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La insignia
7 de fevereiro de 2004


Depoimento de Natalício Moreira Lima

O índio tabajara


Luís Nassif
Folha de São Paulo. Brasil, fevereiro de 2004.


Natalício Moreira Lima, o solista do duo Índios Tabajaras, mora em Nova York, perto do Central Park. Com seu irmão Antenor foi sucesso internacional nos anos 60 e 70. Em 1963, sua gravação da "Maria Elena" superou 1,5 milhão de discos vendidos, desbancando os Beatles na lista dos mais vendidos.

O depoimento a seguir foi concedido por telefone no dia 29 de janeiro, por telefone.

"Nasci na serra do Ibiapaba, entre Piauí e Ceará. Nesta serra, em 1929, existia Ubajara, cidade pequena, lugar famoso hoje. Naquela época não era. Um dia apareceu por lá uma tropa de militares, chefiada pelo tenente Hildebrando Moreira Lima.

Era muita gente e mudou nossa história. Não tínhamos cidade, éramos uma tribo mesmo, fomos criados na tribo Tabajara, morando em um terreno que não era nem Ceará nem Piauí, era uma área de litígio.

A tropa de militares foi para lá para aparar uma tropa que vinha do Piauí, de um lugar chamado Tucurutiba. Passaram por lá 20 dias. Fizemos amizade. Não éramos aqueles selvagens que todo mundo dizia que os índios eram. Nós estávamos a um quilômetro da beirada da serra.

Um dia meu pai saiu da aldeia e disse que viu um buraco enorme nos pé da serra. Nós estávamos na chapada e meu pai havia visto serra abaixo. Aí começou uma ventania, uma chuva e ele passou três dias ali. Quando voltou à tribo nossa, antiga, disse que nunca havia visto buraco tão grande. Viu lua sair do chão. Nós ficamos curiosos porque nunca vimos lua sair de lugar nenhum, apenas de trás das árvores.

Nós fomos em três irmãos até lá, chegamos lá e começamos a comer fruta enorme, besta, que não vale nada, chamada Ingá, maior que feijão e contém espécie de algodão em volta, muito doce, muito bom. Quando olhamos, vimos um violão, metemos a mão, fez aquele som, levamos um susto.

Levamos para tribo. Naquela época, os índios não deixavam ninguém chegar a menos de 600 metros dali. Vivíamos isolados. O violão causou transtorno na tribo. Havia outro som que escutávamos às seis da tarde, e não sabíamos o que era. Nós, pequenos, pensávamos que era violão. Era sino de cidade a uns 60 quilômetros dali, o sino de Ibiapina, assim chamada porque lá era terra completamente pelada.

Um dia um soldado levou flechada, era um soldado baiano, um mulatinho bonito. Os curadores da tribo curaram com infusões em menos de cinco minutos, uma espécie de leite que se faz da folha de uma árvore. Dois ou três pingos igual que leite. Depois de cinco minutos fica uma cola horrível. Nossos curadores curaram aquele soldado que caminhou na mesma hora. Os soldados ficaram muito admirados. Eles já tinham trazido caixão branco com cruz. Começou ali amizade entre ele e uma das meninas da tribo.

Quando soldados se foram começamos a sentir saudades do café, bolacha redonda de meio palmo e carne seca. Nós não conhecíamos, e também gostávamos da corneta dos corneteiros. Só tocava quando ordenado mas algumas vezes tocava algumas coisas.

Eu tinha 8 ou 10 anos. Tribo tinha menos índios que soldados, que eram mais de mil. Nós éramos uns 700.

Diziam que meu pai era guerreiro ou chefe. Não era. Ele perdeu o colar de guerreiro, porque na tribo o guerreiro ganha aquele colar de dente de onça. E o pai perdeu por coisa incorreta que fez. Não permitiam nem que ele caçasse. Para casar necessita ser guerreiro. Como tinha casado antes de perder o colar, tinha 13 filhos.

A mãe estava grávida do 14º, todos homens, cada um com seu número no nome. Mas a gente dava número e não conseguia contar mais que cinco. Toda noite contava as estrelas e não passava de cinco.

