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23 de setembro de 2007

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Cultura

Crônicas de rádio


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, setembro de 2007.

Ilustração de RAL.

 

É difícil falar sobre um gênero que sequer foi ainda reconhecido como tal. Uma consulta ao Google, a melhor enciclopédia do caos, apontará na sua versão em português 2.170.000 resultados para crônica rádio, assim mesmo, sem aspas. Isso no sábado 22.9.2007, às 10 horas e 15 minutos. Resultados enganosos já se vê, porque entre eles se encontram "espaço virtual de baboseiras", e "Rádio Câmera para a doença renal crônica". Quando procuro ser mais exato, e por isso escrevo "crônica de rádio" entre aspas, obtenho minguadas 70 informações, que, analisadas, geram novos enganos. Mas não devo ser injusto, porque a busca permite encontrar um Manual de Radiojornalismo, onde se escreve no Glossário:

"CRÔNICA: texto radiojornalístico desenvolvido de forma livre e pessoal a partir de fatos da atualidade. A crônica de rádio tem preocupação com aspectos sonoros do texto e é assinada pelo redator".

Ora. Não se pode pedir e procurar o impossível: que se ensine nas universidades, nos cursos periódicos de periodismo, o que não pode mesmo ser ensinado. A saber: 1. Que o gênero crônica radiofônica, se houver, é um subgênero de crônica. 2. Que escrever crônica não se ensina. 3. Porque, afinal, escrever não se ensina.

Por isso vou direto ao assunto. Se alguma luz houver na própria experiência, devo dizer que sempre busquei no rádio um veículo para a transmissão de pensamento, e não bem uma técnica de expressar palavras com uma velocidade de 240 burradas por minuto. Mais lento que sou, devo ter conseguido a boa marca de 4 a cada 60 segundos. Mas de sã consciência devo dizer que este não era bem o objetivo. Sempre vi no rádio um meio de transmitir reflexão, sensibilidade, como tão bem conseguem os músicos em suas composições, como tão bem fora conseguido antes, na história do rádio. A memória me grita, Rádio PRK-30, aquele humor visceral de "a rrrrádio do cotoco em pé". Mais adiante recordo "Um olhar sobre a cidade", as crônicas de Dom Helder Câmara, todos os dias na Rádio Olinda. E se vou mais longe, lembro as pequenas experiências de menino, onde ficávamos a criar programas de rádio, na hora do recreio da escola. E essa experiência me diz:

O primeiro grande mandamento de uma crônica no rádio, de qualquer programa no rádio, é tratar o ouvinte com respeito, o que vale dizer: a consciência de que além do microfone há pessoas inteligentes, há humanos, enfim, que dividem conosco aquele momento. O segundo mandamento, portanto, é perder toda e qualquer atitude professoral, porque o privilégio que usamos naquele instante é circunstancial, e mais experiência possui o público do que sonha nossa vã imaginação. O terceiro é saber ler. Isso quer dizer: ler com emoção, com absoluto cuidado na ênfase e decréscimo das palavras, ler com ironia, ler com todo o ser, em resumo. Ler com todo o ser. Fazer da leitura uma experiência, como se fosse a última vez.

Isso quer dizer, portanto, que as palavras têm que ser desentranhadas do seu casulo escrito. Isso quer dizer que a leitura exige recursos de ator, se por isso não entendemos o mau gosto das impostações de voz artificiais, ou, supremo mal dos males, as entonações melodramáticas. O texto deve ser interpretado com a voz que não passa a impressão de interpretar. Como dizer isso? - O texto merece uma interpretação natural, que se dê em um fluxo de conversa em uma sala, como um diálogo entre duas pessoas. Ainda que fale para milhões de pessoas, o locutor se dirige a um só ouvinte. Como um João Gilberto da fala.

É claro que o locutor, naquele segundo terrível em que se acende uma luz vermelha no estúdio, o que o deixa na condição dos condenados à cadeira elétrica no momento em que se assentam e um carrasco anuncia, "no ar", é claro que o locutor deve e tem que ser ajudado por um texto. Ora. Chegamos aqui ao mais difícil. Se o texto radiofônico em geral tem que ser escrito para a fala, e isso exige frases curtas, porque, tenham piedade, os pulmões de ninguém conseguirão alento em frases repletas de circunlóquios e perífrases, a crônica do rádio em particular guarda um pouco mais de dificuldade. Do seu natural gênero híbrido, o de ser texto para o dia e texto para qualquer dia, no rádio a crônica recebe outra marcação mais decisiva: as suas frases devem ser versos. Quero dizer, as frases devem guardar um sentido autônomo, que se realizam em um crescendo, e mais uma vez valemo-nos de outros reinos: as frases devem soar como uma composição musical. Pero não só. Cesse tudo quanto a musa antiga canta, porque:

1) As palavras têm que ser as mais simples, de domínio público; se for imprescindível uma estranha ao léxico popular, que se esclareça de imediato o seu sentido.

