes. Onde um amigo, uma alma, um leitor, um irmão que entendesse e falasse sobre Platão, Descartes, os grandes inventos da humanidade, a música de Chopin? Quando me perguntavam sobre máquinas, potências de motores, eu lhes respondia que mais me preocupava O Discurso do Método. Um ridículo imenso caía então sobre o nordestino doido. "Pensam que a pobreza é lixo, e que rapaz pobre não tem coração". Não, não pensem que enlouqueço ao lembrar essas canções melosas, adocicadas, daqueles férreos anos. "Estava na tristeza que dava dó, vivia amargamente e andava só", lembro, tão nitidamente quanto lembro a diferença, o contraste dessa canção com a vida que não poderia brotar, de um mundo reprimido e coroado naqueles anos. "Que azul é a cor do céu, e do seu olhar também. Então eu fiz charminho e acrescentei ... Vesti azul, minha sorte então mudou", cantava Simonal. Porra nenhuma mudava. Porrrrrrrra nenhuma!!! Então eu não dizia "porra", porque isto significava manifestação de espírito inferior. "Vesti azul", e por não ter camisa azul, procurava o azul do espírito. Uma coisinha estúpida, a procurar uma alternativa que não fosse pular da vida fora.

"Receios, incertezas, conflitos e perplexidade por toda parte. Agitadores infiltrados nas instituições legais realizavam um trabalho destrutivo das estruturas. Buscavam substituir as Forças Armadas por milícias. Disseminavam a anarquia. Virtudes, autoridade legal e consciência nacional claudicantes."

- Você já leu Marx? Eremias me perguntou.

Virei-me para o intruso nas minhas divagações, porque à direita de Deus eu andava, na mais torpe danação. Ele era um jovem louro, baixinho, forte, com um ar permanente de sorriso na face. Aquilo não era bem uma pergunta, aquilo era uma provocação, de imediato percebi. Mas era bem melhor que ouvir fala do modelo do último carro.

- Já, claro. Quem não leu é estúpido, respondi-lhe.
- O Manifesto, você leu?
- Não, O Manifesto, não.
- Então leu o quê?
- Ah, ah, já li muito Marx, apresentado por Hegel.
- Ah, muito interessante. Hegel veio antes, sabia?

1 x 0 . O time da casa que lhes fala perdeu de frente. Ao escrever agora, não resisto ao impulso de desejar o impossível, que fôssemos mais maduros em 1968. Se não maduros, pelo menos profetas, leitores do futuro, videntes, para acabar com aquela discussão absurda, de competição, de dois jovens que gostavam de ler, e estavam condenados, o paulista, a um ano mais de vida, e o pernambucano a um vazio incapaz de completar esta frase. Naquela altura, eu ainda não havia lido Politzer, que fazia uma revisão da filosofia a ponto de deixar os jovens com a impressão de que eram uma etapa superior a todos os filósofos. Eremias, talvez, sim. Politzer era um passaporte para a ação, uma etapa necessária para que os estudantes dissessem estar preparados para as tarefas práticas e teóricas do socialismo. Eremias já era um militante em 1968, aos dezessete anos, sei hoje, pelos registros históricos. Daí que eu concluo, sim, com certeza, ele já passara por Politzer.

- É claro que eu sei, você não entendeu, eu lhe disse. E continuei, a gaguejar: - refiro-me a Marx apresentado por Huberto Rohden, você conhece? Ele contesta Marx com Hegel.

- Que confusão! Quem é esse ilustre senhor... o quê?

O irmão de Eremias diria, anos depois, que ele passara a questionar a realidade brasileira ao ler Geopolítica da Fome, de Josué de Castro. Isto quer dizer, vejo agora, que ele opunha questões mais substantivas às divagações metafísicas de um jovem na garoa paulistana. Naquela hora eu não via isto. Estava diante de mim um jovem a sorrir, que eu pensava estar a sorrir de mim, a zombar de uma pessoa que oferecia todos os motivos para a zombaria. Mas agora vejo diferente. Talvez a morte torne as pessoas mais virtuosas, mais razoáveis e transparentes à humanidade. Se não todas as mortes, pelo menos algumas dão um vulto a essas pessoas que antes não víamos. Eremias morreu como um herói, permitam-nos dizer. O aparelho onde estava caíra. Fora entregue por um outro jovem preso, que não suportara as torturas. Cercado por forças do Exército, Eremias sozinho resistiu. Resistiu à bala, sem nenhuma esperança. A distância nos permite dizer que ele, naquele tiroteio cerrado, chamava a atenção dos demais companheiros, que aquela casa havia sido denunciada. Que não era mais segura, para ninguém. Outra hipótese que nos ocorre é a de ele saber que não havia mais saída, se caísse vivo. A saber, não haveria mais saída de continuar vivo, sem delatar, como fora delatado. Mas não. A esperança é bêbada e louca. No meio da luta, ele poderia ter pensado, quem sabe?, eu sou mais esperto que a repressão, eu posso me entregar e sair vivo. E dali sair algemado, sob muitas porradas e pontapés e ferimentos, mas sair algemado. Talvez, na esperança, ele poderia ter gritado:

- Não atirem! Eu me entrego.

E ser igualmente morto, sob tortura, nos centros especializados do Exército. Mas até chegar a este ponto ele possuiria uma esperança. No entanto, em lugar de se render, há testemunhas disto, ele passou a atirar com a força e inexperiência da sua juventude. Então o mais provável é mesmo a hipótese heróica, a hipótese do sacrifício pessoal aos 18 anos, para que outros companheiros não caíssem, como ele, alvejado como um peixe inusitado, como um peixe estranho, a flutuar com os cabelos encharcados, escurecidos do sangue coagulado, com os olhos fechados a flutuar no chão seco. Por enquanto, não. Ele me olha, provocativo, e me questiona, enquanto discorro sobre o mundo metafísico, das mônadas e dos valores espirituais.

- E Graciliano Ramos, que me diz? Ele me pergunta, um ano antes da sua morte.

Então se funda a unidade entre nossas pessoas. Não tanto por Graciliano ser um nordestino. Muito menos por Graciliano ser um clássico. Mas porque passamos a falar sobre uma base comum, sobre uma admiração comum, sobre uma identidade que parecia impossível entre um migrante de Pernambuco e um paulistano da metrópole. Eu dizia há pouco que talvez a morte fizesse as pessoas mais humanas, a distância. E que talvez por isso eu acreditasse que Eremias não zombasse de mim àquela hora. Mas não, a minha certeza agora vem de fatos da sua vida, anteriores à sua morte. Em um perfil desenhado dele, o seu irmão afirma que Eremias passou a devorar os livros de Aluísio de Azevedo, de Jorge Amado e Graciliano Ramos. E que ele se impressionara vivamente com a poesia de Augusto dos Anjos. Ora, um jovem que lê tão cedo e ama tais autores está longe de rir e fazer chacota de um adolescente com uma camisa de algodão fino no inverno paulistano. Ele próprio já é uma diferença, rara, em meio a outros jovens, de blusão de couro, forrados com pele de urso, que contam vantagem dos modelos importados de carros e das viagens aos países que jamais alcançaremos. Se Lombroso fracassou na sua investigação das pessoas a partir das características físicas, acredito que não fracassaremos nós em conhecer alguém pelas leituras e livros que ama. Então reconheço que Eremias já era grande antes do seu feito final. Mesmo que Eremias levantasse os braços e saísse gritando:

- Não me matem, eu me entrego!

Então seria uma coisinha estúpida a balançar sob os balaços nervosos numa câmara de tortura. Algo tão estúpido quanto

"Vitoriosa, a Revolução de 1964 nos assegurou perspectivas mais nítidas de convivência e a tolerância com limites. Ela nos passa a silente mensagem de que, a qualquer tempo, atentos e preparados, estaremos prontos para a defesa da democracia."

Ao fim e por fim, esses comunicados querem nos fazer crer, Eremias Delizoicov, que a nossa sorte então mudou. Um autêntico "Vesti Azul" de primeiro de abril. Se vivo estivesse, você diria que Simonal cantava isto em melhor prosa.



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