Usavam muito medicina de mato. Eu gostava de comer barro e passava mal. Tinha vício daquilo e quase morri. Os curadores diziam que eu iria morrer daquilo, porque criava bicho na barriga.

Os militares foram embora mas nos deixaram batizados. Padre que se chamava Magalhães, andava sempre de preto e se ajoelhava, a gente ficava admirado. Na cidade tinha gente de todas as cores, preto, branco, loiro, alguns com barba no rosto.

Quando se foram, meu pai disse: nós vamos procurar nossos amigos. Era difícil porque eles tinham carro, canhão com roda, e depois da chuva grande, com a terra ainda molhada, deixaram sulco e nós seguimos. Não tínhamos roupa. Passamos aventura desagradável. Vestíamos penas.

Ibiapina tinha apenas 4 ou 5 casas na ladeira. Mas lá embaixo tinha vila de 50 pessoas. Seguimos na serra, passamos toda Ibiapina, e chegamos a um lugar, uma lagoa em cima, não tinha ninguém lá. O engraçado em Ibiapina é que tinha árvore muito grande. Em volta dela tinha outras árvores pequenas poeirentas e muita bosta de cabra.

Começamos a olhar as bostas, redondinhas e as frutinhas redondinhas que nunca tínhamos visto. Minha mãe ficou varrendo ali e fui dar umas voltas, 30 ou 40 metros dali. Aí encontrei um menino que se assustou, eu me assustei muito mais. Quando o menino gritou e saiu correndo, um cachorro me mordeu. Sinto até hoje a mordida. Daqui a pouco chegou uma porção de gente com rifle e com chapéu de couro e de palha. Iam matar aquele cachorro, mas meu pai não deixou.

O povo trouxe roupa, calças, vestidos para minha tia e minha mãe . E começamos a usar roupas. Quando fomos embora, roupa não era muito confortável. A do meu pai era muito grande.

No próximo lugar, Ubajara, na parte baixa não tinha mais que dez casas. Nós estávamos todos vestidos, mas nossa cara assustava. Fomos acompanhando o sol e chegamos em uma fazenda e trabalhamos três dias em uma casa de farinha. Pela primeira vez ganhamos dinheiro, que nunca tínhamos visto antes. Ensinaram que tinha que guardar no bolso. Até hoje tenho ele. Era do tempo dos mil réis, do vintém.

Recebemos dinheiro e continuamos caminhando três dias e chegamos a um lugar às quatro da manhã. Durante dia terras muito quentes, areia que ninguém agüenta.

Chegamos às quatro da manhã, com o dia quase querendo nascer. Chegamos em um lugar onde havia som fantástico, de harmônica. Tinha um sujeito que levou uma cacetada e foi amarrado perto de onde a gente estava. Havia uma luz muito forte, de carbureto. No Rio ninguém conhecia carbureto, mas ele dá luz muito forte.

O camarada estava pendurado pelos pés e então eu falei uma palavra que ninguém sabia falar na tribo, mas eu conhecia. Apareceu por lá um soldado para casar com uma menina da tribo, pediu demissão do Exército, a irmã do camarada que recebeu a flechada se chamava Loreda, era uma pretinha muito bonita para nós. Gostava de ver, porque era bonita, tinha um corpão. Era professora. Ela falava português, e apenas eu que era mais curioso aprendi algumas palavras.

O camarada que amarrou o outro ia dar uma punhalada de meio metro. Quando puxou a faca, eu disse: vai matar. E meu pai deu um flechaço naquele camarada. A flecha agarrou de uma maneira que quase saiu do outro lado.

Ele se ajoelhou, porque a dor era danada. O sujeito amarrado na corda, o camarada caiu com a cabeça no chão quando o outro largou. O camarada que ia morrer agarrou o punhal e executou o outro na frente de nós. Ele entendeu que nós devíamos fugir dali e corremos com ele.

Na nossa tribo ninguém mata não. Nós éramos muita gente demais, e não matamos ninguém. Somos tudo de uma família com a mesma cara, da mesma cor, ninguém tem nada para roubar. E começamos a correr levando tiro nas costas. Corremos um quilômetro, era muita corrida, nós tínhamos irmão pequenininho.

