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La insignia
17 de julho de 2007


Linhagens do pensamento político brasileiro (II)


__La Insignia__
Diálogos
Gildo Marçal Brandão (*)
La Insignia, julho de 2007.



Formas de abordagem

Posta a questão desta maneira, fica claro que o caminho escolhido não poderia ser o da biografia, fosse ela escrita em chave psicológica ou em intelectual; nem o da sociologia, seja a dos intelectuais ou a de suas instituições; nem o da história das mentalidades, com o seu enfoque nas atitudes, comportamentos e representações coletivas inconscientes. Do ângulo que aqui interessa, a chave do problema não está em saber se o autor X ou Y era aristocrata de nascença, parvenu ou membro da oligarquia decadente em busca de reclassificação social, pois embora isso tenha que ser levado em conta, não explica por si uma estrutura teórica, uma obra de arte ou um problema científico; na verdade, não cabe explicar a qualidade ou a especificidade de um pensamento político ou produto literário pela evocação da "origem de classe" de seu autor. E ampliando, em nenhum momento a produção intelectual será lida como reflexo ideológico de grupo social preexistente - como se pudesse existir uma "classe", historicamente identificável pelo lugar que ocupa no processo de produção, e depois a sua "consciência" ou a sua "visão de mundo" (23).

Não se trata, tampouco, de reduzir idéias e modos de pensar às estratégias micropolíticas das coteries as quais conferem eventualmente identidade institucional; sequer de concentrar o foco na miríade de obras medianas pelas quais determinada compreensão das coisas se refrata e se propaga, embora o exame delas seja certamente necessário para explorar todas as variáveis, compor e hierarquizar o quadro. Não desconheço, por certo, que idéias não se transformam em ideologias ou mesmo em formas de pensamento sem que sejam submetidas a processos mais ou menos sistemáticos de rotinização, nos quais autores habitualmente considerados secundários e obras logo esquecidas desempenham papéis fundamentais. Mas, por isso mesmo, convém ter em mente que vale para os processos intelectuais aquilo que Gramsci individualizou em sua nota sobre o "número e a qualidade do sistema representativo": neles o que se mede é "exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas etc., etc., isto é, sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta" (24). Nessas condições, não há como fugir do suposto segundo o qual as obras mais significativas, os textos fundamentais, as criações teóricas mais típicas são mais capazes - porque mais coerentes, mais amplas, mais profundas e mais autônomas - de revelar a natureza de uma época e a consistência de uma concepção política, de permitir aos homens a tomada de consciência do que fazem e de extrair todas as implicações de sua própria situação. Nesse sentido, é exemplar a reação provocada pela leitura de Formação Econômica do Brasil em Oswaldo Aranha, relatada pelo próprio Celso Furtado. "Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não sabia de nada" (25). A análise, é claro, destaca apenas um aspecto específico de um conjunto mais vasto, mas a perspectiva mobilizada permitirá interpelar as idéias de determinados autores - aí sim, sem reducionismos - como momentos da constituição de atores específicos, como tentativas de diagnosticar e resolver problemas reais, de dirigir política e culturalmente a ação de forças sociais determinadas.

Com Löwy, em nenhum momento estou sugerindo que análise desse tipo seja incompatível com o reconhecimento do papel determinante das condições econômicas e sociais. Mas reconhecer essa compatibilidade não implica supor que idéias e formas estejam em conformidade direta com o desenvolvimento geral da sociedade, possam ser dissolvidas em seus contextos (políticos, econômicos ou mesmo lingüísticos), reduzidas a movimentos políticos conjunturais, descritas necessariamente como homólogas aos grupos sociais ou às instituições onde nascem. Claro, formas e idéias não caem do céu, não governam o mundo, não podem ser pensadas a qualquer momento nem em qualquer contexto histórico, estão enraizadas nas condições materiais de vida, são - para usar a feliz formulação de Carlos Nelson Coutinho - "expressões condensadas de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las" (26). Por isso mesmo, não podem ser tomadas isoladamente, correlacionadas caso a caso com eventos, grupos ou fenômenos sociais; são antes resultantes, traduzem relações existentes entre grupos no interior da sociedade global, são momentos não apenas constituídos, mas constituintes dessas relações - sem contar que quando realmente significativas sobrevivem aos seus contextos de origem, são universalizáveis e podem ser interpeladas a partir de outras condições e perspectivas. Como observa Marx,

