2 de setembro de 2007
Assim como na pancada que sentimos quando procuramos um bem adorado e que julgamos eterno, sólido, indestrutível, mais forte e assentado que as nossas próprias pernas, que um instante antes estava conosco e agora, num raio, num lapso absurdo, descobrimo-lo perdido, João recuou um passo e se pôs a repetir sílaba por sílaba os tijolinhos negros de letras da primeira página, para ver se achava algum nexo de realidade, quem sabe uma saída, quem sabe um engano, repetindo-se em voz baixa como se fosse uma criança que nos seus primeiros passos de alfabetização lesse a lição da morte da sua mãe. Seus olhos corriam para o que ele queria que fosse outra impossibilidade, nas letras do periódico: "Cíntia de Araujo Lima. APML do B. Natural de Fortaleza(CE), 1950. Aliciadora estudantil, fazia ligação com terroristas. Amante de Eudaldo Zacarias. Conhecida como Sílvia".
O jornaleiro, indiferente. As pessoas que subiam a ponte da Boa Vista na manhã da quinta-feira paravam alguns instantes, olhavam a manchete, e continuavam o seu caminho. Nenhum comentário. Pareceu-lhe que o sofrimento dos seus companheiros a ninguém interessava, que a dor dos companheiros afundava só, porque a solidariedade reclamada batia contra a base de ferro da ponte. "Atuando no Nordeste Brasileiro, fazia propaganda invocando a necessidade de se manter acesa a chama do terrorismo, no objetivo de aliciar estudantes e outros jovens desavisados e inconscientes para a realidade destruidora do terror". Esta era a Sílvia da versão dos órgãos de segurança. A bonequinha de milho destruída como terrorista. Onde antes cintilavam estrelas ... e João ficou sem concluir. Porque assim era o seu desejo: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", ele se disse, mas essa ordem não lhe agradou. Então ele se disse, enquanto mergulhava na legenda da touceirinha rebelde penteada: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em segredo". Pouco melhor, achou. E procurou tecer um arremate: "com a ternura e..." e o quê? raiva? não. Humanidade? não exatamente, por faltar à palavra um conteúdo picante, mais ardente. E procurou uma derivação, provisória: "( eu a quero) com a ternura e paixão e um bem", isso, "( um bem) guardado e mais que amado em silêncio, (silêncio que é) feroz segredo". A Cíntia da sua humanidade estava destruída. Isto ele não se disse. Martelava o seu cérebro, agachado, enquanto lia "... dada a ordem de prisão os terroristas reagiram a bala. Após cerrado tiroteio ..." (ele o sabia, Cíntia e Vevê não usavam revólver), martelava o seu cérebro enquanto lia esse estúpido cinismo, como uma lembrança longínqua, uma música infame subindo das águas burras do rio: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti". Darás a tua vida por mim? Cíntia duvidou, no seu rosto apagado, entre névoa, de boca endurecida e serena. "Os dentes de sua linda boca, crispada, serão amarelos?".
Então ele se levantou, caído em si, envergonhado, recriminando-se por haver sido tomado por um assalto necrófilo. Cíntia estava morta, isso era real. Quase palpável. Embora fosse um real misturado a difamação, ficção podre, caluniosa, da notícia copiada na íntegra, saída dos órgãos de repressão para o jornal. Mas era natural, ele se defendeu, que respondesse à sordidez com o seu amor romântico, reprimido. "Por que não te posso amar, minha terrorista? Por que não te fizeste de fato o terror, para banir pelos ares a indiferença tamanha dessa gente? Por que não varreste de metralhadora as pessoas que só têm do humano a feição?". Uma dor de cabeça o tomou, e ele se pôs a vomitar sobre as águas do rio, na ponte da Boa Vista. "Estão mortos! Isso é real. Todos lhes vêem as caras mas ninguém sabe de sua humanidade. Isso é real! Estão mortos! ". E ele não podia gritar. Um real de pesadelo mais que real. Pois o que é a morte, a vida cortada abrupta, a não ser um pesadelo mais que real? "Eu te amo, minha defunta terrorista. A ternura que tens só a minha covardia em segredo te adivinha. Eu te amo, exatamente agora, e mais que antes, porque eu sei que és morta. Não és mais coxas, (e como eu as queria), jamais voltarás a gritar, 'eu sou uma subversiva', aquele grito belo que eu não grito. Eu te amo, e pouco me importa que esse amor ganhe a reputação de necrófilo. Eu quero o teu cadáver". E se pôs irreprimível a vomitar. "Não", reconheceu com horror, "o que eu quero é a tua vida. Por que não me digo isso? Eu sei", e João se pôs a chorar como uma criança desvalida sobre a ponte. "Eu sei". E mais em pranto vinha, porque sufocava o que sabia: dura era a opção. Ao vê-lo chorando os que passavam na ponte apenas estranhavam-no. Eram sete e trinta da manhã. Então lhe ocorreram duas hipóteses: a) matar-se; b) matar-se. Hipótese A: pular para o rio. Hipótese B: de metralhadora em punho invadir o QG do IV Exército. Na hipótese "a" ele não foi porque lhe repugnava sujar-se do vômito que havia derramado no rio. Certo, ele se perguntou, e por que não em outro ponto? Certo, ele continuou, e se estiver raso, e se em vez de afundar eu apenas fique me debatendo na lama? Então ele foi para a hipótese "b". O quadro não foi bom. E se ele simplesmente morresse na invasão, sem dar um só tiro? Ou, o que era pior, valia a pena foder um miserável sentinela, e ser fuzilado na porta do quartel, sem ter mandado pro inferno um só general? E, o que era o pior dos piores, ele sabia destravar a arma para que pudesse atirar? Uma decisão de suicídio, sabemo-lo à distância, ou se toma em paciente construção, ou é realizada no calor do instante. De uma forma ou de outra o suicídio exige uma unidade emotiva, alta, grave, que rejeita a invasão do prosaico. Por ser impossível naquele instante resolver de uma forma grandiosa a sua decisão, ele seguiu para o trabalho. Matar-se perseguia-o como uma sombra, não resolvida, à espera de um corpo e momento à sua altura.