Chegamos a um lugar que tinha cheiro muito ruim, era caminhão que nunca tínhamos visto. Devia ser cheiro de gasolina ou óleo. Camarada: sobe aí, disse o motorista. Subimos, ele começou a correr. Tinha couros de animais lá dentro. Mas o cheiro da gasolina era pior. Ele correu seis ou oito horas pelas estradas, cheias de ondas, terreno ondulado e nós sentados em cima daqueles couros, dançava, chacoalhava, era coisa horrível.

Chegamos em Fortaleza, em uma casa com cheiro horrível. Era o mercado.

Botamos nossas coisas do lado de fora, saímos do caminhão e entramos para ver. As coisas da cidade têm um cheiro que apenas o povo da cidade agüenta. Descobri depois que se chamava Mercado Modelo. Fui outro dia mostrar para minha quarta esposa.

Ficamos oito, nove dias em Fortaleza. E o camarada que nos trouxe de Sobral hospedou na casa dele. O pai ajudou a cavar um poço que chegou a dar água na casa dele.

O camarada nos levou no caminhão até lugar no centro de Ceará que se chama Senador Pompeu, lugarzinho pequeno. Parou perto de um edifício com janela redonda que tinha uns vidros verdes, amarelos e uma cor muito bonita. Tinha luz lá de dentro mas não chegamos a entrar.

Ele queria comprar fazenda e nos levou para lá. Disse que se a gente ficasse dez ou quinze dias caminhando, chegaríamos na serra do Araripe. Ele tinha um amigo lá, o Moisés. Chegamos antes disso. Disse que tinha árvore muito grande, a maior da região, e se a gente mirasse a árvore, não nos perderíamos.

Chegamos debaixo da árvore, na casa do Moisés, que era mais alto do que nós, mas não era forte. Mas tinha armas e a esposa dela era branquinha e fumava cachimbo horrível. Nós nem conhecíamos mandioca. É coisa de índio, mas na nossa região não tinha nem mandioca, nem manga, nem coisa nenhuma. Tínhamos piqüi, graviola, murici, maracujá, croatá.

Foi quando meu pai teve um acidente com sujeito que era cangaceiro, morava em uma casinha, não era muito longe, mas para mim, naquela época, qualquer distância era longe. Tinha sujeito tocando harmônica. Minha tia tinha 14, 18 anos, era muito bonita, bem feita, bonitinha. O camarada tocava e todo mundo dançava. Quando sujeito puxou a minha tia para dançar, ela não sabia. O sujeito tinha punhal grande que molestava ela e, ademais, ela não ia no passo porque não sabia. Sujeito fez ela chorar.

Meu pai puxou ela do braço dele e ele ficou danado, e puxou punhal que não tinha mais tamanho,. Tinha um sujeito com muleta ali, meu pai pegou a muleta e deu uma muletada no cangaceiro. Sangue saía que parecia mel. O povo apartou e nos disseram, corre porque são cangaceiros. Corremos para casa, a porta era mais ou menos de uma madeira com abertos entre uma tábua e outra e podia ver do lado de fora. Ficamos assustados, meu pai agarrou rifle que Moisés deu, porque todo mundo nos sertão tinha rifle.

Mais ou menos quatro da manhã chegou sujeito a cavalo e na porta gritaram: abra aí porque senão vamos mandar bala para dentro. Meu pai ficou assustadíssimo e eu por ali olhando, muito curioso, para mim não tinha medo, mas meu pai estava completamente assustado. Os camaradas de fora começaram a atirar e balas que passavam pelos buracos e pelas tábuas.

A tia disse que corpo estava com formigueiro, ia desmaiar. Meu pai entendeu que ela ficou ferida, se desesperou, abriu a porta e começou a atirar, e atirou tanto que camaradas morreram, porque cavalos começaram a pular e desequilibram todos. Minha tia também morreu, com um vestido que camarada que trouxe de Fortaleza deu para ela. Antes de morrer pediu para colocar vestido e sapato, que nunca tinha usado.