"a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis." (27)

Por isso mesmo, em um trabalho exploratório como este, o caminho mais seguro é ir das idéias e das formas ao social - na verdade, tomar as formas como cristalizações do social, decantações da experiência - sob pena de introduzir na análise pressupostos deterministas e de cancelar a priori a riqueza das mediações (28). Do mesmo modo, não se trata de riscar linhas retas entre ideologia e forma de pensar, interpretação do país e linha política que dela possa ser "deduzida", de julgar que, dada esta teoria segue-se aquela política - até porque tais relações estão longe de ser diretas e unívocas. Na verdade, o significado que uma teoria, idéia ou interpretação acaba adquirindo, mesmo no contexto em que foi produzida, nem sempre coincide com a intenção de quem a formula e com o público que a acolhe. Por mais sistemático e coerente que um conjunto de idéias seja, seu desenvolvimento jamais é inteiramente imanente, mas sempre em resposta a problemas reais; ele não apenas se presta, dentro de certa margem de tolerância, a atualizações e reconstruções, como pode dar margem a diferentes políticas - a não ser que aceitemos a metodologia stalinista segundo a qual o traidor e a traição estavam em germe no desviante desde criancinha, ou essa profecia retrospectiva que toma ação e teoria "condenáveis" hoje como o produto necessário do que o indigitado escreveu 30, 40 anos atrás. Se for assim, é claro que o sentido - progressivo ou regressivo - de cada particular expressão do conservantismo, do liberalismo, do socialismo liberal ou do comunismo, não existe em si mesmo, só pode ser estabelecido em função da natureza dos problemas postos pela sociedade em um determinado momento de seu desenvolvimento, e da capacidade de seus portadores de dar respostas à altura tanto desses dilemas históricos como das exigências do dia.

Nada disso impede, no entanto, o reconhecimento das determinações mais gerais a que chegou o processo ideológico brasileiro, a detecção não apenas do, digamos, liberalismo em geral, mas das determinações mais gerais do liberalismo ou do conservantismo tal como eles se desenvolveram no Brasil, o destaque do que há de comum entre diferentes manifestações históricas da mesma orientação básica. É evidente que esse caráter geral, "este elemento comum que se destaca através da comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes" (29). O intuito, claro, é demarcar a existência, no plano das idéias e das formas de pensar, de continuidades, linhagens, tradições, o que, convenhamos, não é de pouca monta em um país em uma historiografia (e autores prestigiosos!) que insistem em dizer - a seco, com tristeza, ou ironicamente, o efeito é o mesmo - que a vida intelectual nunca deixou de ser o passatempo de senhores ociosos, que nunca houve conservadorismo entre nós porque nesse campo não há pensamento, o liberalismo foi sempre de fachada, o socialismo não passou de amálgama entre positivismo e estupidez, etc.

Com todas essas ressalvas, penso que o recorte acima proposto é pertinente. Posta a hipótese, eis o corolário: tendo como matéria a "imundície de contrastes" de que falava Mário de Andrade - pois, "como sucede com todos os outros povos americanos, a nossa formação nacional não é natural, não é espontânea, não é, por assim dizer, lógica" (30)-, nem por isso a vida ideológica brasileira é aleatória; faz, ao contrário, sistema e sentido, embora seja (ou tenha sido) descontínua, sujeita à ciclos de substituição cultural de importações que, por vezes, parecem fazer tabula rasa de todas as anteriores configurações. Qualquer que seja a consciência de sua própria história, ou o grau em que reconhecem os seus próprios ancestrais, suas principais correntes não nasceram ontem e não se explicam apenas em função das conjunturas. Se for assim, então a reflexão sobre essa história e seus ciclos intelectuais pode ser uma boa porta de entrada para compreender e explicar a natureza e os limites dos projetos políticos que buscam hoje dirigir os processos de reconstrução do capitalismo brasileiro, de aprofundamento ou contenção da democracia política, e de inserção autônoma ou subalterna do país no movimento do mercado mundial.


