Portada Directorio Buscador Álbum Redacción Correo
La insignia
20 de março de 2004


Nise da Silveira: Rebelde com causa


Maria Eduarda Mattar
Rits. Brasil, março de 2005.


"...Egas Moniz, que ganhou o prêmio Nobel, tinha inventando a lobotomia. Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de cardiazol. Fui trabalhar numa enfermaria com um médico inteligente, mas que estava adaptado àquelas inovações. Então me disse: 'A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque.' Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele mandou levar aquele paciente para a enfermeira e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse: 'Aperte o botão.' E eu respondi: 'Não aperto.' Aí começou a rebelde."*

E foi quando não apertou o botão do eletrochoque que Nise da Silveira começou - com sua rebeldia - uma revolução. Mudou de forma definitiva o tratamento psiquiátrico que se fazia no Brasil da década de 40 - e influenciou a psiquiatria do país até os dias de hoje.

Fez da até então secundária e subalterna terapia ocupacional vedete. Apostava que as atividades artísticas não eram simplesmente passatempo, mas tratamento de fato. Acabaram sendo a sua ferramenta para conhecer, estudar e tratar os, usando expressão de que ela gostava, "inumeráveis estados do ser".

Era rígida em alguns pontos do trabalho que desempenhava: primeiro, o tratamento das pessoas com doença mental precisava ser feito com carinho, entendendo o paciente como um ser humano - com suas sensibilidades, fraquezas, necessidades - e tratando dele com o respeito necessário. Quem estivesse por perto tinha que usar do mesmo afeto para cuidar dos doentes mentais - ou virava desafeto.

Segundo ela, terapia ocupacional não podia ser entendida como mera ocupação. Mais do que pinturas, desenhos ou arte, enxergava naqueles trabalhos testemunhos e expressões que possibilitariam o conhecimento mais profundo do universo das pessoas esquizofrênicas. Essas manifestações, as obras resultantes, permitiam penetrar no mundo interno daquelas pessoas - por isso não podiam ser vendidas ou desagregadas. Dinheiro nenhum pagava aquelas expressões e a análise que elas permitiam das angústias humanas.

Fundou duas instituições que refletiam o pioneirismo de sua metodologia e de suas convicções: o Museu de Imagens do Inconsciente e a Casa das Palmeiras. Tão revolucionárias quanto Nise, as entidades ainda hoje são referência no tratamento psiquiátrico brasileiro.

De Alagoas à prisão

Nascida em Maceió, Nise da Silveira deixou Alagoas para estudar medicina na Bahia. Foi a única mulher numa turma de 157 rapazes. A formatura foi em 1926 e, já no ano seguinte, Nise rumou para o Rio de Janeiro a fim de procurar trabalho. No entanto foi só em 1933, quando passou em um concurso público, que sua vida profissional se cruzou com a psiquiatria para não mais se dissociarem.

Presa em 1936, acusada de comunista, Nise conheceu a privação de liberdade. A experiência teria no futuro influência determinante na condução de suas técnicas de tratamento, que evitavam ao máximo o enclausuramento das pessoas com transtornos mentais. Exemplo disso é a sua iniciativa de criação, anos mais tarde, de uma instituição diferente dos hospitais da época, com uma proposta de não internar os pacientes, mas tratá-los com liberdade de entrar e sair, em regime aberto. Assim nasceria mais à frente a Casa das Palmeiras.

Depois de libertada, mas diante da ameaça de ser presa novamente, viajou por alguns estados do Nordeste. Voltou ao serviço público em 1944, indo trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional (CPN), no bairro carioca do Engenho de Dentro. Foi nessa volta que protagonizou a cena descrita na abertura desta reportagem. Por causa de sua discordância com as técnicas então usadas e celebradas - eletrochoque, choque de insulina, de cardiazol e lobotomia, entre outros -, foi trabalhar no único setor do hospital onde não tinha que lidar com esses métodos: o de terapia ocupacional.

Até então, esse tipo de terapia consistia praticamente em apenas usar os pacientes dos hospitais psiquiátricos como serviçais. "Os doentes eram usados para varrer, limpar vasos sanitários, servir outros doentes", recorda ela em entrevista concedida ao escritor Ferreira Gullar e presente no livro "Nise da Silveira"*, obra biográfica sobre a médica.

"A terapia ocupacional daquela época era uma economia para os hospitais, pois tinham mão-de-obra grátis", resume o psiquiatra Agilberto Calaça, um dos discípulos da dra. Nise, tendo convivido com ela por 16 anos e trabalhado na Casa das Palmeiras por dez - cinco dos quais como diretor-técnico.

