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La insignia
18 de novembro del 2004


Biohistórias (III)


Carlos Eduardo Martins
La Insignia. Brasil, novembro de 2004.


Dez anos antes da descoberta de Paul Müller, Alexander Fleming havia descoberto, acidentalmente, as propriedades bactericidas da substância que se formava em um tipo de fungo, Penicillium notatium, o que daria origem à penicilina e a toda uma nova classe de medicamentos, os antibióticos, fortemente ativos contra microorganismos e aparentemente inofensivos para células humanas. Da mesma forma que no caso de Müller, tal descoberta levou Fleming a receber o Prêmio Nobel de Medicina e, de quebra, o título de "Sir".

Datas à parte, a contribuição de Fleming é de conhecimento mais ou menos generalizado. Menos sabido é que muitos anos se passaram até que tal descoberta tivesse aplicações práticas, em parte, como no caso dos novos inseticidas, por um flagelo que atingiu as potências ocidentais em decorrência da Segunda Guerra Mundial: a contaminação de combatentes por moléstias infecto-contagiosas, quer transmitidas por insetos e vetores semelhantes quer sexualmente transmissíveis tais como sífilis, gonorréia, cancro e clamidíase (e, principalmente no caso destas, sua disseminação entre as populações daquelas potências). Seja por que motivos tenha sido, só na década de 1940 os antibióticos foram criados e passaram a ser empregados, tanto assim que Fleming só seria agraciado com o Nobel em 1945, e juntamente com dois outros cientistas, Howard Florey e Ernst Boris Chain, que de fato desenvolveram os primeiros medicamentos antibióticos com base em penicilina.

Mas no fim da década de 40 do século passado os antibióticos já eram largamente empregados, e, depois de Jenner e de Pasteur, nenhuma outra descoberta médica tinha sido tão benéfica para a humanidade. Milhões de pessoas puderam ser tratadas - e curadas -, de forma rápida, fácil e eficaz, das mais variadas doenças infecto-contagiosas.

Tão bons, e tão aparentemente sem efeitos colaterais adversos, eram os antibióticos - e novos antibióticos continuaram a ser desenvolvidos; por exemplo, em 1952 o Nobel foi para Selman Waksman, o descobridor da estreptomicina - que os médicos desandaram a receitar antibióticos a torto e a direito, ao menor sintoma. Até mesmo para doenças causadas por outros microorganismos que não as bactérias, apesar de os primeiros antibióticos serem na verdade antibactericidas e portanto não funcionarem contra vírus, fungos ou parasitas. O que jamais foi considerado como um "problema"; com o passar do tempo e o refinamento da tecnologia farmacológica, surgiriam os medicamentos anitivirais, antifúngicos, antitumorais e antiparasatários.

Cedo se notou que a exposição repetida e intensa a antibióticos podia causar reações alérgicas, a susceptibilidade a cada antibiótico e a gravidade dessas reações variando imprevisivelmente de indivíduo para indivíduo, e ao longo do tempo no mesmo indivíduo. Mas também aqui as comunidades científica e médica não viram problema maior; com a gama cada vez maior de antibióticos disponíveis, bastava substituir um pelo outro, ou em última instância, em casos de susceptibilidade múltipla, combinar a aplicação de antibióticos com a ministração de anti-histamínicos.

Vale lembrar que a segunda metade dos anos 50 e o começo dos anos 60 foram marcados, principalmente nos países desenvolvidos, por uma atitude triunfalista e arrogante daquelas comunidades. Com os antibióticos, estava vencida o que parecia ser a "fronteira final" na guerra do "homem" contra o "mundo natural", então vistos como separados e antagônicos. O último grande flagelo a assombrar os países ricos (e as classes alta e média dos países pobres), a poliomielite, havia sido derrotado com o surgimento das vacinas Salk e, posteriormente, Sabin, e se acreditava que, com as campanhas de vacinação em massa, em poucos anos a doença estaria totalmente erradicada. As "doenças de pobre" continuavam a assolar as populações de baixa renda, mas, além de não despertarem grande atenção dos ricos e muito menos da indústria farmacêutica, acreditava-se do mesmo modo que cederiam rapidamente com o crescimento econômico e a modernização das sociedades subdesenvolvidas, para o que não faltavam polpudos empréstimos do Banco Mundial e de outras instituições de fomento, cujo direcionamento para programas que se mostrariam ineficazes quando não contraproducentes não era questionado.

A isso se juntaram avanços científicos e tecnológicos em outras áreas, como a chamada Revolução Verde que aumentou (de início, e desigualmente) a oferta de alimentos, as formas de uso pacífico da energia nuclear (a Disney produziu um documentário e um livro entitulados Nosso Amigo, o Átomo) e a incipiente exploração do espaço, produzindo um sentimento de euforia e otimismo e ao mesmo tempo de imediatismo. O admirável Mundo Novo estava logo ali na esquina da história.

Mas os microorganismos estavam empenhados em sua própria luta para sobreviver e proliferar, e logo contra-atacariam. O mesmo processo que se dava com os insetos se verificou com bactérias, vírus e outros agentes patogênicos.