Formas de pensar

Ora, qualquer tentativa de definir a visão do país e o programa político da corrente conservadora brasileira - que foi responsável no século XIX pela construção do Estado e pela manutenção da unidade territorial, forneceu no século XX a diretriz básica da ação dos grupos políticos e das burocracias dominantes no país (do tenentismo e do primeiro varguismo ao geiselismo, de Agamenon Magalhães a Antonio Carlos Magalhães), e cuja origem intelectual remonta em boa medida ao visconde de Uruguai e a Oliveira Vianna (31); -reconhecerá que eles se assentam na tese de que não é possível construir um Estado liberal (e democrático) numa sociedade que não seria liberal. Sua conseqüência prática é que esta precisa ser tutelada e a centralização política e administrativa afirmada. A imagem do Brasil que emerge do pensamento conservador, é a de que esse é um país fragmentado, atomizado, amorfo e inorgânico, uma sociedade desprovida de liames de solidariedade internos e que depende umbilicalmente do Estado para manter-se unida. Nesta terra de barões, onde "manda quem pode, obedece quem tem juízo", o homem comum só costuma encontrar alguma garantia de vida, liberdade e relativa dignidade, se estiver a serviço de algum poderoso. Fora disso, estará desprotegido - a não ser que o Estado intervenha. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, aqui o Estado não deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil, mas como sua única garantia.

Criticando os liberais por sua cegueira diante da realidade e pela tentação de transplantar as instituições de além-mar, Oliveira Vianna sugere que nessa sociedade de oligarquias "broncas", a democracia política constitui a grande ilusão. Seu aparato institucional pesado, lento, ineficiente e corrupto, não dá conta dos dinamismos e desafios do mundo moderno, sua subserviência ao sufrágio universal e aos partidos - que não passam de quadrilhas irmanadas contra o bem comum -, apenas entrega o Estado de pés e mãos atados aos interesses privatistas e aos coronéis, sua crença no poder local promove as curriolas e sumidades de aldeia. Seria importante, em conseqüência, retomar a obra centralizadora dos "reacionários audazes" do Império. Tratar-se-á de educar as elites, evitar a luta de classes, dar prioridade à construção da ordem sobre a liberdade, dar independência ao Judiciário, limitar as autonomias estaduais, organizar a população por meio de corporações, e construir uma sociedade civil (civilizada) por meio da ação racional de um novo Estado centralizado. E só depois - se é que haveria um depois! - admitir a democracia política. Paradoxalmente, vale aqui a boa ordem européia: só depois de garantida a liberdade civil é que deveríamos nos lançar à construção da política.

A predominância da autoridade sobre a liberdade resultaria também, e principalmente, da inorganicidade e atomização da sociedade: sem um Estado forte, tecnicamente qualificado, imune à partidocracia e à política dos políticos, capaz de subordinar o interesse privado ao social, controlar os efeitos diruptivos do individualismo possessivo, do mercado, etc., ambas não sobrevivem. Além disso, num território cuja geografia conspira contra a política, a nação só tem chance sobre os escombros da federação. Liberdade civil, unidade territorial e nacional garantida pela centralização político-administrativa, e Estado autocrático e pedagogo, eis o programa conservador.

Do lado liberal, trata-se de buscar, como na Nova Inglaterra, "o maior progresso de sociedade pela maior expansão da liberdade individual" (32), o que, no caso de país paradoxal como o nosso exige um projeto claro de reconstrução do Estado, sem o qual esta não se implementa. Todo o dilema tem a ver com a distinção entre centralização política e descentralização administrativa num país que sempre teve dificuldades em separá-las, com as relações que devem ser estabelecidas entre o poder central e os poderes provinciais a serem revigorados, entre as instituições eletivas e as nomeadas, entre um Legislativo soberano de um lado e um Executivo responsável de outro, com o papel que deve caber a um Judiciário forte numa ordem política encimada por um - explícito, como no Império, ou implícito, como em quase toda a República - Poder Moderador. Nesta ótica, a questão determinante é, pois, a da forma do governo, sem cuja resolução a democracia brasileira continuará um lamentável mal-entendido.

Tanto quanto os "idealistas orgânicos", o "idealismo constitucional" dos liberais afirma a centralidade do papel do Estado na formação social brasileira, com a radical diferença de que para os primeiros é o caráter inorgânico da sociedade que põe a necessidade de um Estado forte que a tutele e agregue, enquanto para os segundos, é a presença do Estado todo poderoso que sufoca a sociedade e a fragmenta. Aqui, a nefasta independência do Estado perante a sociedade civil - o nascimento do Estado antes da Sociedade Civil, seu predomínio abusivo, a fatalidade dos indivíduos e grupos sociais que vivem do e pelo Estado - parece ser não um resultado das condições de ocupação do território, da dispersão geográfica dos grupos humanos e das escolhas a contrapelo das elites políticas fundadoras do Império e da Segunda República, como entende a estratégia analítica dos organicistas, mas um pressuposto que se assenta na história interna da metrópole, na transmigração oceânica do Estado português e na reiteração severa e avara da cultura das origens (33).

