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7 de agosto de 2007

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Iberoamérica
Brasil

A memória suja do Itamaraty


Mário Maestri (*)
La Insignia, agosto de 2007.

 

A submissão canina do Itamaraty ao regime militar foi prática de conhecimento geral dos brasileiros que viveram no exterior, como refugiados ou não, durante a ditadura. Naqueles anos, sobretudo os exilados fugiam dos diplomatas nacionais como o diabo da cruz. As recentes investigações do jornalista Claudio Dantas Sequeira, publicadas no Correio Braziliense no passado mês de julho, acabam de desvelar aspectos gravíssimos das prestações policialescas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Furungando nos documentos do Itamaraty, Sequeira desvelou a existência de atuante Centro de Informações do Exterior [Ciex], formado por diplomatas que, de 1966 a 1985, trabalharam como sabujos da ditadura, contribuindo para a prisão, tortura e morte de cidadãos nacionais. As investigações do jornalista registram que os diplomatas dedos-duros foram recompensados profissionalmente durante a ditadura e, após seu fim, protegidos pelos dirigentes da instituição e pela inimputabilidade ainda garantida aos criminosos do Estado militar.

Os valiosos artigos de Sequeira não discutem as raízes de tão fácil e profunda disfunção policial do Itamaraty. O Ministério de Relações Exteriores constitui órgão elitista, com consolidados interesses corporativistas. Ele foi e continua sendo espécie de corpo aristocrático a serviço de república elitista. Quem viveu no exterior, antes ou após a ditadura, certamente conheceu a displicência dos serviços diplomáticos nacionais com o trabalhador ou estudante comum no exterior.

A dimensão dos serviços prestados e o sigilo em que foram mantidos nos últimos 22 anos registram que o Ciex não foi produto da ação de alguns poucos diplomatas direitistas ou oportunistas. O amplo desvio do Itamaraty de suas funções constitucionais só foi possível devido ao envolvimento da instituição como um todo, pela ação ou pela inação. Não se registra entre os pupilos do barão de Rio Branco um diplomata como o português Aristides de Sousa Mendes que, em pleno salazarismo, serviu-se destemidamente de sua posição funcional para proteger perseguidos e humilhados.

O apoio institucional do Itamaraty à repressão militar apoiou-se certamente na sua dissidência visceral com o projeto de democratização político-social do país proposto pela oposição à ditadura militar. No decurso das atuais discussões sobre a ação do Ciex, terminou registrando-se que a vigilância aos brasileiros tidos como subversivos pelo serviço diplomático brasileiro existia já em forma embrionária muito anos antes do golpe militar de 1964, em pleno regime constitucional.

A colaboração do Itamaraty com a ditadura parece ter superado o ocorrido com os corpos diplomáticos de outras nações latino-americanas. Desde os primeiros momentos do golpe militar de 11 de setembro de 1973, os golpistas chilenos empreenderam verdadeira caçada aos milhares de latino-americanos que o governo Salvador Allende recebera e abrigara de braços abertos. Ação que, sob inspiração estadunidense, objetivava liquidar fisicamente boa parte da militância do continente. Foi tamanha a sanha xenófoba que os próprios diplomatas de países do nosso continente com governos ditatoriais abriram as portas das embaixadas para salvar seus opositores perseguidos como cães. Diplomatas uruguaios acolheram militantes tupamaros refugiados no Chile, escoados a seguir para outras embaixadas.

Houve apenas uma e só uma legação diplomática latino-americana que manteve as portas insensivelmente cerradas aos nacionais acuados: a brasileira. Ação com o resultado previsível: centenas de nacionais, turistas, refugiados e familiares de refugiados, foram presos, agredidos, torturados. Diversos brasileiros como o professor universitário Vânio José de Mattos e o engenheiro Túlio Quintiliano foram executados por não terem conseguido refúgio. Tudo isso era sabido, ainda que pouco difundido. O não sabido e revelado pelo jornalismo Sequeira é que a perseguição, tortura e execução de brasileiros por militares chilenos foram em boa parte teleguiadas por diplomatas nacionais em serviço no Chile.

Corroborando com o ocultamento desses fatos e de seus responsáveis, o Ministério de Relações Exteriores do governo Lula da Silva faz agora ouvidos moucos às exigências, sobretudo de órgãos envolvidos na elucidação de desaparecimentos e assassinatos de resistentes à ditadura, de que a documentação reservada do Ciex seja posto em disponibilidade para a consulta.

 

(*) Mário Maestri, 59, é historiador e professor do Programa de Pós-Gradução em História da UPF. Viveu no Chile e na Bélgica como refugiado, de 1971 a 1977. E-mail: maestri@via-rs.net
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