Meu pai foi então para casa de um sujeito branco, muito rico, muito famoso nos sertão daquela época. Disseram para ir porque era sujeito muito bom e ia proteger e a polícia vinha ali. Quando polícia chegou na casa do sujeito, o camarada não deixou, armou um tiroteio. Ele era chamado de coronel, mas não era da polícia. Deu um tiro no sargento, e acabaram matando os soldados.

Meu pai acabou preso um ano e seis meses. Mas prisão era do lado de fora, uma árvore grande cortada em diversos pedaços e pessoal ficava sentado em volta. Meu pai não entendia o que o povo falava em volta dele, ninguém sabia qual era o crime, porque tinha sido em outro lugar.

Em casa, não havia nada que comer e nós começamos a querer plantar alguma coisa, igual o povo do sertão faz: limpa terra, bota fogo e começa a plantar feijão e milho. O foguinho apagou fácil. Fomos para casa descansar um pouco, foguinho começou a pegar fogo, pegou em toda a serra do Araripe. Às oito da noite muita gente veio ajudar para apagar o fogo. Uma meia-noite ainda era claro como o dia. Foi o fogo maior do sertão. Mais de quarenta dias, toda serra de um lado a outro.

Meu pai conseguiu escapar de lá e foi até onde nós estávamos. O coronel descobriu que fomos nós, levamos surra horrível.

Não havia mais nada que comer naquele lugar e saímos.

Aí começamos a escutar história de romeiros, que lá em Natal havia navios e que eles davam passagem para povo ir para Rio de Janeiro. Acompanhamos os romeiros, passamos mal de fome, passávamos pelas feiras e comíamos casca de melancia, caroço de jaca. Quando chegamos em Natal, era longe para burro, dez ou quinze dias depois. Meu pai ia para cais do porto, mas não sabíamos a quem pedir passagem. E tinha muita fila e muita gente querendo ir para Rio de Janeiro. Papai não falava nenhuma palavra do idioma português.

Resolvemos sair por nossa conta. Minha mãe, antes de morrer, tinha o filho número 15, e tivemos que deixar com gente do sertão, gente boa que nos dava comida.

Algumas vezes cantávamos com aquele violão que havíamos encontrado, mas não era tocando, era batendo, fazendo ritmo indígena. Vimos violonista tocar e passávamos o dia inteiro escutando. Chegava a hora de urinar, não sabíamos aonde mas agüentávamos escutando aqueles violonistas, que era uma coisa muito bonita.

Depois fomos caminhando pelo sertão e trocamos violão por quatro quilos de feijão. Fomos andando, passando Bahia e outras localidades até chegar ao Rio de Janeiro.

Um dia vimos os soldados esfarrapados que vinham seguindo Lampião. Fomos a uma festa em uma cidade. No outro dia, bem cedo, Lampião esteve lá naquela casa. Vimos Lampião. Não era aquela coisa de sujeito de dois metros de altura. Era um sujeito comum, era pretinho, cabelo um pouco ruim, era cor de cobre. Conversei com ele. E eu dizia a ele: o senhor mata muita gente? E ele: eu? Minha nossa senhora....... Eu não mato ninguém. Você escuta muita história aí.

Mas ele matava. Quando ficava com raiva matava com aquele punhal que não tinha mais tamanho, e não tinha pena nenhuma.

Quando chegamos ao Rio, no centro da cidade tinha lugar que se chamava Praça da Harmonia. Tinha lugar que se chamava Albergue da Boa Vontade. Lugar onde nós tumava banho, depois nos vestiam com saia branca e nos davam cama. Nós nunca havíamos dormido em cama, e tinha café de manhã, e mate. Passamos uns quinze dias lá.

Ali conhecemos, do lado de fora, sujeito que trabalhava com bandeirola do trenzinho. E ele nos disse assim: porque não vão morar em Realengo, lugar muito bonito, tem casas boas, sou futebolista. Era Alfredo Pé de Anjo, jogava em um pequeno clube.

A casa custava dois mil réis. Mas não era nada naquele tempo. A casa não tinha telha, mas era uma casa. Ainda hoje nos pertence. Meu irmão mais velho é quem toma conta, fica na rua Tecoté 69. Moramos dois ou três anos. Dali fomos à Ilha do Governador, meu pai comprou uma terra.

Não aprendi a ler, mas aprendi a tocar melhor violão quando fizemos uns serviços no Ceará. A música nos entrou muito forte. A música popular naquela época era muito boa, (cantarola) " porque bebes tanto assim, rapaz? ...".

Quando chegamos no Rio, tocava muito pouquinho. Depois fiz Serviço Militar, passei três anos e aprendi a tocar melhor. E consegui violão de quatro cordas Del Vecchio, violão tenor, sim.

Aprendi a tocar bastante bem. E saí do Exército porque um sargento começou a implicar comigo, porque eu tocava nos aposentos que pertencem a cabos e sargentos. Eu era cozinheiro, porque eu gostava de comer e de café. O sargento começou a pedir alguma música que eu não entendia. "Se você não toca, pára com essa charanga", disse e veio para mim como se fosse bater. "Eu vou lhe enfiar a mão". Eu disse: se enfiar a mão na minha cara, eu vou enfiar também. Apartaram e fui preso por sete dias.

O comandante era muito brabo, mas era bom. Me liberou antes de sete dias, mas o sargento ficou lá. Depois que saí do Exercito, não pude seguir. Tinha guerra contra alemães, eu queria ir de voluntário, mas não pudemos ir.

Então comecei a tocar um pouco pelas ruas. Tinha 16 anos, mas não tinha tamanho. Não tenho mais que 1,70. Era o mais alto da tribo. Aliás, o mais alto tinha dois metros, era o tio Ta. O nome era Ipeutá. Mas o resto era tudo baixinho.

No Rio, começamos a tocar na rua. E nos jogavam algum dinheiro e a gente ia vivendo bem, mas dava muito vergonha porque éramos grandes, já.

Então fomos dar uma prova numa estação de rádio. Fomos falar com diretor da Cruzeiro do Sul, o Paulo Roberto. Perguntou: vocês são de que tribo? Cantávamos de uma maneira estranha.

A gente não dizia que era índio, porque as pessoas tinham medo. Ele insistia: mas vocês têm cara de índio, a linguagem de vocês é muito estranha.

Resolveu dar um contrato por uma semana e um conto de réis, que era muito dinheiro para nós. Na rua, ganhávamos dois mil réis no máximo . Aï contamos que nós éramos Tabajara. Aí disse que ia anunciar a gente como Índios Tabajaras. E o povo gostou.

Ficamos outra semana. Dali fomos trabalhar na Casa do Caboclo, que tinha shows, tinha o Apolo Correia, ator. Nosso trabalho era entrar na cena com violão, cantar coisa indígena, a gente saía e entrava de novo, o povo ria muito.

Dali saímos a viajar no Circo, fomos a Belo Horizonte. Durante o dia fomos a um cassino e conhecemos artistas, o Alvarenga e Ranchinho. Até falei para a minha esposa que quer ir lá, porque tinha águas quentes..... E fui também para Ouro Preto e Alto do Rio Doce. Chegamos a ir até a rádio Nacional, depois de voltar do Cassino da Pampulha.

Eu disse ao Alvarenga: agora nós temos um som de qualidade. Mas temos problema, porque o cassino em que vocês trabalham quer nos contratar, mas nós temos contrato com o circo, que não paga coisa nenhuma. Ele disse: "vocês vão me levar ao circo que falo com o dono e rompo com o contrato de vocês. Agora à noite, quando for tocar, vocês desafinam os dois violões e cantam muito ruim, o pior que vocês podem. O dono do circo vai ficar muito zangado".

O dono do circo sabia que nós éramos dos índios e tínhamos estampa boa, mas não sabia que a gente cantava. O povo aplaudia por causa da roupa indígena e da simpatia, mas o talento era muito ruim.

No dia seguinte Alvarenga foi lá e disse que queria comprar os artistas. O dono: quanto você paga? Alvarenga: nós não pagamos grande coisa porque esses artistas não valem nada. O cara disse: um conto de réis.