De um lado, pelo efeito dos antibióticos contra os microorganismos benéficos à humanidade, na "natureza" e no próprio homem. Todo ser humano é uma colônia microbial, e alguns microorganismos que carregamos dentro de nós, numa relação simbiótica, são essenciais para nossos processos metabólicos. Como aqueles que produzem enzimas sem as quais a digestão de alimentos seria impossível: em um centímetro quadrado do revestimento do estômago ou do intestino existe cerca de um bilhão de tais microorganismos. Por isso mesmo, era prática comum combinar a aplicação de antibióticos com a ingestão de alimentos e / ou a indicação de suplementos vitamínicos que "reforçassem a flora estômaco-intestinal". Mas essa prática era de valia discutível, pelo ritmo mais lento de absorção desses "reforços" e pelo efeito mais intenso e prolongado dos antibióticos. E também pela necessidade que logo se manifestou de dosagens mais e mais altas e do uso de novos antibióticos.

Pois, de outro lado, a seleção natural não tardou a levar cepas de agentes patogênicos resistentes aos antibióticos a surgirem e se disseminarem. Com o agravante de que, comparativamente aos insetos, os microorganismos são muito mais numerosos, muito menos complexos e têm ciclos de vida muito mais curtos. Isto torna o processo de substituição exponencialmente mais rápido, e ainda confere uma vantagem evolutiva aos micróbios. Eles são capazes de desenvolver imunidade por processos autóctones, bastando para isso deslocar a posição de um único gene, ou ativar ou inibir sua expressão.

Quando foram constatados o aparecimento e a disseminação de microorganismos resistentes, bactérias e posteriormente vírus e parasitas, primeiro a um ou outro antibiótico e logo a vários ou mesmo todos os já disponíveis, a chamada "multi-resistência", a resposta foi ainda uma vez "mais do mesmo." Aumento das dosagens, combinações de vários antibióticos, desenvolvimento de formulações mais potentes, e também mais caras, o que limitava o acesso às mesmas, e mais tóxicas. Outra vez abrimos uma nova frente de guerra biológica, num teatro e com estratégias em que o "inimigo" tinha ampla vantagem natural, e ainda mais que na guerra contra os insetos.

Um exemplo característico é a vancomicina, um antibacterial extremamente potente contra o Staphylococcus aureus, um patogênico particularmente insidioso. O S. aureus está longe de ser um microorganismo raro ou exótico; sua presença é comum na pele e nas mucosas nasais de pessoas saudáveis. Ocasionalmente causa infecções brandas - mas em pessoas debilitadas por, por exemplo, diabetes, insuficiência renal ou intervenções cirúrgicas pode causar infecções graves e mesmo fatais. Por ser facilmente transmissível por contato, o S. aureus é um dos principais causadores de infecções hospitalares e pós-hospitalares, além de servir como "porta de entrada" para outras formas de infecção, freqüentemente propiciando o desenvolvimento de septicemia (infecção generalizada, comprometendo vários órgãos ou processos vitais).

Com o advento dos antibióticos, a maioria das infecções por S. aureus era de início tratável por penicilina ou antibióticos assemelhados; mas rapidamente surgiram variantes resistentes a tais antibióticos, e progressivamente a vários outros. E o leque de opções terapêuticas foi se estreitando.

A vancomicina não é um antibiótico novo: já tinha sido desenvolvida há quarenta anos. Contudo, é muito cara e altamente tóxica. Por esses motivos, era de início pouco empregada, e, quando o era, em pequenas dosagens. Com o surgimento e a disseminação de cepas de S. aureus resistentes a outros antibióticos, porém, a vancomicina passou a ser mais largamente empregada, e em dosagens crescentes. E com isso logo também apareceram variantes resistentes à vancomicina, sendo que algumas delas eram também resistentes a uma vasta gama de outros antibactericidas.

Nesse e em outros casos há um aspecto irônico. Antes dos antibióticos, hospitais, clínicas e postos de saúde eram focos de infecção: a mera internação, por breve que fosse, por si só se constituía em um fator adicional de risco que reduzia as probabilidades de sobrevivência dos pacientes. De início o uso de antibióticos levou tal risco a patamares baixíssimos; mas mais e mais seu abuso, em situações hospitalares e clínicas, foi de novo elevando o risco a níveis próximos quando não iguais ou superiores aos anteriomente observados. Hoje vários estabelecimentos mais bem equipados dedicam todo um setor específico à prevenção e ao controle de moléstias infecto-contagiosas que possam se transmitir no ambiente hospitalar e dali a populações mais amplas.

Em algumas circunstâncias ocorreu uma sinergia entre os usos excessivos de inseticidas e de antibióticos. Como no caso da malária. Em áreas em que era endêmica, nos indivíduos que sobreviviam à ocorrência da doença na infância era comum que as repetidas reinfecções funcionassem como uma "vacinação natural", conferindo imunidade parcial ou tolerância, mas de curto prazo e restritas aos tipos e cepas especificamente endêmicos.