Feito esse diagnóstico e a crítica do Estado brasileiro (e da cultura política cartorial que ele gera) do ponto de vista, digamos, da "sociedade civil" manietada, a estratégia constitucionalista - seja ela reformista como nos revoltosos mineiros e paulistas de 1842, federalista como em A Província, revolucionária, como na primeira edição de Os Donos do Poder, e mesmo radical conservadora como no programa de reformas neoliberais da década de 1990 (que evidentemente abandona vários preceitos do liberalismo clássico, como os que particularizam Tocqueville, Stuart Mill, Tavares Bastos ou Joaquim Nabuco) - está voltada para restringi-lo ao necessário para que a "autonomia" daquela sociedade se afirme, isto é, para que as dialéticas entre liberdade individual e associativismo, entre representação e opinião pública, entre interesse privado e nacional possam fluir - e a sociedade global possa, enfim, ser reconstruída.

O que faz a peculiaridade "idealista constitucional" dos liberais é, entretanto, e como notou Oliveira Vianna, a preocupação com as formas, a confiança no poder da palavra escrita, a crença em que a boa lei produziria a boa sociedade, a idéia segundo a qual os problemas do país são fundamentalmente políticos e institucionais, e só serão resolvidos por meio de reformas políticas, a insistência em que, na ausência destas, reformas econômicas e sociais não seriam possíveis ou não se sustentariam. Dito de forma positiva, a categoria chave da estratégia liberal é a da "construção institucional", historicamente cumulativa (34). Não cabe, por isso mesmo, aceitar a priori o adjetivo "utópico" que Oliveira Vianna (e uma longa tradição que apoda os liberais) pespega como sinônimo de "constitucional", não só por considerar que o utopismo não é prerrogativa destes, como também por supor que o "idealismo orgânico", hegemônico na maior parte da história política monarquista e republicana, não sobrevive aos próprios critérios que servem para condenar os "constitucionais": nas próprias palavras daquele autor, "a disparidade que há entre a grandeza e a impressionante euritmia de sua estrutura e a insignificância de seu rendimento efetivo" (35).

Coerente com os seus pressupostos, o liberalismo brasileiro - monarquista ou republicano - toma a questão da representação como decisiva, propõe o federalismo (eventualmente) e o parlamentarismo, reconhece a necessidade de um Executivo forte, defende a independência e o papel de árbitro constitucional do Judiciário, em cuja aristocracia deposita boa parte de suas esperanças de preservação da liberdade, e pensa a ação e a organização da vida política como um espaço cujo centro é o Parlamento, que deveria funcionar como uma espécie de tribunal, no qual a verdade ou o melhor resultado emerge por meio da exposição dos argumentos e réplicas, do choque agônico e não antagônico de interesses, e das prudentes composições entre as partes, todas supostamente livres e autônomas em relação ao mundo exterior, e movidas essencialmente pela preocupação em promover o bem público (36).

De todos esses aspectos, o federalismo talvez tenha sido o menos compartilhado. Não apenas a questão da representação, reconhecendo-se a estrutura unitária do Estado, pesa mais, como poucos intérpretes do Brasil se deixaram por ele empolgar. Esporadicamente, o federalismo se converteu em tema de pesquisa científica, como agora, impulsionado pela crise do Estado e do regime presidencialista, e pela guerra fiscal no quadro da Constituição de 1988. Entre os que pensaram o país, a grande exceção, é claro, é Tavares Bastos, e com ele, toda a corrente abolicionista - Nabuco, Rebouças, Ruy - que postulou uma monarquia federativa como forma de fazer a abolição e salvar a monarquia; derrota a qual não faltou a marca das tragédias pessoais (37). A opção mais radical talvez tenha sido a de Ruy, seja por ter percebido antes dos demais a incompatibilidade entre Monarquia e Federação, seja porque esta era mais importante do que a República, a ela aderindo somente quando se convenceu que a monarquia não a implantaria.

Se raro foi o federalismo como reflexão e ideologia, a federação "é um fenômeno do nosso passado todo", como disse Nabuco ao propor em 1885 a bandeira ao Partido Liberal e ver-se ridicularizado por este; por isso mesmo, ele esteve subjacente à política brasileira seja como aspiração autonomista (como em Frei Caneca ou nos Farrapos -38-), e até separatista (como em Alberto Salles, para quem a separação era o ponto de partida de um processo cujo fim era a federação -39-), de elites regionais, seja como instrumento de contenção do autoritarismo do Estado (como nas lutas anti-ditatoriais do século XX). De fato, ao lado do medo pânico diante das revoltas plebéias e pelo risco que poderia representar à preservação da escravidão, ele foi um dos fantasmas políticos por trás da opção dos pais fundadores pelo Estado unitário e centralizado, quando a geografia e a administração descentralizada dos séculos precedentes (pelo menos até a civilização das minas gerais e a experiência pombalina) apontavam noutra direção; opção tornada definitiva pelos "reacionários audazes" que trataram a pontapés as revoltas regenciais sempre que elas ameaçaram transbordar os limites do conflito intra-elites; e reinventada pelas políticas industrializantes - e pelas duas ditaduras - que moldaram boa parte do Brasil moderno.

O federalismo, entretanto, jamais foi via de mão única, seja porque abraçado por diferentes grupos sociais e interesses, seja porque o seu sentido - progressivo ou regressivo - variou segundo as conjunturas históricas, isto é, de acordo com a natureza dos problemas postos na ordem do dia. De qualquer maneira, seja conectada à orientação com a qual foi historicamente confundida - quando a defesa da descentralização ou da federação se confundia com os interesses das oligarquias regionais -, seja recuperada pelo que representa de promessa de pluralidade e de elemento de negação da via prussiana de desenvolvimento capitalista que acabou se efetivando, a bandeira federalista parece condenada a reencarnar ciclicamente, vale dizer, em toda conjuntura crítica que coloque em tela o contrato social, a reformulação do arranjo de poder do país. Talvez por isso mesmo, sua influência, ainda que débil, não tenha se limitado ao campo liberal estrito senso, tornando-se peça central, por exemplo, da reflexão de Celso Furtado, segundo Chico de Oliveira o único dos "intérpretes do Brasil" a levá-la a sério, ao arquitetar um "federalismo regionalizado cooperativo" como instrumento para impedir a exclusão do Nordeste e evitar a implosão da nação pela radicalização de suas disparidades internas; e da corrente comunista paulista do "poder local", que na década de 1960 e com base numa releitura do papel dos estados na Revolução de 1930 e no Golpe de 1964, confrontou o unitarismo e o antiliberalismo do prestismo e da esquerda que aderia à luta armada, propondo ao invés o longo caminho das instituições, isto é, uma estratégia eleitoral de cerco do poder central pela conquista de prefeituras dos centros metropolitanos e de governos dos principais estados (40).