2) Elas podem e devem ser repetidas, sempre que o sentido de ritmo exigir, sempre que for insubstituível no seu significado e na sua força.

3) O texto deve caminhar, se possível, com alguma composição, composição sem letra, é claro, cujo espírito lhe seja harmônico. Em uma palavra: música, discreta, a ser combinada com o autor.

E mais importante, o que me parece um autêntico salto de gato. A crônica radiofônica ("radiofônico", esse palavra polissílaba, quase grosseira quando pronunciada) deve ter uma idéia construída desde a primeira letra até o ponto final. Em um crescendo para um tempo breve. Não chega a ser um poema porque não possui elipses, nem frases de múltiplos significados. Mas guarda do poema a sua brevidade e movimentos, versos-frases, autônomos. Isso obedece a uma razão simples, sem preciosismo ou frescura. O texto lido no rádio não admite replay. A frase falada não admite uma volta, um retroceder. No ar, existe uma ordem: "digas a que vens e desapareças".

Agora acompanhem os textos a seguir, que deveriam obedecer à ponderada argumentação acima. O primeiro, na Rádio Tamandaré, no programa Violência Zero, em 23/4/1988:

"Um preconceito afirma que um RAIO não cai duas vezes sobre um mesmo lugar. (PAUSA.)

Pois bem, contrariando esse preconceito, a sorte caiu duas vezes esta semana sobre o estado de Pernambuco. Uma, em Abreu e Lima, quando um jovem desempregado ganhou, sozinho, a SENA. Outra, no Recife, quando um desconhecido, desconhecido agora ilustríssimo, mordeu sozinho a quina da LOTO. (PAUSA)

Em um estado que mergulhou em uma miséria de Jó, o fato de dois pernambucanos ganharem a sorte grande renova as esperanças da multidão. Todos pensam em saltar da necessidade para a riqueza, utilizando meios de feiticeiro ou de mágico. (PAUSA.)

Todas as semanas a sorte voa distante, por um triz, para milhões de pessoas boquiabertas. Mas não é assim a vida? Por um triz qualquer um de nós poderia ser um príncipe da Arábia Saudita. Era só ter nascido por um triz em um país árabe. E por um triz ter nascido nobre. (PAUSA.)

Mas a realidade é que nascemos em Pernambuco, de pais e mães da silva, e ganhamos, ou perdemos a vida, todos os dias, de sol a sol, ou de noite adentro. É a lógica do jogo. Um só ganha, e milhões gritam: 'deixei de ganhar por um triz' ".

E este, em 8/7/1989:

"Os Juízes e Promotores estão em gozo de merecidas férias. Data Vênia.... data vênia quer dizer isto, "perdoe não concordar, ilustríssimo, meritíssimo", data vênia não faltaremos com a verdade. Os Juízes e Promotores têm férias somente por 3 meses, sem interrupção, todos os anos... a cada 12 meses, queremos dizer. (PAUSA.)

Sejamos razoáveis. Com férias tão curtas, os processos a serem vistos por olhos cansados andarão mais lento. Um crime cometido hoje, quem sabe?, poderá ser julgado quando o tempo fizer a curva no século XXI. Mas que será julgado, será, porque isso é mais que justo. (PAUSA.)

Arbitraram os cientistas que a distância entre as estrelas se mede em anos-luz. Um ano-luz vem a ser a distância corrida pela luz, durante um ano. Com a nossa justiça à brasileira, criamos o ano-processo, que é a distância NÃO corrida pelo processo, durante um ano. Isso porque durante 3 meses, de férias forenses, um processo não anda. Depois, durante os outros 9 meses, hiberna, dorme no gelo, com pilhas de outros volumes que lhe jogam por cima. Como dizia um contínuo no fórum: "O negócio aqui é devagar, doutor. Devagar, de vagar e sempre".

Não sei se os exemplos concordam com a tentativa de definição do gênero. Paciência. Para acabar com a fama nada é melhor que a prática.

 

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