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2 de abril del 2001 |
Por que leio Paulo Coelho Mário Maestri*
O argentino era descomunal. Um metro e noventa e cinco, cento e oitenta quilos. Quando contou que era dono de açougue, pensei que se encontrasse por assaltar o próprio negócio. A razão da prisão era prosaica. Entrara no Brasil sem licença, abrira açougue, juntara-se com gaúcha, tivera três filhos.
Contou-me no seu português platense que, enquanto comprava carne em Bagé, a mulher vendera os móveis, juntara as crias, desaparecera no interior, após denunciá-lo por viver no país sem papéis. Tudo porque lhe chegara o braço, com um pouco mais de decisão, após ela ter comprado botas brancas de cano alto, sem permissão, dissera. Havia dois dias que estava na cela da DOPS. Pai de três brasileiros, esperavam sua ficha de Buenos Aires, para soltá-lo, ou mandá-lo explicar-se junto aos seus. Me jurou que jamais se metera em política. Eu chegara, à noite, preso ao pichar o muro da PUC contra a visita de Rockefeller. Paulo Coelho escreveria: "Nossas vidas se cruzaram por segundo, mas jamais esqueceria aquele homem alto". Pedi para ficar na parte de cima do único beliche que mobiliava a cela, iluminada pela lâmpada sempre acesa. Sem comentários, ele acedeu ao pedido, compreendendo a razão de meu medo. No dia seguinte, à tarde, recebi a visita do tio Eurico, meu padrinho de crisma. Após tranqüilizar-me um pouco, ele perdeu-se no interior da Delegacia, onde tinha algo que fazer. À noite, encostado na porta aberta da cela, o carcereiro repreendeu-me. – Guri de merda! Recebi uma puta mijada por lavrar teu flagrante! Por que não disse que era parente do home! Logo o delegado Barreto Vianna, que tirou o meu da reta, mais de uma vez! Antes de sair, sério, tio Eurico entregara-me um livro, dizendo: – Ao menos aprende e deixa os livros comunistas de lado! Lê este que é bom e não faz mal! Era Meu pé de laranja-lima, um sucesso louco na época. Minha geração viveu sob o império do rádio, do cinema e do romance, descobrindo a televisão grandota. Na casa e na sede da fazenda de minha tia-avó, havia rica biblioteca, com clássicos da ficção e da poesia nacional e internacional, não raro em belas edições do começo do século. Minha mãe era leitora voraz. Desde menino, devorava ao menos um romance por semana, não raro na cama, com o livro em uma mão e a lâmpada de cabeceira na outra, sob um cobertor, para que meus pais não vissem a réstia de luz sob a porta. Encerrava a leitura de madrugada, para dormir, ou quase, durante as monótonas aulas matutinas dos jesuítas do velho colégio Anchieta. Na época, possuía apreciável e desordenada cultura literária. Guri, começara pela coleção completa do Tarzan, de Burroughs. Adolescente, tornara-me adicto de Dickens, Huxley, Saint-Exupéry e assemelhados. Ao ser preso, aos 20 anos, vivia primeira maturidade literária! Lia Dostoevski, Hemingway, Gogol, Thomas Mann e Cia. Nas alturas de meu beliche, com o argentino a passear pela cela, prometendo dose maior, se encontrasse a mulher, iniciei a leitura do romance de José Mauro de Vasconcellos. Gemada literária! Suicídio para diabéticos! Simplesmente ilegível! Com um comentário desairoso, deixei o livro cair ao pé do beliche. Agora, além de deprimido, estava irritado. Com o travesseiro sobre os olhos, para proteger-me da luz da lâmpada, a poucos metros, no centro da cela, levei algum tempo para dormir. Estávamos no ainda risonho ano de 1969, e me angustiava minha situação! Éramos felizes e não sabíamos! Não imaginávamos o que nos reservava os anos 1970! Acordei sobressaltado. Era madrugada alta. A luz feria meus olhos. Como em um terremoto, o beliche se agitava fortemente, de um lado para o outro. Ao realizar onde me encontrava, saltei, célere, do beliche, assustado, pronto para tudo, menos para o que me esperava! Diante de mim, a cena dantesca. Montanha trasbordante de carne branca, o argentino, de cuecas, com as bochechas encharcadas, chorava aos cântaros, soluçando sem cessar, como um menino indefeso. O frenesi que se apoderara do homem balançava seu corpanzil imenso, agitando o frágil beliche num vaievém descompassado. Com os olhos avermelhados pelas lágrimas abundantes, repetia, sem cessar, apontando-me o livro de José Mauro de Vasconcellos, aberto na última página: – Es muy emocionante! Es muy emocionante! Mi quiebra, mi quiebra el corazón! A cena me deixou estupefato. Ali estava, destruído pela emoção causada pelo livro que rejeitara, o açougueiro gigante que, durante a semana, talhava carcaças bovinas como cortamos manteiga com faca quente. Diante de mim, rachado pelos sentimentos, o homenzarrão que, após o vinho farto do sábado, agredia com a manopla imensa sua companheira, uma loirinha pequena e magricela, antes de levá-la para a cama. – Le gusta a la nena, pibe! – me confidenciara, quase cerimonioso. No dia seguinte, fiz minha autocrítica. Procurei o livro debaixo do beliche e li, de fio a pavio, sem muxoxos, o romance que liquidara ao chegar à quinta página. Não foi leitura fácil, com a cara do argentino invadindo a toda hora meu reino, nas alturas, para saber se chegara às partes que mais lhe emocionaram. Em termos, mantive a pré-avaliação estética. Mas, naquele momento, já não era isto que me interessava. Procurava, sobretudo, as respostas para o enigma acabrunhante. O açougueiro argentino me fizera ver que sabíamos pouco, quase nada, do mundo maravilhoso e terrível que queríamos mudar. * Mário Maestri, 52 anos, é historiador e professor da UPF. É autor de Por que Paulo Coelho teve sucesso. [Porto Alegre: AGE, 1999.] |
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