Jung e animais

Discípulos, aliás, não lhe faltam: desde os que seguem suas técnicas de tratamento psiquiátrico até aqueles que lhe seguiam nos estudos do suíço Carl Gustav Jung. Ainda jovem, Nise da Silveira encantou-se com a psicologia junguiana e passou a aplicá-la em seu trabalho. Fundou um grupo de estudos sobre Jung e escreveu um livro-roteiro para o estudo de sua obra. Chegou a trocar correspondências com ele e a encontrá-lo pessoalmente durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique, Suíça, em 1957. Realizou ainda, em ocasiões distintas, estudos no Instituto C. G. Jung, localizado na mesma cidade.

Além da obra do psiquiatra suíço, outra de suas paixões era o convívio com animais. Nas instituições em que trabalhava, bichos eram uma constante. Não só porque ela gostava, mas porque eram auxiliares no tratamento de doentes mentais. Chamava-os de co-terapeutas. Além disso, confiava nos instintos dos animais.

"No grupo de estudos sobre Jung podia entrar qualquer pessoa, a porta estava sempre aberta. Sempre havia uma porção de gatos. E, para a dra. Nise, eles eram um termômetro para saber sobre o caráter da pessoa: se os gatos não gostassem do indivíduo, ela desconfiava do bom caráter daquela pessoa", relembra a psicóloga Gladys Schincariol, que participava do grupo de estudos e hoje é coordenadora de Projetos do Museu de Imagens do Inconsciente.

A psiquiatra chega a relatar, no livro de Ferreira Gullar, o caso de um paciente que se curou somente porque recebeu a responsabilidade de cuidar de uma cadela encontrada no terreno do CPN, onde trabalhava desde que havia sido readmitida no serviço público - e onde continuou trabalhando durante toda a vida.

Obras de arte e "clientes": os legados do Museu de Imagens
do Inconsciente e da Casa das Palmeiras

Foi justamente dentro do CPN que Nise da Silveira fundou uma das duas instituições que mais marcam a sua carreira: o Museu de Imagens do Inconsciente, criado a partir das obras produzidas pelos esquizofrênicos que participavam da Seção de Terapêutica Ocupacional, que ela coordenava. A fundação do Museu aconteceu em 1952, de forma inusitada.

Trabalhava no CPN um funcionário que fazia aulas de pintura, Almir Mavignier, que se surpreendeu com os trabalhos produzidos pelos pacientes da Seção de Terapêutica Ocupacional. Ele chamou, para conhecer o trabalho, o crítico de arte Mario Pedrosa, que teve a mesma surpresa e, por sua vez, levou à Seção o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o francês Leon Degand - que também ficou admirado com o que encontrou. O resultado dessa admiração em cadeia foi uma exposição dos trabalhos produzidos pelos pacientes da dra. Nise no Museu de Arte Moderna de São Paulo, para a qual a médica escreveu a apresentação.

Três anos depois, os esquizofrênicos do CPN ganhavam seu próprio museu, inaugurado dentro das dependências do hospital. E é onde permanece até hoje, tendo em seu acervo cerca de 350 mil obras - entre pinturas desenhos, modelagens e xilogravuras. Somente um dos artistas, Fernando Diniz, tem na sua coleção 28 mil obras. "As coleções foram se formando ao longo dos anos e são fruto dos principais estudos da dra. Nise. Em 2002, as principais foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)", conta Gladys, que se diz honrada por ter convivido com Nise da Silveira e se autodenomina uma "niseriana".

A diretora de Projetos da instituição lembra ainda que a instituição é, na verdade, um "museu vivo", pois nos dias de hoje ainda há pessoas usando a criatividade para exprimir suas emoções, criando obras artísticas. Como a clientela é flutuante, não há dados precisos sobre quantas pessoas ajudam hoje na pulsação desse "museu vivo". "Vocês jornalistas, como dizia a dra. Nise, são muito quantitativos", brinca ela, acrescentando em seguida que a estimativa é de que os ateliês do Museu recebam de 20 a 25 pessoas por dia.

A Casa das Palmeiras, por sua vez, pode ser freqüentada por 40 a 45 clientes diariamente. A palavra "clientes", aliás, começou a ser usada por Nise da Silveira - e hoje é utilizada pela maioria de seus discípulos e nas instituições que criou - para se referir aos freqüentadores da Casa. Mudando a linguagem, pretendia mudar também a forma como as pessoas com transtornos mentais eram tratadas.

