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La insignia
15 de agosto de 2004


A melhor noite das nossas vidas (II)*


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, agosto de 2004.


(Lembro de não sei onde que você está rindo. A cada aperto nos dedos que você me dá, sinto que você está rindo. Sei que você ri de mim, mas eu me sinto muito orgulhoso desse riso. Por Deus, Jussara, neste aperto de mão sinto uma alegria, um quase fogo em minhas carnes sem calor. "Você está louco", você começa a repetir, estou ouvindo agora, "você está louco", mas isso ouvi há tanto tempo, que parece vir de um tempo em que eu não havia nascido. "Você está louco" por quê? Eu posso voar e entrar com você na eternidade. Eternidade, o que é isso, Jussara? Eu sinto que posso voar, com você, nestes meus restos de braços.)

Aperte-me, Zezito. Aperte-me, agora. Vamos, eu o ajudo, aperte-me quente, longo e grande. Aperte-me, por favor, por favor, não deixe esta velhinha só, não deixe esta mulherzinha tão pequena. Eu não quero ficar chorando miudinho, num canto. Vamos. Eu não quero ficar sozinha. Aperte-me, aperte-me como naquela noite. Eu sou a sua única, eu sou a sua rapariga, vamos, diga-me como naquela noite, "você é a minha rapariga", vamos. Assim, assim. Sinto, sinto como naquela noite, naquele apartamento. Diga-me, repita-me, que eu também lhe digo, eu sou a sua eterna puta!

(Não grite, Jussara, que as enfermeiras podem ouvir. Você está ficando maluca? Este aperto dói. Louca, este aperto é agulha!)

Sente? Se está sentindo, vamos, me esbofeteie. Vamos, levante esses braços magros e me solte socos na cara. Pois não sou eu a sua puta? Assim, assim. Me fira também com esta agulha. Assim, assim, esfregue seus dedos de ossos no meu rosto, porque você me disse: "Eu te amo, Jussara, como um menino ama a sua bezerra. Como um menino adora a sua pipa. Como uma menina beija a sua boneca primeira. Como um cachorrinho puxa o peito da sua mãe. Como um faminto come o seu primeiro alimento há muito buscado. Como um alcoólatra bebe o seu primeiro copo do dia. Como um viciado cheira a sua cocaína." Disto você depois não se lembrou, mas você me disse isto. Zezito, está me ouvindo? Se está, abra os olhos. É como se entrasse um fantasma daquela noite, porque eu lhe digo, agora que você me escuta:

"As nossa bodas foram a sua mão. Aquilo foi melhor que o sexo, sim, agora lhe digo, aquilo foi bem melhor que a penetração, que foi tão suave e calma. Mas eu não a queria assim, e falo, e falo, meu Zezito, com a força do meu espírito, eu não queria o suave, queria o forte, o afirmativo, o sólido que não se acha na carne. Percebe, Zezito? Eu queria algo como um selo, de ferro, mais ardente que ferradura, mais inflamado que o fogo. Eu queria tudo: o amor verdadeiro, o azul, o sol, o laço que funde na natureza, o encanto feitiço bruxaria da vida que não mais será como antes. Eu queria o basta de sexo, fora seiva!, fora gemidos! fora gozo uterino! Eu só queria um momento de verdade. E você me deu tudo, Zezito, naquela noite. Porque você me deu a sua mão, enquanto falava, enquanto sorria bêbado, enquanto se recolhia no sexo para melhor se abrir na alma. Lembro, o seu bigode já não cheirava a rabugem, a restos de comida, a churrasco e alho do restaurante. Lembro que o seu hálito já não era de conhaque. E era, sim, mas já não tinha importância isolada, o seu cheiro, o seu conhaque eram o que eu queria comer e beber porque eles compunham o mentol do seu espírito, que se dizia no que você dizia.

(Jussara, por que tens a capacidade de despertar os mortos? Sim, eu te digo agora, neste leito em que meu corpo se consome. Jussara, por que me levantas dentre os mortos? Digo-te isto agora, porque sei, porque lembro o que naquela noite eu te disse:

- Dê-me a sua mão, minha inexprimível pequena e delicada. Dê-me a sua mão, minha santa. Dê-me a sua mão, meu fado, minha sina, meu destino. Não soluce, nem chore. Isto que eu lhe digo talvez seja uma antecipação. Pois não é assim que é a vida, um amontoado de episódios muito mal arrumados? Porque veja, minha buscada sobre todas as coisas, veja: amamos, quando não mais podemos. Somos com ânsia, quando não mais podemos ser. Conquistamos a verdade, quando já não recebemos crédito. Pregamos para ninguém, quando dizemos o que todos deveriam ouvir. Pois não é a vida uma sucessão de fotos muito mal montadas? Porque veja: por que nascemos quando somos expulsos pelo útero da nossa mãe? Não seria mais próprio o nascer quando descobríssemos que vivemos os nossos últimos dias? Por que casamos antes, bem antes que o amor arrebente em sua força madura? Sinto o meu peito ferver, com a brasa do fogo, do pensamento, do sangue, da felicidade, agora, Jussara, quando lhe digo: eu a quero como eu quereria a minha mãe se ela fosse a minha puta. Já desejei você antes como se deseja uma boceta em devoção, como se levanta e se desce dos céus e se santifica uma boceta que adoramos. Mas neste ponto, neste momento, então ainda o que desejava ainda não era Jussara. Era uma coisa destacada de você, a boceta que adoramos. Então ainda não era Jussara. Você é agora, quando me dá a sua mão. Assim, quente, como que assaltada. Traduz esta mão o espanto do nosso primeiro beijo, quando você era uma criança. Mas agora o seu espanto é maior e melhor. É o melhor dos 60 anos. Quando aperto assim esta sua mão me vem um soluço. Será o sinal da hora do condenado que está próxima? Então me dê a sua mão, para que eu me dirija à cadeira elétrica. Posso ir e irei. Você não sabe a felicidade que me dá. Você é o aperto de mão que faltou ao casal Rosemberg na última hora. E a nossa se aproxima, se não já soa agora. Dê-me a sua mão. Assim. Podemos partir. Vejo um verde grande pela frente, o profundo da floresta, o abismo do mar em volta, da altura das montanhas, a solidão do escuro do espaço além. Tenho a sua mão. Sou um menino perdido que encontra o seu elo. Vendavais não me carregam, não me arrastam. Você é um sonho que pego. A nuvem que toco. A brisa que mastigo. O fluido concreto. Eu sempre a quis como nesta noite. Mas não conseguia tê-la, porque não tinha esta sua mão, como agora. Que venha a morte. Foi bom, Jussara, o nosso amor.

Não foi assim, minha menina? )

Eu não sei se foi assim, meu menino. Eu não sei se sonho. Há um cheiro de fumo, de charuto, longe deste quarto. Há um cheiro que é uma composição, um cheiro de fumo que vem de Ellington, I let a song go out of my heart. Eu ouvia isto na infância, em 1948. No cinema, nos desenhos animados, e agora também. Em sintonia com você, também vou ao sentimento, além deste corpo. Entro nos seus parênteses, meu amor:

(Zezito, eu não sei por que olhando-o me veio essa canção de Duke Ellington. Se eu a ouvia no cinema, enquanto corria o filme na tela, como associá-la a você, em 1999? Não sei, meu anjo. Será que o câncer vem em ritmo de jazz? Então Sugar, Sugar, my baby, ó Sugar, that Sugar Baby o' mine! Sim, então corte à faca e à navalha este meu corpo. Então faça dele a sua morada, então traga também para mim o mesmo mal que destrói os músculos que amei. Hoje, estar com o câncer é estar com você. Se ele, ele, o câncer, a maldição que o arrasta, se esse maldito quer ser a sua pessoa, então que seja também a minha - quero estar nua e sem carnes entre estes seus parênteses. )

( Joana, saia por favor destas duas luas. Quero que me sobreviva. Você, viva, é sobrevida para mim. Pois o amor não é transferência da gente? )

Olhando você assim, murcho e silencioso, encolhido, cabelos ralinhos no crânio. Olhando-o assim, esquelético, quase sem pêlos. Olhando-o assim, negado em carnes, negado em forças, negado em falas. Olhando-o assim, urinado, vontade sem rumo, vontade sem vontade. Olhando-o exatamente assim, adulto como uma criança negra da fome de Biafra, olhando o respeito que se foi por sua nudez. Sem pudor, nu, olhando-o na pele grudada aos ossos. Olhando-o quando volta da radiação, faces vermelhas, só olhos brancos, gêmeos das órbitas vazias, que vagam e se fecham. Olhando-o assim, devastado, eu não sei o que me diga, Zezito, eu não sei o que lhe diga, que conforto, que mentiras lhe diga. Soluço no banheiro, gemo, e sei que não posso gemer, nem chorar. Que felicidade possuem os loucos! Se assim fosse, eu diria que o meu amor virou um pássaro, se assim fosse eu gritaria que o meu amor entrou no éter. Então eu poderia abrir os braços na sala, diante de você, e ensaiar uns passos de pássaro, e dizer-lhe, vem, Zezito, vamos voar. Vamos, a sua cabeça, o que lhe resta, ainda é você. Ou gritar numa linguagem de Franklin Street Blues, pulando e soluçando. Mas nada. Volto, de lágrimas enxuta, e por não ser louca, tomo um ar de idiota, esta minha última defesa. Sensata, estúpida e insuportavelmente sensata, no ar, na aparência, mas brutal e francamente desesperada, tento fazer um balanço. Não se é hábito, de análise, não sei. Olho o seu resto de corpo e me digo, como e quanto fui injusta com você. Quantas vezes não fui companheira, e agora, este reconhecimento nenhuma paga lhe faz. É tarde, o seu sopro de vida me diz. O remorso é só uma recuperação do mal que fizemos.


(*) Do livro "A melhor noite das nossas vidas" .



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