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La insignia
13 de novembro de 2004


Palavrinhas e palavrões


Millôr Fernandes
La Insignia. Brasil, novembro de 2004.


«Esse palavrão não é meu, pqp!»

Aos vários teleitores que me i-meilaram, e aos inúmeros que não, mas devem ter lido na Internet um artigo sobre palavrões, atribuído a mim, declaro, veementemente, que o artigo não é meu. É um artigo vulgar, com argumentação falha, sem nenhum conhecimento lingüístico. E com humor mais que discutível. Fico triste por alguém achar que isso possa ter sido escrito por mim. Assim não vale.

Em passado, felizmente remoto, fui, várias vezes, vítima dessa confusão. Em minha tradução da peça A Volta Ao Lar (Homecoming), de Harold Pinter (cujo nome original é Pinto), fui acusado, pelo jornal O GLOBO, de enxertar a peça com palavrões. O jornal que, na época, (o que o lado de cá chamava de anos de chumbo e os de lá chamavam de anos dourados, os dois lados tendo razão pois todo depiende del cristal com que se mira), ainda não era um jornal de esquerda, procurava me enquadrar como imoral, assim ficando bem com o moralismo da "Redentora". Coisas do tempo.

Absolutamente justas. Quem vai à chuva é pra se molhar. E eu tinha perdido o guarda-chuva.

Escrevi a resposta, sem ira, mas confesso que com alguma ironia, procurando esclarecer o Dr. Roberto Marinho, sempre aberto a um diálogo, e até mesmo a um decálogo.

Palavrões e palavrinhas

Como pouca gente me conhece é preciso que eu me defina. Sou um escritor (jornalista) profissional. Um escritor profissional é aquele que vive do que escreve. Eu vivo do que escrevo desde os treze anos de idade. Portanto, quando alguém me acusa de uma desonestidade intelectual sou obrigado a me defender pra que a minha clientela (o público que me paga) não me abandone. Só isso. Nenhuma outra pretensão.

No caso presente fui acusado pelo jornal O GLOBO de ter feito poderosos enxertos na peça de Harold Pinter, A Volta Ao Lar, a fim, acredito que seja essa a minha intenção, de torná-la mais picante e, pois, comercial ou subversiva. Ora, como não coloquei na rubrica da peça que se tratava de uma tradução livre ou de uma adaptação, a acusação passa a ser grave. Daí este artigo.

Continuo minha autodefinição. Do ponto de vista filosófico (valha a pretensão da palavra mas ela exprime mais do que uma posição intelectual, abrange toda a atividade humana, no que me diz respeito) sou um radical-liberal tendendo ao anarquismo. Defendo a extrema liberdade de cada um se expressar (e agir) como melhor entenda, isto é, até o limite da liberdade alheia (aprendi no código de Hamurabi).

Em teatro, no momento, isto significa que defendo violentamente a linguagem (e tudo o mais) de Dois Perdidos numa Noite Suja, Navalha na Carne, Rei da Vela e outras peças parecidas ou semelhantes e sou contra os excessos do espetáculo Roda Viva porque estes invadem a liberdade do espectador, agarrando-o, sujando-o, ou ofendendo-o, individual e levianamente. (Na noite em que assisti à peça com um diretor de teatro meu amigo, este foi chamado de boneca e mandado à merda. Ora, o diretor em questão é reconhecidamente hétero, tem uma definida e ativa posição política, é autor, junto comigo, de Liberdade, Liberdade, o espetáculo até hoje mais agredido pelas milícias no poder, e foi preso entre os "Oito do Glória". Portanto com uma folha de serviços "públicos" bem maior do que qualquer um dos que o ofendiam. Pergunta-se: onde é que está a graça, o sentido?)

Porque respeito a liberdade dos outros mas sei muito bem até onde ela vai, uso toda a minha mas conheço também os seus (meus) limites. Se não declarei ter feito alterações na peça de Pinter tenho que me defender d'O GLOBO que afirma, em sua primeira página: "Harold Pinter, o autor da peça A Volta ao Lar, que bateu vários récordes em matéria de palavras obscenas que apareciam na tradução brasileira, declara-se contrário à praxe de franquear o passe à linguagem obscena: "Não estou de acordo, no que me diz respeito, ao sexo; esta atitude subjacente em muitas pessoas de mentalidade liberal de franquear o passe à linguagem obscena. (...) Usei esse tipo de palavras uma ou duas vezes em minhas peças. Mas não puderam passar pela censura".

Conclui O GLOBO: "Isso prova que a tradução brasileira recebeu numerosos e poderosos enxertos de palavras obscenas".