E foi o que conseguiu. Fundada em 1956, a Casa das Palmeiras funcionava em um prédio emprestado. Seu nome era uma alusão às palmeiras que existiam no terreno, situado na Tijuca, Rio de Janeiro. Depois de ter passado por um segundo endereço, a partir de 1980 a Casa das Palmeiras começou a funcionar no bairro de Botafogo, onde permanece até hoje.

A motivação da dra. Nise para fundar a Casa foi a percepção da grande quantidade de reinternações em hospitais psiquiátricos. De cada 25 internados, 17 eram reingressos. Sua intenção foi oferecer um local de tratamento diferenciado às pessoas que tinham alta.

"Um destes possíveis erros (entre outros) estaria na saída do hospital, sem nenhum preparo adequado do indivíduo, quando apenas cessavam os sintomas mais impressionantes do surto psicótico. Não era tomado em consideração que a vivência da experiência psicótica abala as próprias bases da vida psíquica. Durante vários anos pensei quanto seria útil um setor do hospital e a vida na sociedade", escreve a psiquiatra.

Na Casa das Palmeiras, médicos participam das atividades expressivas junto com os pacientes, que recebem orientação quando necessário. Todos fazem as refeições em conjunto, sem discriminação de lugares especiais. A instituição foi pioneira no Brasil nesta forma de tratamento em regime aberto, tal qual como apenas recentemente passou a ser implementado, com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). "A instituição tinha claramente a intenção de oferecer um atendimento mais humano", avalia Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), especialista em saúde mental e um dos precursores da reforma psiquiátrica no Brasil.

Os inumeráveis estados de Nise

Foi com esses princípios, concretizados na Casa das Palmeiras, de relacionamento entre as pessoas com doença mental e aquelas ditas normais que Nise trabalhou sua vida inteira. As pessoas que conviveram com ela são unânimes em afirmar: ela direcionava uma carga maior de afeto às minorias, aos que tinham alguma deficiência ou doença. "Era bem mais tolerante com as pessoas com problemas, com os sofridos - e com os animais", recorda Gladys. Calaça tem opinião muito parecida: "Era generosa com os animais e os deserdados da sorte", diz o psiquiatra. Amarante completa o pensamento: "Ela se dedicava a lutar pelas pessoas que não poderiam lutar sozinhas".

As lembranças de uma pessoa generosa, que fez da afetividade no tratamento psiquiátrico uma doutrina, confundem-se com relatos de uma médica firme e rígida. "Chegava a ser intransigente com a recusa a vender os quadros pintados pelos seus clientes e chegou a criticar alguns pontos da reforma psiquiátrica que se defendia no início da década de 80. Mais tarde conheceu e entendeu melhor a proposta", relembra Amarante, que conviveu com a médica de 1976 a 1986, no CPN. "Se fossem vendidas pinturas, esculturas e outros objetos, não existiria museu algum. Dá pra entender? Seriam dispersadas as formas reveladoras do interior da psique, isto é, o material que verdadeiramente interessa à psiquiatria"*, justifica ela, em depoimento a Ferreira Gullar. "Carismática, mas com personalidade forte", define Amarante.

"Ela era dura e doce ao mesmo tempo. Bastante dura, aliás, com seus discípulos. Chamava a atenção em público mesmo. A mim não repreendia muito - coisa da qual me ressentia", lembra o também alagoano Calaça.

Carismática. Personalidade forte. Dura. Doce. Firme. Pessoa brilhante. Memória invejável. Generosidade intelectual. Tolerante. Rígida nos princípios. Libertária. Todas essas palavras e adjetivos já foram usados, em testemunhos e livros, para identificar Nise da Silveira - uma pessoa que, pela grandeza de pensamento e idéias, parecia não caber no corpo, sempre magro e pequeno. Suas idéias, então, ganharam o mundo e fizeram discípulos. Seu nome batiza hoje o antigo CPN - atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira - e uma série de outras instituições, até mesmo estrangeiras. Seu legado é rico: "Eu diria que é triplo: técnico, por consolidar o uso de terapias não-invasivas; político, pois mudou o modelo de assistência psiquiátrica, e humanista, pois ensinou a tratar com afeto as pessoas com doença mental, com todo o respeito que elas merecem", avalia Calaça. Sua rebeldia tomou forma de revolução, que se tornou concreta. E tudo porque ela não quis apertar o botão.


(*) "Nise da Silveira", de Ferreira Gullar, publicado pela Relume Dumará, série Perfis do Rio.



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción