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5 de setembro de 2007

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Iberoamérica
Brasil

O Estado do Piauí


Otaciel de Oliveira Melo (*)
La Insignia. Brasil, setembro de 2007.

 

Transcorria o segundo semestre de 1988 e nós -eu, juntamente com o colega Almir Dalastra-, estávamos indo coletar amostras de areia de rio no Estado do Piauí (então considerado um dos mais pobres da Federação) para desenvolvermos uma pesquisa geoquímica orientativa, assim chamada porque ela pode orientar os prospectores sobre a metodologia mais adequada para identificar anomalias (teores relativamente elevados de metais que podem ser encontrados em areias fluviais), as quais sugerem a possibilidade da existência de uma possível ocorrência mineral nas suas imediações. A cidade alvo da pesquisa era Avelino Lopes, extremo sul Piauí, já na divisa com o Estado da Bahia.

Fomos inicialmente a Teresina pedir informações e mapas aos colegas geólogos da Companhia de Desenvolvimento do Piauí (Comdepi), que gentilmente cedeu um de seus técnicos para viajar conosco; daquela capital rumamos então em direção à área de interesse. Íamos sem muita pressa, até porque o veículo que utilizávamos, uma Brasília muito usada de um projeto de pesquisa já concluído pelo Departamento de Geologia da UFC, apresentava defeito na suspensão (funcionava com amortecedores usados que foram comprados por nós numa sucata em Fortaleza), o que não permitia que trafegássemos com segurança a uma velocidade superior a 70 km/hora.

Em todos os pequenos hotéis em que à noite nos hospedávamos havia sempre uma piscina de água morna que nos revigorava. E eu puxava conversa com os funcionários e hóspedes sobre a estupenda quantidade de água subterrânea que existe nas formações arenosas da Bacia do Parnaíba, que cobre quase todo o Estado do Piauí (área de 252.379 km2), na superfície da qual trafegávamos. E eles nos falavam euforicamente do vale do Gurguéia, ou melhor, do vale do rio Gurguéia, rio perene, com bacia hidrográfica de 58.000 km2, situado na região sul do Estado e afluente do rio Parnaíba. O vale do Gurguéia tinha alguns poços artesianos (a água jorra sob pressão; é só furar) com vazões superiores a 300 mil litros de água por hora e um poço particular, o Violeta, com profundidade de 980 m, apresentava uma vazão de um milhão de litros por hora, com o jorro atingindo uma altura em torno de 50 m, um espetáculo à parte. A maioria dessas águas voltava a se infiltrar nos sedimentos porosos e permeáveis da citada bacia, sem nenhum aproveitamento racional (o poço Violeta encontra-se hoje tamponado), até que os japoneses, encantados com a fertilidade daquela bacia hidrográfica, começaram a produzir melão para o mercado externo.

Diante de um potencial hídrico subterrâneo tão formidável, eu perguntava às pessoas o que estava faltando para transformar o Piauí num verdadeiro celeiro de produtos agrícolas. Conversei com um agrônomo, que me explicou que os solos desenvolvidos sobre as formações arenosas são muito ácidos, mas que este problema poderia ser resolvido misturando-se uma tonelada de calcário (carbonato de cálcio) pulverizado a um hectare dos solos desenvolvidos sobre as rochas sedimentares da Bacia do Parnaíba, o que os tornaria suficientemente férteis para o plantio de diversas culturas, por até três colheitas consecutivas. Concluímos que este calcário poderia vir das enormes reservas existentes no vizinho Estado do Ceará e, em menor volume, do próprio Estado do Piauí (do Município de Pio IX, por exemplo). E de onde viria a energia necessária para obtenção da água dos poços não artesianos e para a irrigação? Ah, esta viria da usina hidrelétrica de Boa Esperança, construída no Rio Parnaíba e inaugurada em 1969. Uma outra informação, posteriormente confirmada, apontava o Município de Picos como o maior produtor de produtos agrícolas do Estado, quando o Vale do Gurguéia ainda se constituía numa promessa para o futuro.

Quando passamos pela cidade de Floriano fomos informados de que muitos piauienses gostariam que o nome Piauí fosse grafado à maneira antiga. No casco achatado de um navio salineiro recém adquirido pelo governo do Estado, temporariamente encalhado num banco de areia do Rio Parnaíba, lia-se Piauhy (isso mesmo, com agá e ípsilon no final).

Nesta viagem, os contrastes geravam sempre perplexidade. Constatamos, por exemplo, que à medida que nos aproximávamos de Avelino Lopes, a cidade alvo da nossa pesquisa, as crianças da região mostravam-se mais coradas e relativamente saudáveis (comparadas às crianças de outros Estados nordestinos), o que nos deixava ao mesmo tempo surpresos e intrigados. Depois de alguma reflexão, concluímos que a boa qualidade da água subterrânea afugentava a verminose e que uma variada agricultura de subsistência, em alguns municípios, alimentava melhor a gurizada.

Pois bem. Dezenove anos se passaram depois daquela memorável viagem e nesse espaço de tempo a região abrangendo o vale do Gurguéia ampliou e diversificou a sua produção agrícola e hoje, no cerrado em torno do vale, a soja é a cultura da vez. Novos municípios foram criados e no de Alvorada do Gurguéia (fundado em 1994) plantam-se hoje arroz, cana-de-açúcar, feijão, mandioca, milho e, claro, soja.

Recentemente o Piauí voltou a ser notícia depois que o presidente da toda poderosa Philips do Brasil, Sr. Paulo Zottolo, militante do movimento cívico de objetivos nebulosos denominado "Cansei", disse que "se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado". Por outro lado, leio no editorial do jornal O Povo (CE), do dia 19 de agosto passado a informação de que já existe um movimento separatista (à frente políticos e empresários) para que a região do Vale do Gurguéia seja emancipada como Estado. Quer dizer, em vez de procurar integrar o restante do Piauí a sua parte mais desenvolvida, os senhores da riqueza querem segregar a porção mais pobre que provavelmente se tornará paupérrima. Esta separação, se concretizada, se constituirá, na minha opinião, num ato de extrema falta de sensibilidade e de covardia.


(*) Professor do Departamento de Geologia da UFC.

 

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