Portada de La Insignia

15 de janeiro de 2008

enviar imprimir Navegación

 

 

Cultura

Nos intervalos da angústia


Mariana Filgueiras
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, janeiro de 2008.

 

Brasilianista, escritor, tradutor e professor de literatura brasileira na Universidade Livre de Berlim, Berthold Zilly traduziu para o alemão Os sertões, de Euclides da Cunha (trabalho pelo qual recebeu os prêmios Wieland e Jane Scatcherd), O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Acaba de aceitar a proposta de uma editora para traduzir Memorial de Aires, para a celebração do centenário da morte de Machado de Assis.


-Como o senhor escolhe os livros que serão traduzidos?

-A sugestão para trazer Os sertões e Policarpo Quaresma, dois clássicos da cultura brasileira - eu diria até da cultura universal - para as letras alemãs foi minha. Levei muitos anos para encontrar editoras para os dois romances. No caso de Lavoura arcaica, e agora Memorial de Aires, a escolha foi da editora. Lembro que estive há alguns anos em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo. Lá se realiza anualmente a Semana Euclidiana, porque foi lá que ele escreveu Os sertões, enquanto trabalhava como engenheiro, construindo uma ponte. Durante o encontro, uma amiga me deu o Lavoura arcaica e disse: "Você tem que traduzir". -Quais são os maiores percalços da tradução do português para o alemão?

-Exagerando um pouco, pode-se dizer que não há texto fácil nem texto com dificuldades insolúveis. Toda tradução é difícil, quase impossível, e toda tradução é possível. Claro que sempre se perde alguma coisa, mas, por outro lado, muitas vezes se ganha alguma coisa. Mudar o código sempre implica mudar os conteúdos. De certa forma, o signo também é o conteúdo, sobretudo em textos altamente marcados pela forma estética, na poesia ou, como aqui, em prosa altamente poética. É como se você quisesse adaptar a Quinta sinfonia de Beethoven para quinteto de cordas ou para órgão: mesmo preservando as mesmas notas e a mesma tonalidade, o resultado, certo, seria a mesma coisa, mas ao mesmo tempo seria outra coisa. O tradutor tem de estabelecer uma hierarquia das prioridades e decidir o que pode sacrificar. Muitas vezes são decisões difíceis.

-Dê alguns exemplos.

-Nassar, por exemplo, é o mestre da dubiedade e ambiguidade. Prefere palavras polissêmicas, afetivas, alusivas, fortes em poder evocativo e emocional. Como logo no início da Lavoura: as palavras "os olhos", "o teto", "a nudez", "róseo", "violáceo". Tudo parece claro, o livro não é hermético. E quando se pensa na traduzibilidade dessas palavras para o alemão, aí surgem problemas: combinações como "olhos no teto", "quarto-catedral", "os intervalos da angústia". Um exemplo bem simples, mas de solução difícil, é o plural "os irmãos", freqüente no romance. O leitor da língua alemã tem duas palavras distintas para isso, e vai se perguntar se são os irmãos masculinos (Brüder) ou os irmãos masculinos e femininos (Geschwister). Talvez ele queira manter essa dubiedade que, no entanto, não dá para manter em alemão. Pois seria estranho traduzir: "Eu vou para a lavoura com os irmãos masculinos, mas possivelmente só com um irmão masculino mais uma ou duas ou três ou quatro irmãs". Não dá mesmo. Então eu decidi que André vai para a roça só com os irmãos masculinos, deixando as irmãs trabalhando em casa, mas é uma interpretação. Além disso, desde o início do romance se nota o jogo das sonoridades, as repetições de sons, sílabas e palavras, as aliterações, as assonâncias, as rimas, as anáforas. É preciso tentar construir algo parecido com os recursos da língua alemã, algo que tenha aproximadamente os mesmos efeitos insinuantes, mágicos.

-Como é o interesse pela literatura brasileira?

-Houve muito interesse nos anos 70. Os grandes nomes da literatura eram ainda Guimarães Rosa, morto em 1967, Clarice Lispector, morta em 1977. Na pesquisa, o que persistiu foi uma linha exotista, quer dizer, o tipicamente latino-americano seria o pré-moderno, o maravilhoso, o mágico, o místico, o rural, eventualmente o protesto social, a denúncia da criminalidade, da corrupção. Uma postura, digamos, conservadora, mística: uma crítica da modernidade, das grandes cidades, das democracias modernas, da sociedade de massa, a partir de um ponto de vista elitista. Mas isso pode mudar. Você pode dizer que quase todos os grandes autores brasileiros estão traduzidos.

-Como o senhor avalia a literatura brasileira contemporânea?

-Acho que a literatura brasileira tem um nível médio muito alto. O que caracteriza o valor de uma literatura não são apenas os grandes nomes. Em cada cidade brasileira - Fortaleza, Florianópolis, Porto Alegre - há excelentes autores. Mas eu não vejo, no momento, nenhuma escola. Talvez seja preciso para isso uma certa distância histórica. O que sobressai é a linha Rubem Fonseca, uma literatura urbana, que enfoca cada vez mais o avesso da medalha da sociedade de consumo, a brutalidade das relações sociais, a crescente guetização das grandes cidades, a alienação das classes e dos indivíduos. Mas esse movimento começou nos anos 70, você pode acompanhá-lo em toda a obra de Rubem Fonseca, Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu. E essa linha é continuada por Patrícia Melo, Fernando Bonassi, Paulo Lins. Os assuntos não me parecem totalmente novos. A fragmentação da realidade, a maneira como essa fragmentação é representada na ficção, é que está aumentando. Em Patrícia Melo, por exemplo, você não vê mais o contorno de uma grande cidade, você vê apenas fragmentos.

-O senhor trabalha alguma nova tradução?

-A editora Friedenauer Presse, pequena mas excelente, acaba de me convidar para traduzir Memorial de Aires, de Machado de Assis. Aceitei, de bom grado, porque Machado de Assis nunca é demais.

 

Portada | Mapa del sitio | La Insignia | Colaboraciones | Proyecto | Buscador | RSS | Correo | Enlaces