Chegou no trabalho afundado. Desejava, porque estava triste, afastar de si todo e qualquer convívio, ao mesmo tempo que gostaria da compreensão por seu estado de tristeza, numa parca esperança de solidariedade. Era necessário, no entanto, e aí o seu rosto não sabia que face vestir, era necessário no entanto ostentar frieza, indiferença, como se não soubesse da notícia dos jornais, para que o seu rosto de dor não lhe atraísse suspeita, assemelhando-o aos companheiros mortos. Sabia-o na inteligência, - como dizer? - por instinto primário, animal, que o insinuar de um sorriso cúmplice para com os assassinatos da manhã seria bem-vindo. Mas um frio no estômago lhe interditava essa possibilidade. "Disse-lhe Pedro", vinha-lhe num tormento: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim?". A pergunta lhe chegava num espanto, incrédula: "Darás a tua vida por mim?!".
Entrou no escritório. Sentou-se, abriu a gaveta, fechou-a, tirou a capa da máquina, sem saber como a partir de tais movimentos rotineiros iria tocar o seu dia. Ouviu, do chefe janota:
- Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?
Abriu e fechou a gaveta, fechou e abriu, cabisbaixo, imergindo todo nesse ir e vir. Um perfume enjoado, ativo, mistura de repelente e álcool, chegou-lhe próximo:
- A puta era até bonitinha. Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu, João?
- Eu? - "Darás a tua vida por mim?" pensou. - Não vi o jornal hoje.
Um bolo azedo lhe subiu à boca.
- Trocaram tiros com a polícia... São afoitos.
Era como um cerco. Deviam ter desconfiança dele, e vinham com armadilha, estimulando-o, para que se traísse pelo coração na goela.
- Vocês se lembram da bomba no aeroporto? Tem que matar mesmo. Eu nuca vi terrorista ter cura - dizia um velho, que João sabia ser um funcionário desonesto.
- Mocinha tão bonita... - acrescentava outro, em falsa piedade - ...desencaminhando jovens de família.
"Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", bateu-lhe na mente. E rosnou:
- Os jornais mentem muito. - "Com a ternura e raiva e um bem guardado no mais íntimo segredo", os seus olhos quiseram marejar. Conseguiu mantê-los num seco frágil.
- O quê, o quê você disse? - voltou-se o chefe.
Quis responder com voz alta e firme, "eu disse que os jornais mentem". Mas a voz, teimando em lhe sair num fio, que era a expressão do seu real embaraço, tropeçou nas sílabas:
- (Eu) diis-se que os (jor)nais (es)tão meentindo...
- Como foi que você disse?
João sorriu, para a sua desgraça e inferno sorriu, como um menino espancado em frente a visitas. A fortaleza evadira-se do peito. Em luta, restou-lhe um meio sorriso, procurando ganhar tempo para o desvencilhar do enredo. E como os segundos de um embaraço multiplicam-se na angústia, a sua inteligência descobriu uma terceira via: ele deu de ombros, e declarou num ar de quem fala coisa de pouca importância:
- Esses jornais... de vez em quando eles inventam. A gente tem que dar uns descontos.
- Ah! mas eles eram terroristas. Isso não é mentira, é?
"Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes". João virou-se e procurou começar a bater à máquina. As lágrimas teimavam em lhe vir aos olhos.
- Mas eles não eram terroristas? - ouviu. "Disse-lhe Pedro: por que não posso eu seguir-te agora?". E era como se o indivíduo que estava às suas costas lhe dissesse: tu também és um deles. E o seu silêncio frente à pergunta, "eles eram terroristas, isso não é mentira, é? ", soava como a resposta, "Eram. Mas eu não sou um deles".
As teclas da máquina ficaram embaciadas. Então ele se levantou de sua cadeira com um nó na garganta pronto a desatar. E, tendo saído para fora, chorou amargamente.