Estreamos no Cassino, mas tocamos muito bem, cantamos bem. Nenhum dos outros nossos irmãos gostou de música, porque demanda inteligência, determinação, insistir, insistir, repetindo, repetindo.

Aparecemos em revista. Mas o dinheiro que cobrava era muito pouco. Chegamos a ir a São Paulo e Buenos Aires, com um espanhol que se chamava José Montoja, que falou com um dos diretores da rádio El Mundo: "Jo tengo aqui dois artistas índios que são um sucesso estrondoso". Diretor de rádio gosta dessa história de sucesso estrondoso. Tinha uma artista brasileira famosa em Buenos Aires: Olga Coelho. Ela tocava violão muito bem, acompanhando a si mesma e com orquestra. "Olga, você conhece dois índios que se chamam Índios Tabajaras?". Ela: "conheço, são artistas muito bons". Era não conhecia, falou apenas para ajudar. Porque brasileiro quando está no estrangeiro corre para ajudar ao outro.

Contratou e fomos para rádio El Mundo de Buenos Aires, que era uma coisa espetacular.

Antes de chegar a Buenos Aires, o dinheiro não deu para ir de avião. Fomos até um lugar chamado Córdoba. O empresário nos levou a um clube espanhol e nos apresentamos e fizeram uma arrecadação entre os associados, porque eram gente de riqueza, o rico da cidade. O dinheiro deu para comprar passagem para Buenos Aires. Fazia frio danado e nós não tínhamos roupa. Compramos casaco de lã em Córdoba. Quando chegamos a Buenos Aires, tinha vinte fotógrafos que nos fotografaram. Fizemos sucesso incrível. Tocávamos: Tico Tico no Fubá e algumas composições minhas. O som era muito agradável. Tocamos no Teatro Maipu, na avenida Rivadávia.

De Buenos Aires corremos a América Latina inteira. Não ganhávamos muito mas sucesso era muito.

Quando chegamos no México, escutei música clássica e me apaixonei. Quando fomos ao cinema, vimos filme americano com Cornel Wilde. Conheci Chopin. E gravei "Valsa em Dó Sustenido Menor", nossa gravação mais famosa. Depois daquele filme me apaixonei e comecei a tocar de ouvido, mas imitando aquele som.

Quando chegamos no México nos anunciaram: Índios Tabajaras, completamente ignorantes de música. Quem nos anunciou foi Ricardo Montalban, que não era conhecido na época. Era no Night Club El Pateo, cujo diretor era Miranda.

Depois que escutei aquele negócio do Chopin, no outro dia sai para comprar música, comprei partitura de piano, Clemente Partitura de Piano e Compêndios de Moderna Harmonia de Rimsky-Korsakov.

Um ano no México estudando dia e noite sozinho, sem professor, e aprendi a ler música. E examinei todas as músicas de Chopin,

Quando chegamos na RCA Vitor, diziam: são os maiores do mundo do violão. Ninguém acreditava nisso. Os violonistas não dizem quem é o maior, mundo é grande demais: mas eu acho que ninguém toca aquela valsa e o "Vôo do Besouro" que nem nós. Até hoje tocam nas reprises do Eddy Sullivan, a gente vestindo de índio, e eu ainda me admiro.

Nosso repertório é de música popular de acordo com o gosto do povo. Nós somos brasileiros, mas tocamos de acordo com o gosto do povo, para vender disco, para ter dinheiro para comer, trocar roupa. Aqui nos EUA estamos rodeados de países espanhóis. Se colocar só música brasileira, não vende.

Ganhamos muitos milhões de dólares, mas nunca guardamos. Meu irmão faleceu oito anos atrás. Não era muito chegado aos sacrifícios da música. Nós temos que passar horas e horas. Música clássica leva muito tempo e, ademais, faço transcrição de piano para dois violões.

Na "Valsa em Dó Sustentido Menor" botei sexta corda grossa, tem som do piano. O mi, coloco em lá, igual à quinta corda. É uma guitarra de sete cordas, mas afinada em lá. A sexta dá som muito melhor que no piano. A última corda do piano é lá bemol, mas não tem som, não se sabe se é lá, é muito grave. No baixo sinfônico de quatro cordas, aquela nota se escuta. Mas no piano não.

