Portada de La Insignia

19 de setembro de 2007

enviar imprimir Navegación

 

 

Cultura

Tudo o que não escrevi


Eduardo Prado Coelho
Storm / La Insignia. Portugal, 2007.

 

Bruxelas (18.9.91)

Os dias do Marais, a casa do Marais, as tardes do Marais - repito estas expressões como quem soletra os títulos de uma história burguesa com famílias numerosas e episódios fabulosos. A razão é simples: apenas atracção pelos emblemas da memória. Assim: gostaria de contar estes dias como quem conta uma história antiga (a mesma felicidade das palavras amarelecidas, os mesmos ruídos da madeira, o mesmo sabor dos frutos). Marais: quando as crianças brincam no jardim, quando passam os velhos de barbas hebraicas, é sempre a repetição de uma vez anterior, antes de se saber que havia antes. Dias perfeitos, redondos como pedras, nítidos, coincidentes, plenos, drapejados. Contudo, nada foi tão perfeito como a relação contigo: um braço sobre os ombros, a mão nos cabelos, a sabedoria da amizade, o afecto infinito. Talvez ainda eu não estivesse preparado para uma tal exigência. Mas pouco a pouco percebi que havia um encontro inadiável. [...]


Lisboa (22.12.91)

Há uma frase que me tem seguido pela vida fora. Qualquer coisa como "não tens vida interior". Que significa? Não propriamente que me seja atribuída uma ausência de "pensamento interior" - de modo algum. Mas perpassa a suspeita de que esse pensamento se desenrola numa espécie de impessoalidade indiferente aos relevos afectivos de todos os dias. Confesso que isto me espanta, porque se alguma coisa eu sinto é que tudo aquilo que penso se modela sobre um corpo afectivo extremamente atento e vibrátil. Tudo o que seja um pensamento segregado do quotidiano me parece insignificante.

"Não ter vida interior", no sentido acusatório em que a expressão se inflama, significa que raramente me penso como problema, que me aborreço imenso se tenho que pensar em mim, que poucas vezes me ocorre apelar para um outro com o intuito de lhe expor o rosário das minhas inquietações, e que me provoca alguma repulsa aquela tendência tão propagada para a "conversa de bar" em que cada um repete pela milésima vez o labirinto da sua neurose. Nestes termos, para mim, a ideia de "vida interior", o modo como ela se cultiva e acarinha no espaço de compreensões recíprocas com que tantos se afagam, é, no fundo, uma espécie de incrustação mortífera num sistema viciado em que cada um gosta de bater com a cabeça na parede para suscitar a piedade dos outros. A náusea vem de eu acreditar que existem verdadeiros problemas, que são aqueles que podem ser resolvidos ou pelo menos equacionados segundo uma certa racionalidade, e que existem os problemas que nos confrontam com a própria fatalidade (a morte, a doença, o desastre), e que não convém substituir uns e outros pela lengalenga dos "problemas de regaço" com que muitos gostam de se comprazer nos fracassos do seu destino ("falhei tudo na vida", etc.).

A minha rejeição da "vida interior", no sentido mais amolecido da expressão, não exclui, hélas, um evidente narcisismo. Mas é um narcisismo vazio - como se diz "um túmulo vazio". Ou, se preferirem, um narcisismo da não-interioridade. Sem neurose, julgo. E extremamente reticente em relação aos que se "evadem" da vida interior pelo recurso do riso. Sempre odiei a ideia de, num círculo de sorumbáticos, tentarem aceder à alegria pelo recurso a contar anedotas. Contudo, adoro o riso - e, sobretudo, adoro o som de um riso partilhado. [...]


Lisboa (23.12.91)

Outros se deslumbram na evocação dos lugares míticos da infância, considerados no seu papel de único paraíso acessível e desde sempre perdido. Pela minha parte, sentindo a infância como um apelo do futuro, apetece-me recolher fragmentos de uma memória dispersa, quase anónimos na sua pureza desgarrada.

Lembro-me de ter chorado com a morte de Sandokan (livros de Emilio Salgari na Romano Torres) - numa manhã de domingo, os meus pais ainda dormiam, as persianas corridas, junto à janela da casa da Rua da Fábrica das Sedas (hoje o nome é outro).

Lembro-me de ter brincado, durante longas tardes, aos soldadinhos e às guerras, com soldados que vinham com embalagens de chocolate, e um forte de madeira que tinha sido uma prenda de Natal - era em casa da minh avó paterna, e depois havia leite creme queimado com ferros em brasa.

Lembro-me dos olhos que choravam de Miguel Strogoff e que por isso não chegaram a cegar.

Lembro-me de ter ido com o meu pai ao futebol e, no domingo seguinte, o meu avô dizia, na altura do relato radiofónico: "ele já viu e já sabe como é" (a única frase que recordo dele).

Lembro-me de que, quando estava doente, iam buscar os "livros de curso" da Faculdade, com caricaturas e versos para os estudantes e professores, e que os meus pais falavam sempre de maneira diferente quando aparecia o Sebastião da Gama.

Lembro-me dos jogos sexuais com C., a criada, quando os meus pais saíam para ir ao teatro ou ao cinema, e que um dia, sem que eu percebesse porquê, ela começou a chorar.

Lembro-me de ir à Baixa com a mãe e outras pessoas amigas e entrar em casas de chá onde vinham para a mesa pratos com meia dúzia de bolos.

Lembro-me das férias em São Martinho do Porto, do pão de ló de Alfeizerão, de jogar a bola com o meu tio, de não gostar de dormir a sesta (lá fora o mundo continuava), de passear de triciclo na rua dos cafés, de estar sempre a perguntar a que horas podia tomar banho.

