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7 de agosto de 2007

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Iberoamérica
Brasil

Vida vale pouco neste grande país


Lúcio Flávio Pinto (*)
Gramsci e o Brasil / La Insignia, agosto de 2007.

 

O Brasil acumula resultados econômicos excepcionais. Por qualquer critério quantitativo, o país fatura como nunca. É, portanto, a temporada da cigarra. Mas, quando a China assumir as rédeas do seu explosivo crescimento e os Estados Unidos se derem conta do seu desequilíbrio estrutural, poderá começar um período de escassez. Se apenas a cigarra ocupar o palco nacional, não haverá lugar para a formiga. Quem conhece a fábula sabe o que acontecerá: choraremos a excepcional oportunidade que o apogeu em alguns setores da economia internacional nos proporcionou. E que desperdiçamos.

Com muito dinheiro em caixa, o país está gastando em consumo supérfluo ou de bens duráveis, e aplicando em áreas de retorno imediato, como a imobiliária, que exibe afluência sem paralelo, como se tivessem retornado, incrementados, os tempos do milagre econômico do regime militar, com Gomes de Almeida Fernandes & Adolfo Lindenberg. Mas isso significa construir castelos de areia, estruturas bonitas, mas de pouca durabilidade. Desmoronarão se forem alcançadas pelas águas.

Dois exemplos de alerta em relação a essa situação perigosa. Enquanto a área plantada diminui no Brasil, com algumas reduções em grande escala, como a do trigo, que caiu pela metade, os campos de soja se expandem sem porteiras. O preço caiu um pouco, o câmbio não é tão favorecedor, mas todos ganharão ? e mais do que em safras anteriores ? em razão do volume comercializado.

Essa mais do que compensação, em função do volume físico, responde pela sensação que se tem de que o comércio exterior do país se tornou uma hemorragia de riqueza: para ganhar mais, vende-se a rodo, sem cautelas, até sem pudor. E surge o dinheiro, que circula intensamente em circuito fechado, produzindo nababos que compram imóveis às dezenas e gastam como sultões. Sobra dinheiro para ser distribuído pela massa, claro. Mas é troco. A concentração da riqueza é a base precária do grande edifício do enriquecimento nacional da plutocracia, paquidérmica, como se habitasse o primeiro mundo.

O troco da distribuição de renda impressiona porque, antes, os ricos (ainda muito restritos, sem a amplitude de hoje, dos bilionários de classe mundial) nem gorjeta estavam dando. Mas agora se impõem esse cuidado porque precisam sustentar um presidente com forte empatia popular, competente para manobrar o circo (incluindo um picadeiro que funciona com o pão da sobrevivência, na forma dos programas de assistência), enquanto serve à brutal concentração da renda.

Essa indigna apropriação de riqueza só arrefeceu porque a base da classe média continua a ser expropriada (e aí está a razão última das vaias a Lula no Pan do Rio de Janeiro, um campo fértil a qualquer semeadura oportunista de desagrado, como parece ter acontecido). Dela sai o capital que, combinado aos minguados fundos públicos, subvenciona a esmola aos deserdados do sistema, clientela das manipulações políticas e mercadológicas engendradas do alto do poder.

O esquema é eficaz, mas é perigoso. Funciona com alta combustão, sujeito a riscos de explosão. O maior acidente aéreo da história do Brasil e do continente, batendo um outro recorde nacional, que só durou 10 meses, o do acidente da Gol no Mato Grosso, é uma vitrine da tensão desse jogo. Suas causas são múltiplas. Mesmo que sua ponderação ainda dependa das investigações ? em curso ou a iniciar ? não há mais dúvida que elas resultaram de uma confluência de perversões e distorções do atual modo de enriquecer do Brasil.

A companhia aérea não retirou de imediato de circulação o avião com problemas operacionais porque precisa de toda a frota, em regime de tempo integral, para dar conta da demanda, que cresceu nos últimos três anos a uma taxa maior do que a da economia da China como um todo, e para engordar o lucro. Pessoas e máquinas de voar estão sendo submetidas a esforço máximo. Pode ser que a pressão esteja em limites aceitáveis ou toleráveis, conforme os manuais e as tabelas deduzidas pelo fabricante das máquinas ou pela constituição física das pessoas. Mas máquinas e pessoas trabalham no ?limite da irresponsabilidade?, para usar uma antológica ? e, como de regra, infeliz ? fraseologia do poder, sob o consulado de FHC. A margem para o erro é mínima, ou simplesmente inexistente.