O meu violão era um tom mais alto. É menor, o braço é mais curto, tem 26 trastes, que passam da boca do violão. São notas muito altas, igual ao piano e ao violino. Notas muito altas e o lá sustenido.

Todos os violonistas de Espanha daquela época, Regino De La Matta, o maior violonista espanhol, o crítico do Diário ABC de Madri, não quis ir ao concerto e não acreditava que índio pudesse tocar música clássica. Foi um sucesso. Teatro Lope de Vega, teatro elegante.

Parei por dois anos para escrever a minha história. O meu inglês é muito ruim. Parei com a biografia porque briguei com o sujeito que estava ajudando porque tomava muito dinheiro emprestado.

Outro dia fui assistir os irmãos Assad aqui em Nova York. Eles não se lembravam da minha casa de Araruama, quando eram muito jovens. O pai levou eles para tocar para mim. Quando eles foram no concerto eu lembrei. Perguntei se eles estiveram em Araruama. Eles não se lembravam.

Agora sou Nato Lima. Americano gosta de nome curto e ficou.

Os maiores violonistas: conheci na Espanha o Regino. Os grandes daquele época não são os grandes de hoje. Hoje existem melhores. No Brasil tem alguns entre os maiores: Sérgio Abreu, os irmãos Assad, Turíbio Santos, também muito bom, e Barbosa Lima, que também é muito bom. E todos estiveram em casa, porque sou muito velho e eles pensam que vou morrer no próximo ano. Mas a gente de minha família vive muitos anos.

O mundo progressou muito e a arte ficou mais exigente, os repertórios são melhores e mais bem tocados e gravados.

Outro dia recebemos disco de guitarrista inglesa Amanda Cook, e a menina é a maior, para mim, a maior do mundo. Tem apenas 21 anos de idade e tem professor que conheço muito bem, e toca como ninguém.

Gravamos cinco LPs só de música clássica. Nunca gravei sozinho. Agora é que vou gravar a primeira vez.

A Amanda Cook me mandou disco. Todos esses artistas me mandam discos. A moça tem uma técnica limpa, interpretação fantástica, não perde nunca ritmo.

Vamos à Inglaterra e vou gravar no lugar que ela gravou. Pedimos para uns amigos em Londres que conseguissem a Igreja onde ela gravou. Vai ser minha primeira gravação sozinho. A mãe de Amanda nos convidou para ficar na casa dela durante gravação. É gente rica, pai é musicólogo. É em Sussex.

Amanda está em Londres. Mãe ofereceu o quarto de Amanda. Fui gravar na Igreja Fantomas. Gravei três músicas. Não pude mais, porque igreja construída muitos anos antes da descoberta do Brasil, e fazia muito frio. Que atravessava madeira.

Quando vim para cá me deram título americano, mas disseram que não queriam tirar minha nacionalidade porque sabiam que eu iria voltar ao Brasil. Tenho terras, irmãos lá. Eles me disseram: com título americano você tem uma vantagem: se você caçar na Amazônia e se você se perder lá, nós mandamos sete helicópteros para encontrar você.

Meu plano é ir morar no Brasil dentro de 3 anos. Mas a vida aqui é tão boa, uma moleza. O dinheiro chega do estrangeiro, e eu nem sei de onde vem, 43 países me mandam dinheiro de lá, e algumas vezes, nos últimos anos, tem engrossado.

Moro em frente da sociedade que arrecada dinheiro, perto do Central Park. Tenho 45 composições registradas. Tem tanto dinheiro que fico desconfiado.

Não fiquei milionário nunca porque nunca juntei dinheiro. Algumas vezes distribuí porque era muito. Hoje ganho 3 mil, 4 mil dólares por mês e é bastante. Às vezes recebo 9, 10 mil. Meu sonho é morar no mato, mas no dia em que encontrar terra, talvez no estado de São Paulo, entre São Paulo, Campinas, Jundiaí. Quero 10 alqueires".



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