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19 de agosto de 2007

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Cultura

Brasil

Cine Paraíso


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, agosto de 2007.

Ilustração de RAL.

 

Os recifenses, como todos urbanos do Brasil, há muito se acostumaram com o avanço dos supermercados, que nos subúrbios tomaram o lugar das salas de cinema. No Recife, assim foi com o Coliseu, no bairro da Tamarineira, com o Império, em Água Fria, com o Olympia, no Arruda ... o avanço comeu e moveu os cines para o esquecimento em todos os subúrbios. Mas isto era um fenômeno periférico, porque se dava na periferia, a que dávamos de ombros. As boas salas de projeção estariam resguardadas no centro, guardar-se-iam no coração da cidade. Achávamos.

Achávamos, e no entanto achamos: o coração do Recife vem sendo assaltado, artéria por artéria, vestíbulo por vestíbulo. Como se fosse de repente, assim como na visão de algo que apesar de não ser novo ainda assim nos surpreende, descobrimos: o Cine Moderno, o Cine Trianon, o Cine Art Palácio, deixaram de ser cines. Poderia ser dito: "que fato mais comum, uma sala de cinema deixar de ser cine!". Mas o anormal aqui é exatamente o prosaico, o comum, que substitui o que antes era uma sala mágica, de encanto. Pois uma coisa é você passar ao largo de um cinema, vê-lo em seu lugar, com a sua conhecida fachada, e outra é você ir a seu interior, e ali receber a pancada de sua ausência.

O Trianon ganhou tapetes em sua calçada, mas em compensação virou casa das Lojas Vimael. Móveis, amontoado de móveis, que não deixam nem espaço para você ligar duas pontas, da imagem do que era para a imagem do que hoje você tem pela frente. "Pois não, o que deseja?", pergunta-nos um vendedor. Sentimo-nos estúpidos, sem possibilidade de resposta. O que dizer, "nada, eu só procuro uma pista do que foi o cinema" ? Sentimo-nos como se deve sentir um ET, ao baixar na terra disfarçado em terráqueo. Rumamos então para o Art Palácio.

O Art é um bingo. Já imunizados pelo efeito Trianon, isto até aceitamos. Um bingo, faz sentido. No cinema as pessoas entravam para se entreter com a ilusão de que havia gente a se mover na tela. No bingo as pessoas entram para se entreter com a ilusão de que a sua sorte pisca num número a se mover num telão. Numa tela, para ser mais preciso. Com efeito, no mesmo lugar onde se projetavam Butch Cassidy, Faye Dunaway e sua rajada de balas, agora números vermelhos aparecem e somem, ao som da voz de uma locutora, que anuncia números como quem anuncia embarques para lugares imaginários. "Trinta e seis, vinte e sete...". Faz sentido. As pessoas se concentram numa atividade rumo a coisa nenhuma. Rumemos então para o Moderno.

O Cine Moderno virou o próprio Cine Paraíso. A sua estrela é uma gorda que devora maçãs em todos os anúncios. Com boa vontade, concedamos: se num esforço descomunal você abstrair os eletrodomésticos, você conseguirá ainda ver o cinema. Mas a quantidade de televisores ligados, no palco onde ficava a tela, a multiplicidade de imagens nas telinhas, e uma imagem grande, definida, num telão de 46 polegadas, poderá deixá-lo como personagem de filme experimental dos anos 70. As telinhas são espelhos, que se refletem, onde a imagem que vem de você será multiplicada, até a difusão do seu próprio ser, onde uma voz semelhante à sua perguntará: - Onde está o primeiro andar do cinema? - Agora é um depósito, será a resposta. - Mudaram o piso, não foi?, tornaremos. - O piso foi nivelado. Esse prédio faz parte do Patrimônio Histórico. Nele só podem ser feitas pequenas reformas.

Então o nosso próprio ser volta à tona, na pergunta silenciada de viva voz: - não é precária uma preservação que só guarda os aspectos físicos de um edifício? E o uso que se fez dele ao longo dos tempos, a sua memória, a sua identidade enfim, não lhe diz respeito? Desrespeito, talvez. Ninguém jamais pensou em fazer uma Casa de Pagode de um convento franciscano. Já das cidades, e de seus cinemas, que importa? Em nome do chamado livre comércio, a cultura e a sensibilidade que se danem.

 

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