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20 de novembro de 2007

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Cultura
Espanha-Brasil

O dia em que conheci Graça Kelly


Carla Guimarães (*)
La Insignia. Espanha, novembro de 2007.

 

Graça chegou a Espanha sonhando que um dia viraria uma princesa de verdade, mas cada dia perdido no cortiço onde se prostituía no bairro de Atocha era como um balde de realidade fria.

Graça nasceu homem, em um bairro pobre de Campina Grande, na Paraíba, mas desde muito pequena soube que era uma mulher. Uma descoberta que lhe trouxe uma série de problemas. Eu imagino que a palavra transexual não estava em nenhum dicionário da sua vizinhança em Campina Grande, por isso a transformação de Graça foi lenta, dura e difícil. Quando Viviana apareceu na sua vida dizendo que tinha uma boate em Madri onde travestis e transexuais faziam shows, Graça não duvidou nem um minuto e aceitou o convite para trabalhar na Europa, ou em qualquer outro lugar, mesmo que fosse bem longe. Ao chegar à capital da Espanha descobriu que os shows seriam privados, com clientes de todas as classes, que tinha uma dívida de sete mil euros com sua chefa pela passagem aérea e estadia e que, se não trabalhasse, levaria uma baita surra do marido de Viviana.

Graça não podia sair se não fosse acompanhada por uma das meninas da casa, uma das antigas. Não ganhava nenhum euro, pois tudo o que fazia com os clientes era supostamente computado para reduzir sua dívida. Uma dívida que, inexplicavelmente, ao invés de reduzir, cada vez aumentava mais. Graça completou vinte anos enfurnada no cortiço, e teve direito a uma chamada ao Brasil, à sua mãe. Viviana esteve do seu lado durante todo o tempo, ameaçando desligar o telefone caso Graça falasse mais do que devia.

Muito diferente do que se pode imaginar, Graça não é um travesti barbudo, mas sim uma mulher. E nada nela me faz pensar, em um primeiro momento, que Graça algum dia foi um homem. Eu a conheci no dia 15 de novembro, na sede do Programa de Atenção e Informação a Homossexuais e Transexuais da Prefeitura de Madri. O simples fato de ter um programa destas características com direito a um escritório em plena Gran Vía, com funcionários que eram gays, lésbicas e transexuais dedicados unicamente a este coletivo me pareceu incrível, digno de menção e de admiração. Passei muitos anos colaborando com uma ONG dedicada à imigração na Espanha e fui chamada para ser intérprete de Graça, que além de não falar nem uma palavra em espanhol, estava assustada e com muito medo. Escutar uma voz que lhe fala calmamente no seu idioma, nesses momentos, ajuda muito. É como viajar de volta a casa em dois segundos. Assim descobri como Graça foi parar ali.

A mando de Viviana e acompanhada de uma das meninas da casa, Graça foi pegar camisinhas que outra ONG distribuía gratuitamente para as prostitutas da sua zona. Os trabalhadores sociais que atenderam a Graça notaram que algo estranho estava passando e começaram a desconfiar que ela era mais uma vítima das mafias internacionais de tráfico de brancas. Eles conseguiram afastar a acompanhante e falar com Graça a sós. Assim descobriram sua história e entregaram a Graça, dissimuladamente, o endereço do programa de atenção a transexuais. Neste mesmo dia, ao voltar ao cortiço, Graça levou uma surra daquelas por ter falado sozinha com estranhos e, duas horas mais tarde, ainda ferida, ela meteu numa bolsinha todos os seus bens mais queridos, incluindo dois DVDs de Harry Potter e um botom do Real Madrid, e aproveitando um descuido da chefa, fugiu da casa.

Duas horas mais tarde, Graça estava ao meu lado contando, entre soluços e choros, toda sua história. Ela tinha medo de denunciar, pois Viviana prometeu “escangalhar” sua família no Brasil caso Graça abrisse a boca. Ela também ameaçava Graça com feitiços de macumba e acertos de conta com qualquer pessoa que a ajudasse. O pessoal do programa de atenção a transexuais explicou que a única maneira de conseguir sair do cortiço protegida e ter papéis de trabalho na Espanha seria denunciar. A partir da denúncia, eles fariam um cartão de saúde para Graça, que já poderia ser atendida na segurança social espanhola e, com o cartão, ela poderia inclusive solicitar as cirurgias necessárias para a mudança de sexo. Na Espanha, estas cirurgias são um direito do transexual. Graça teria assistência psicológica, seria uma testemunha protegida pela polícia e se mudaria para uma residência onde muitas outras mulheres, protegidas por diferentes motivos, convivem até encontrar um trabalho e poder se auto-sustentar. Claro, tudo isso seria um processo longo e cansativo, mas absolutamente possível. Ao mesmo tempo, e segundo o pessoal do programa, a polícia brasileira também seria ativada para proteger sua família em Campina Grande. Isso sim, com respeito à macumba, o estado espanhol não poderia fazer nada e eu, secretamente, entreguei a Graça um colar de Iansã, como alternativa de proteção espiritual.

Nesta mesma noite, pouco tempo depois de finalizar o depoimento, Viviana invadiu o escritório para recuperar sua mercadoria, dizendo que tudo era uma grande mentira, que Graça lhe devia muito dinheiro e não queria pagar. Viviana é também transexual, brasileira e paraibana. Junto com seu marido espanhol, Manolo, ela controla mais de cinco transexuais e travestis trazidas do Brasil nas mesmas condições. Algumas, as mais antigas, tinham direito a receber algum dinheiro e, por isso, ajudavam a controlar as mais novas. Os funcionários chamaram a polícia imediatamente e Viviana não foi presa neste mesmo dia por questão de minutos. Seu golpe de efeito fez Graça tremer de medo e, seguramente, esta era sua intenção. Mas a chegada da polícia e a maneira como os funcionários lidaram com Viviana, fizeram Graça perceber que estava cercada de pessoas que realmente iriam ajudá-la.

Graça, apesar de não ter nenhum euro na carteira, tinha uma página no orkut, um messenger e até um blog, repleto de fotografias onde ela pousava vestida como Grace Kelly, sua ídola e razão pela qual Graça acreditava fervorosamente nos contos de fadas. Uma mulher comum que vira atriz famosa e que, um dia, transforma-se em princesa... Era tudo o que Graça queria ser. No Brasil, ela trabalhava como babá e confessou que adoraria poder trabalhar na Espanha cuidando de crianças, até mesmo numa creche.

Eu me despeço e desejo boa sorte a Graça no dia seguinte e ela me dá de presente um CD com várias fotos suas vestida como Grace. Com a colaboração de todos os funcionários, foi possível organizar uma maletinha com material de higiene, roupas e até produtos de beleza para Graça que, em pleno inverno, vestia um casaco jeans, sandálias de plástico e um vestido de chita.

Neste dia eu desci a Gran Vía pensativa, com uma pena imensa dos muitos imigrantes que vinham à Europa para realizar sonhos impossíveis. E de muitos brasileiros que desejam deixar o país, mas que não têm idéia da complicada e dura vida de um imigrante, seja ele quem for, independente de onde venha. E apesar de saber que agora Graça poderia realmente tentar uma vida melhor, fiquei com um sabor amargo na boca ao deixá-la para trás. Talvez porque, falando especificamente deste caso e sem querer generalizar, eu tenha percebido que uma pessoa como ela, de origem humilde e com uma situação de vida tão complicada, tenha mais direitos como uma ilegal na Espanha que como cidadã no Brasil. E isso sim é digno de pena.


(*) Carla Guimarães, dramaturga e roteirista brasileira, reside em Madri.

 

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