Notas

(23) Neste ponto, a referência fundamental continua a ser E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987, vol 1, p. 9.
(24) Cf. Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Trad, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000, vol. 3, p. 82.
(25) Cf. a intervenção de Celso Furtado na mesa redonda "A Revolução de 30 em perspectiva: Estado, estrutura e poder e processo político", in A Revolução de 30: Seminário Internacional. Brasília: Editora da UnB, 1983, pp. 716-717. A citação completa é: "O controle de câmbio não surgiu de uma escolha e sim da necessidade de sobreviver face à brutal baixa da entrada de divisas. Ninguém queimou café por masoquismo e sim para reduzir os imensos gastos de armazenagem e a pressão dos estoques sobre o mercado internacional. Ninguém dirá que José Maria Whitaker, o ministro da Fazenda da época, tinha idéias econômicas diferentes das de Murtinho, como também não demonstrara tê-las Getúlio Vargas quando ocupara a pasta da Fazenda do governo Washington Luís. Evidentemente, as mentes menos dogmáticas, menos formadas ou deformadas pelas idéias ortodoxas sobre equilíbrio orçamentário, inflação etc., tenderam a prevalecer. Anos depois tive com Oswaldo Aranha uma conversa sobre esses acontecimentos e ele me observou: 'Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não sabia de nada'".
(26) No prefácio à Cultura e Sociedade no Brasil. Ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000, 2ª. ed. revista e ampliada, p. 9.
(27) Na "Introdução de 1857" à Crítica da Economia Política. In Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. Col. Os Pensadores, n. XXXV. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 131.
(28) Cf. Jean Ehrard, "Historia de las ideas e historia social em Francia em el siglo XVIII: reflexiones de método". In Louis Bergeron (org.), Niveles de Cultura y Grupos Sociales, México: Siglo XXI,1977, p. 181-184.
(29) Marx, op. cit. p. 110.
(30) Na sua conferência de 1942. Em Aspectos da Literatura Brasileira (1943). São Paulo: Livraria Martins Editora S. A., 1978, 6ª. ed., p. 8.
(31) Cf. "Ensaio sobre o Direito Administrativo" (1862). In Visconde de Uruguai. Org. e Introd. de José Murilo de Carvalho. Col. Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002. Além da apresentação de José Murilo, outra cuidadosa análise do pensamento do visconde pode ser encontrada em Gabriela Nunes Ferreira, Centralização e Descentralização no Império - O debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai, São Paulo: Editora 34/DCP-USP, 1999.
(32) A C. Tavares Bastos, Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro (1862). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, 2a. ed., pp. 31-32.
(33) Cf. Idem, ibidem, pp. 29s. No mesmo sentido, Os Donos do Poder, op. cit..
(34) Cf. Bolívar Lamounier, "Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira", in Rui Barbosa. Ensaio de Bolívar Lamounier e fotografias de Cristiano Mascaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
(35) Em O Idealismo da Constituição, op. cit., pp. 10-11; grafia atualizada. Nesse sentido, ver a nota "O fracasso dos conservadores", publicada em Política Democrática, Ano I, n. 1. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, jan./abr. de 2001
(36) A defesa clássica dessa forma de ver a política é, como se sabe, dessa figura complexa e contraditória que é Edmund Burke, em seu "Spech to the electors of Bristol" (1774), in Miscellaneous Writings, Select Works of Edmundo Burke, vol. 4, ed. Francis Canavan. Indianapolis: Liberty Fund, 1999. Talvez seja o caso do chamar a atenção para a similaridade com o modelo habermasiano. Cf., por exemplo, Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Para uma caracterização negativa do "governo pela discussão", ver Carl Schmitt, The Crisis of Parliamentary Democracy. Trad. Ellen Kennedy. Cambridge, MA: The MIT Press, 1992, 3a. ed.
(37) Sobre Tavares Bastos, cf. Walquíria G. Domingues Leão Rego, A Utopia Federalista. Estudo sobre o pensamento político de Tavares Bastos. Maceió: EDUFAL, 2002; e o livro de Gabriela Nunes Ferreira, já citado.
(38) Cf. Denis Antonio de Mendonça Bernardes, O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822. Tese de doutorado defendida no Departamento de História da USP, São Paulo, 2001. E Evaldo Cabral de Mello, A Outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. Moacyr Flores, Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, 2ª. ed. E Sandra Jatahy Pesavento. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1990, 3ª. ed. , entre outros.
(39) Cf. A Pátria Paulista (1887). Brasília: Editora da UnB, 1983. Influenciado por Spencer, Salles vê a federação não apenas como um arranjo artificial, uma construção política, como nos federalistas norte-americanos, mas como uma lei biológica que regula as complexas funções dos organismos. Ver, nesse sentido, o seu "Catecismo republicano" (1885), republicado como apêndice ao livro de Luiz Washington Vita, Alberto Sales - Ideólogo da República. Col. Brasiliana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, especialmente pp. 191-195.
(40) Cf. Francisco de Oliveira, A Navegação Venturosa. Ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo Editorial, pp. 80-81 passim. Sobre as concepções políticas de Celso Furtado, ver Vera Alves Cepêda, "O Pensamento político de Celso Furtado: desenvolvimento e democracia". In Luiz Carlos Bresser Pereira e José Márcio Rego (orgs.), A Grande Esperança em Celso Furtado - Ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo: Editora 34, 2001. Tratei da corrente comunista numa comunicação apresentada no XIII Encontro Anual da ANPOCS, em 1989, "O Poder Local: O PC às vésperas da cisão marighellista", mas a ela há referências nos livros de Moisés Vinhas, O Partidão - A Luta por um partido de massas. São Paulo: Hucitec, 1982, p. 241, e Fernando Perrone, Relatos de Guerras - Praga, São Paulo, Paris. São Paulo: Editora Busca Vida, 1988, p. 66.

(*) Gildo Marçal Brandão é colaborador de La Insignia e Gramsci e o Brasil, professor associado do Departamento de Ciência Política da USP e coordenador científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD-USP).



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