Se a imobilização de um dos dois reversos da turbina do Airbus A320 da TAM influiu no acidente por causa da velocidade excessiva do avião, se a velocidade foi também função do peso do aparelho (não abusivo, mas ?no limite?), se eventual imperícia do comandante (ou do seu co-piloto, ainda em adestramento) se fez presente, se a chuva influiu sobre a condição da pista, se tudo isso e mais muita coisa ocorreu ? ou não ? estes e outros elementos ainda a incorporar só poderão ser confirmados numa apreciação mais ampla e profunda. Com o tempo, que, no Brasil, costuma ser não a matriz da razão, mas o cúmplice da omissão.

A crise do transporte aéreo no Brasil existe porque a demanda de passageiros e cargas aumentou muito, a resposta das empresas não cresceu na mesma proporção e o investimento público veio a reboque ? e, além de insuficiente, não foi aplicado adequadamente. O investimento na segurança da problemática pista principal de Congonhas, o mais movimentado aeroporto do país e da América do Sul, foi de menos de 10% do que foi gasto na estação de passageiros. A distorção, porém, não está apenas nessa desproporção, considerando-se a desigualdade de necessidades físicas: está, principalmente, na liberação da pista antes da obra estar concluída.

Desapareceu o empoçamento de água no centro da pista, que antes era seu principal problema. Mas com o nivelamento a água se espalhou por toda superfície. A imperfeição seria suprida pelas ranhuras, que drenariam a água e aumentariam a rugosidade da pista, ajudando na frenagem dos aviões. Antes dessa complementação, porém, a pista foi liberada para uso, sem esperar que o concreto ?curasse? para ser escarificado e permitir maior aderência. A necessidade de faturar falou mais alto.

Os administradores de Congonhas se defenderam dizendo que, depois das reclamações dos pilotos, passaram a verificar a lâmina d?água na pista. Em todas as verificações, a camada de água também estava dentro de parâmetros aceitáveis, mesmo que essa fosse a causa da derrapagem de um avião de menor porte na véspera do terrível acidente. A tal normalidade de água, entretanto, suportava apenas a normalidade de operação dos aviões. Numa situação de anormalidade, como a da aterrissagem do Airbus da TAM, o acúmulo de água e a falta das ranhuras contribuíram para o acidente, se não na sua origem, certamente na sua finalização.

Mas ainda havia outro fator importante: a curta extensão da pista, que tem pouco menos de dois mil metros (500 metros a mais do que a pista auxiliar, a única que permaneceu em operação depois do acidente, e mil metros a menos do que o Galeão, favorecido pelo horizonte mais limpo da baía da Guanabara). O aeroporto de Heathrow, que corresponde em Londres ao que Congonhas é para São Paulo, tem pista com quatro quilômetros de comprimento. Em pista assim, o piloto tem maior margem de manobra na eventualidade de um erro, de um acidente ou de qualquer imprevisto. E dispõe ainda de área de escape, que Congonhas não tem.

No Brasil, esse direito é subordinado ao rendimento da empresa ou à omissão (e incúria) do poder público. Um país que sempre age como cigarra não pode usufruir as conquistas do sacrifício de uma formiga. Investe no conforto e esquece a segurança. O grau de irresponsabilidade escala a montanha da riqueza. O resultado é esse desrespeito e essa selvageria, que só provocam comoção geral quando emergem de uma tragédia como essa de Congonhas. A tragédia anterior, do avião da Gol, em Mato Grosso, não foi suficiente.

Quando morei em São Paulo, entre 1969 e 1974, tínhamos como certo que o aeroporto de Congonhas fecharia ou só seria usado, em horários decentes, por aviões de pequeno porte. Como ?Santos Dumont?, Congonhas tinha uma arquitetura de construção civilizada (como o estádio do Pacaembu), com largos espaços, classificados como perdidos pelos caixas do lucro sem limites, que lhe davam charme e encanto.

Graças a esses desvãos lúdicos, podia-se ler, engraxar sapato, comer, conversar, namorar. O máximo de irresponsabilidade nessa época era o baile carnavalesco do Arakan, no mezanino, com as instalações aeroportuárias fechadas, até alta madrugada, para a esbórnia geral não ter testemunhas.

Fiquei muitos anos sem pousar em Congonhas. Vindo de longe, ia sempre para o buraco de Guarulhos (porque a pista fica numa depressão, encaixada entre serras). Quando voltei a Congonhas, tomei um susto e fiquei chocado: aquele movimento todo era a consagração da irracionalidade e da irrisão. Induzia um perigoso jogo, manipulado pelos donos do tabuleiro. O problema é que as peças eram humanas, as mais valiosas que existem neste nosso planeta. Num país que quer tirar vantagem de tudo e prefere o improviso de desperdício da cigarra, vidas humanas não valem tanto nesta parte da Terra, grande e irresponsável.

Depois de um novo sacrifício brutal, otimistas incuráveis, ficamos a achar que, desta vez, finalmente, o país tomará jeito. Tomará mesmo? Por quanto tempo?

 

(*) Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).
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