Mas com a drástica redução do vetor, o mosquito Anopheles, pelo uso de inseticidas tal processo foi interrompido por períodos significativos; e quando a malária voltava a atacar (como invariavelmente aconteceu, e mais e mais pela introdução de espécies ou cepas "exóticas" de insetos) encontrava populações desprovidas de qualquer defesa imunológica adqüirida. A isso se somou a crescente presença de variantes resistentes do próprio parasita causador da doença, Plasmodium. No Brasil e em outros países da América Latina já foram isoladas várias novas cepas do parasita predominante, P. vivax, e pelo menos duas do relativamente raro, nessas áreas, P. falciparum, muito mais devastador. Umas e outras resistentes à maioria quando não totalidade dos antimaláricos.

Outros fatores econômicos, políticos, sociais, culturais, comportamentais e ambientais exacerbariam o que a também bióloga estadunidense Laurie Garrett apropriadamente chamou em The Coming Plague, publicado em 1994, de a "vingança dos germes".

Na área político-econômica, as "guerras por procuração" promovidas pelas superpotências na África, na Ásia e na América Latina devastaram a economia, destruíram as já precárias redes de saúde pública e causaram grandes fluxos migratórios e fomes epidêmicas que contribuíram para a disseminação de moléstias infecto-contagiosas.

Ao mesmo tempo, a já aludida expansão populacional e econômica para áreas até então de baixa ocupação e exploração, com a conseqüente degradação ambiental, bem como o aumento da mobilidade pelo desenvolvimento de meios de transporte mais rápidos e de maior alcance, igualmente ofereceram novas oportunidades para que agentes patogênicos até então desconhecidos ou restritos se manifestassem e espalhassem. A isso se juntou a crescente poluição de solos, ar e água, gerando "caldos de cultura" para o desenvolvimento e expansão de novas patogenias e causando mudanças climáticas favoráveis a sua disseminação, entre outras formas através da ampliação das áreas de presença e infestação de vetores os mais variados, fossem algas, insetos, crustáceos, aves ou roedores, primatas e outros mamíferos.

Em paralelo, políticas concentradoras de riqueza e de renda, de desregulamentação e de privatização (principal mas não somente na chamada "era Reagan-Thatcher") pauperizaram ainda mais os pobres, quer ao Sul quer ao Norte. E, como parte do processo, igualmente concentraram recursos alimentares e biomédicos nas mãos de poucos detentores, escudados em mecanismos de proteção de propriedade industrial e intelectual; e deliberadamente negligenciaram, quando não desmantelaram, os sistemas de proteção social e as instituições de pesquisa e prática médicas voltadas para "doenças de pobre" - num contexto em que já vinha ocorrendo um abandono de áreas "obsoletas" como microbiologia, epidemiologia e endemiologia, infectologia, parasitologia e mesmo clínica médica em favor de especializações mais "glamurosas" e rentáveis.

De outro lado, desde a segunda metade da década de sessenta se disseminaram largamente comportamentos como promiscuidade hetero e homossexual e uso de drogas injetáveis, propiciando o ressurgimento de "velhas" moléstias infecto-contagiosas e a expansão de outras, "emergentes", quer pela exposição constante e repetida a infecções diferenciadas quer pelo enfraquecimento das defesas imunológicas daí decorrente.

Parafraseando Sigmund Freud, "mal sabiam eles que traziam a peste a si mesmos".

Quando tais práticas se revelaram "de risco", sobretudo com a emergência da AIDS (inicialmente chamada de GRID, acrônimo para "gay-related imunodefficiency") nos Estados Unidos, a reação inicial foi de negação, até mesmo pelos grupos comportamentais mais atingidos, e de inculpação das próprias vítimas. Vitimas essas que se depararam com um quadro assistencial (mesmo em prósperas metrópoles como New York, em que a AIDS rapidamente se espalhou entre os pobres e marginais, já deixando claro que logo se tornaria mais uma "doença de pobre"), médico e científico totalmente desequipado e despreparado para fazer face a essa e outras epidemias que logo se converteriam em pandemias.

Tais fatores atuaram de forma sinergética, se realimentando e exponencializando seus efeitos; vários deles continuam ativos quando não mais intensos, ainda que sob outras formas. E não há como afirmar se novas intervenções humanas sobre a ecosfera, já em curso ou no horizonte próximo, virão ou não a desencadear processos semelhantes a médio e longo prazos.

***

A esta altura talvez as estimadas leitoras e os não menos leitores estejam se perguntando onde raios, se é que em algum lugar, o tresloucado autor pretende chegar.

Lamento, se for o caso, desapontá-las, desapontá-los, mas não vou tirar qualquer "moral" das histórias. Deixo-as, deixo-os, com três citações anti-apocalípticas.

Juan Ramón Jiménez: "Si os dan papel pautado, escribid por el otro lado."
Theodore Sturgeon: "Ask the next question."
Paulinho da Viola: "As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender."


(*) Carlos Eduardo Alcântara Martins é economista graduado pela PUC ( RJ)- Brasil.



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