Ora, eu reconheço que seria muito exigir que um jornal com tantos afazeres como O GLOBO pegasse um especialista para que lesse o original de Pinter e o comparasse com a minha tradução. Em vista disso eu mesmo, neste artigo, faço a comparação, a bom mercado. Como, porém, essa comparação não pode ser total, dado o espaço, esclareço logo que "A Volta ao Lar" tem, literalmente contadas, mais de cinqüenta expressões ou palavras que os defensores da decência vocabular chamam de chulos.

Entre elas whore, crap, tease e arse que, está na cara, não são vocábulos que se pronunciem tranqüilamente na presença da Rainha Mãe ("Philip, watch your languague, will you?").

Porém o mais estranho na discussão sobre minha possível influência na peça é que, evidentemente, a violência da linguagem só existe por se encontrar num contexto igualmente violento. A retirada dos palavrões poderia tornar a peça menos autêntica mas não alegraria os profissionais da pudicícia tornando-a menos escabrosa (1).

Tire O GLOBO todos os palavrões desta peça e não terá tirado dela a cena básica em que a personagem principal se entrega ao cunhado, meiosôbreodébilmental, na presença do marido intelectual, do cunhado proxeneta, do pai amoral (sempre apavorado pelo fantasma do homossexualismo que ronda a família) do tio que, ao que tudo indica, trabalha também no setor dos andróginos. Todos assistem tranqüilos à cena lúbrica, contentando-se apenas em fazer comentários técnicos sobre a atuação do casal erótico. A cena pode ser tétrica ou hilariante, dependendo dos atores e diretor, mas está muito além da imoralidade representada por qualquer palavrão (2).

E a peça tem muitas palavras mais contundentes do que palavrões, dada a ocasião em que são usadas. É fácil exemplificar: "Pode chupar à vontade" dito por uma vovó a um neto diante de várias mangas maduras é uma frase de simpático tom familiar rural. Porém a mesma frase numa peça de Plínio Marcos é, decididamente, um convite ao enfarte para o general Façanha. Não há, pois, que se horrorizar com o palavrão. Tudo é palavrão e nada é palavrão. Palavras e expressões tais como "tira, bota, mais, mexe, aí não, é muito grande, que coisa enorme, etc..." não são palavrões e, pelos critérios da censura, posso publicá-las livremente, que é o que estou fazendo. Se o leitor achou essas palavras indecentes é porque colocou-as num contexto de sua própria criação. A imoralidade é sua (3).

Ao contrário, a expressão "Filho da puta" pode ser usada como expressão de grande admiração e encanto ou de extraordinário carinho, como no caso, famoso, do grande craque inglês (eqüino!) glorioso na história do hipismo. É evidente que o dono não lhe pôs esse nome para ofendê-lo.

Mas fiquemos nos palavrões convencionais que, por ironia, em inglês são chamados de palavrinhas (four letter words), tais como poke, tart, bang, crap, e arse (todos em Pinter). Aliás as palavras são tantas, e a declaração de O GLOBO tão peremptória, que comprei outra edição da peça, pensando cá comigo: "Quem sabe foi publicada uma edição expurgada?", uma dessas edições que um escritor faz o "arrependido", depois de ser submetido a um brainwashington (como diria o lbrahim Sued). Tenho em mãos, neste momento, a edição inglesa de Methuen & Co. Ltd. e a edição americana da Grove Press. Para infelicidade de meus detratores as edições são quase literalmente iguais. Diferenças apenas de revisão.

Assim, baseando-me na edição da Grove Press (porque esta pode ser encontrada no Rio, para quem quiser me pegar em falso) dou a seguir algumas expressões da peça, no original, para educação e enaltecimento geral dos meus leitores. Esclareço apenas, pra bem da verdade, que, sendo o ato de traduzir uma constante opção, pois é comum uma expressão de uma língua não ter o mesmo peso em outra, eu, em português, optei sempre pela expressão mais forte. Meu crime, se existe, é apenas o de não acreditar em frescuras lingüísticas.

Assim a expressão Son of a bitch, que pode ser traduzida por Filho da mãe (mais fraca do que em inglês) foi traduzida por Filho da puta (mais forte do que em inglês).

Vejamos, para não cansar muito, apenas algumas palavras e expressões do primeiro ato de A Volta ao Lar.

Max - What you been doing, banging away at your lady customers, have you? (...) Been having a few crafty reefs in a layby, have you?

Aqui Max, o patriarca da família, personagem principal da peça, sugere ironicamente que seu irmão mais moço (também velho a essa altura) tem relações sexuais com suas freguesas. A insinuação é extremamente irônica porque Max parte da suposição de que o irmão é impotente ou homossexual.

Max - What do you want, you bitch? You spend all the day sitting on your arse at London Airport.

Ainda Max se dirigindo ao irmão. Note-se a suprema ofensa de tratá-lo de bitch, que além de significar puta, é palavra do gênero feminino. Arse é aquele ponto final da espinha dorsal de todos nós. Todos têm um. Faz parte da condição humana. A sabedoria popular brasileira diz, aliás, que, quem o tem, tem medo.

Sam - He was a lousy stinking rotten loudmouth. A bastard uncouth sodding runt.

Aqui o irmão Sam reage e diz o que pensa de MacGregor, veneração do irmão mais velho. Veja-se a saraivada de adjetivos (inclusive bastard usado como adjetivo) para qualificar dois substantivos runt e loudmouth, já em si bastante pejorativos.

- One lot after the other. One mess after the other (...) One castiron bunch of crap after another. One flow of stinking pus after another.

A frase termina com "uma golfada de pus fedorento atrás da outra". Sem querer traduzir o resto, advirto que o velho Max, o patriarca, está aqui se referindo ao irmão e filhos.

Why don't you stuff this iron mangle up your arse?


Há muitas palavras repetidas, naturalmente. Repito esta aqui apenas por que quem fala é o bonitão Lenny, filho proxeneta. A cena é edificante porque ele está contando à cunhada como a velhinha lhe pediu para mudar de lugar uma máquina pesadíssima e ele respondeu: "Ora, minha senhora, por que a senhora não pega essa máquina e enfia no cu?". Note-se que ele conheceu a cunhada há apenas dois minutos.

Max - Who asked you to bring dirty tarts into this house? (...) We've had a smelly scrubber in my house all night. We've had a stinking pox ridden slut in my house all night. (...) I haven't seen the bitch for six years, he comes home (...) he brings a filthy scrubber off the street.
Teddy - She's my wife! We're married!
Max - I've never had a whore under this roof before. Ever since your mother died. (...) Have you ever had a whore here? Has Lenny ever had a whore here? They come back from América, they bring the slopbucket with them. They bring bedpan with them. Take that disease away from me.

Julgue agora o leitor se eu, como tradutor, poderia ter melhorado essa cena em matéria de violência e grosseria. O filho, ausente há seis anos, voltou da América, não quis incomodar o pai, dormiu na casa com a mulher. Agora, de manhã, o velho Max vê o filho pródigo de volta, conhece a mulher dele. Que faz o nosso patriarca? Aos berros, indignado (sempre o complexo de ser passado pra trás) chama a jovem (de aparência extremamente agradável, elegante, de boa posição social) de prostituta, logo de prostituta suja, logo de porcaria nojenta, e, sem poupar o filho, que chama de bitch, continua a repetir os palavrões para a nora, até a suprema ofensa de chamá-la de lata de lixo e urinol (a tradução literal seria "comadre"). E termina dizendo "Tira essa pústula (disease) de perto de mim." No meio ainda encontra jeito de ofender a esposa morta: "Nunca houve uma prostituta debaixo deste teto. Desde que tua mãe morreu."

Aqui, leitor, termina o primeiro ato. As palavras usadas por Pinter se duplicam, naturalmente, no segundo ato. Os leitores interessados poderão comparar para verificar até onde minhas possíveis liberdades ultrapassam o plano da validade literária. Mas não adianta consultar dicionários. Em inglês, como em português, os dicionários continuam pudicos por princípio e atrasados por motivos técnicos. Se errei em alguma palavra, desde já me penitencio. Errar é uma tradição dos tradutores, tão antiga quanto São Jerônimo, que fez Moisés descer o Sinai com um magnífico par de chifres quando na verdade o Patriarca Bíblico tinha na fronte dois raios de luz.


1) Para exprimir o ridículo da atual posição cultural dos nossos censores eu escrevi, há um mês, uma cena na qual dois homens estão trabalhando numa via férrea, pregando um enorme prego num dormente. De repente um erra e a marreta acerta em cheio na mão do outro. O outro se vira e diz: "Companheiro, por favor, doravante queira tomar mais cuidado com o trabalho senão acabarás me machucando seriamente".
2) Essa cena torna inacreditável as declarações de Pinter, sobretudo se considerarmos que ela foi interpretada pela atriz Vivien Merchant, mulher do autor.
3) Minha peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros, tem apenas um palavrão. No entanto eu a considero das coisas mais violentas que já se escreveram sobre este nosso mundinho brasileiro internacional.

Correio da Manhã, 31 de março de 1968".



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