Lembro-me de um baloiço, no pátio, que um dia, de repente, caiu.

Lembro-me de uma criada que foi despedida e depois os amigos dela vieram fazer arruaças para a porta da nossa casa.

Lembro-me da elegância dos polícias sinaleiros, e um deles tinha um requinte dos gestos, chamava-se Inácio, e ganhara um prémio na Europa.

Lembro-me de um estranho sentimento de prazer que vinha de uma história de índios que torturavam um prisioneiro.

Lembro-me de que, no Colégio Clenardo, havia um menino mau, que se chamava Monteiro, e que os pais dele tinham uma loja na Baixa.

Lembro-me dos longos jantares de família em que aborrecia as pessoas com concursos de perguntas culturais que encontrava em livros e revistas.

Lembro-me de que a minha tia comprava as Selecções, e que a minha avó tinha La femme d'aujourd'hui, com folhetins em suplemento, que ela e a madrinha coleccionavam.

Lembro-me da forma metódica como li os cem primeiros livros da colecção Vampiro.

Lembro-me de uma vez ter ido com a minha mãe ao Aquário no Dafundo, e depois, na volta, o eléctrico começar a andar quando ela ainda estava no estribo e de ela ter desatado a gritar.

Lembro-me de ter borbulhas na cara, e de o médico dizer "Dessas borbulhas gostava eu bem", e eu achar que ele era parvo.

Lembro-me de vir no autocarro "Miguel Bombarda" a explicar que não queria nem valia a pena saber o alfabeto de cor, e um senhor me ter vindo observar que não era tanto assim (este episódio ainda me envergonha).

Lembro-me de tudo isto, mas sem particular nostalgia ou qualquer halo mágico e cepitante. Não me lembro de muito mais. Fui feliz tanto quanto posso ser hoje. E é tudo.

Um dia operaram-me às amígdalas, sentaram-me no colo da enfermeira e eu perdi os sentidos, depois não podia falar, mas consolavam-me com a ideia de poder comer gelados. Dos gelados gostava sobretudo de baunilha. Mais tarde vim a saber que entre a palavra "baunilha" e a palavra "vagina" existe uma relação etimológica. Tem a ver com a forma mais do que com o sabor. Adormeço a pensar nestas coisas. Em palavras e em corpos. É o sono da infância - quente e protegido. Lembro-me da botija na cama, nas noites de Inverno. [...]


Paris (2.3.92)

De onde vem esta música? É um homem que está sentado num terraço deserto e enegrecido pelos temporais, é um homem que empalideceu por dentro até se distanciar dos metais, dos cavalos, dos livros, das armas de arremesso, do vinho, de tudo. Aproximou-se tanto da morte que é a própria morte que lhe concede um último tempo de vilegiatura entre os vivos. Este homem pergunta ainda, como se a resposta pudesse ser um fio a que se prendesse: de onde vem esta música? [...]


Paris (16.3.92)

Nunca dancei. Vi os outros dançarem, em terraços voltados para o mar, no chão de areia de África ou do Brasil, em clandestinos infernos de bares de marinheiros ou em inflamadas discotecas de praias turísticas, vi-os e julguei-os felizes, esquecidos e voláteis, perdidos e enovelados numa bola de fogo, mesmo se às vezes os pares se rompiam e ela vinha sentar-se a chorar, e então eu pensava que ainda havia palavras que podiam funcionar como carícias, que eu sabia dizê-las, palavras redondas encostadas à face magoada e triste. Também dancei sem que os outros soubessem que eu dançava, mas dancei fora da dança, porque dançava para mostrar que também dançava, e lembrava-me disso em cada passo, e nunca esquecia que era o meu corpo que dançava, e nunca soube dançar sobre o esquecimento do corpo, nunca ninguém dançou sobre o meu corpo como se fosse a areia da praia ou um terraço voltado para o mar, nunca ninguém que eu sentisse os dois esquecidos de mim.

Pouco a pouco, aprendi a olhar a arte da dança, e passei noites inteiras no dslumbramento de os ver, sem palavras úteis que me explicassem o que ali se passava à minha frente. Era apenas ficar sentado com os olhos colados ao vidro de um mundo outro em que os corpos se multiplicavam como estrelas no momento preciso em que ainda se não tinham tocado, mas já começavam a precipitar-se uns para dentro dos outros. Eles dançavam, esplêndidos, gloriosos, e eu ao vê-los sei que nunca dancei. [...]


Saint-Malo (8.5.92)

Na surpresa de uma curva, o deslumbramento. Tão forte que as lágrimas deveriam romper clandestinamente no mais fundo dos olhos. Este lugar é uma enseada, enseada amena, a enseada de Guesclin. Em frente uma pequena ilha, com árvores, uma casa à proa, muralhas, janelas pequenas, e no topo uma grande janela branca e fechada. Segundo o guia da Gallimard, ali viveu Léo Ferré nos anos sessenta. Enquanto houver ilhas, os homens continuarão a ser reis como os reis que o foram. Reis inúteis mas soberanos, cobertos pelo manto nocturno das águas. Se eu tivesse uma ilha, os meus amigos chegavam em barcaças, cantavam baladas de marinheiros, bebiam cidra, deitavam-se com a boca salgada, faziam amor e adormeciam.


Excertos dos volumes I e II do diário Tudo o que não escrevi, Ed. Asa.

 

Portada | Mapa del sitio | La Insignia | Colaboraciones | Proyecto | Buscador | RSS | Correo | Enlaces