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La insignia
14 de junho de 2007


Linhagens do pensamento político brasileiro (I)


__La Insignia__
Diálogos
Gildo Marçal Brandão (*)
La Insignia, julho de 2007.



Nos últimos anos, um heterogêneo conjunto de pesquisadores, equipados com o instrumental analítico acumulado por décadas de ciência social institucionalizada, vem não apenas revisitando o ensaísmo dos anos 30, mas vasculhando a história intelectual do país e produzindo uma quantidade respeitável de análises, pesquisas empíricas e historiográficas, interpretações teóricas que têm contribuído para renovar nosso conhecimento dos padrões e dilemas fundamentais da sociedade e da política brasileiras. Esboçado em meados do século XX, tendo recebido notável impulso nos anos 70, este campo de estudo chegou à maturidade nos 90, constituindo-se num dos mais produtivos das ciências sociais. Com efeito, além da emergência ou renovação das disciplinas que investigam os fenômenos do viver em transição - como a violência urbana, a pluralização religiosa, a explosão do associativismo, as redefinições das relações de gênero e as raciais, as transformações do mundo do trabalho, a judicialização da política, o papel da mídia na formação da vontade política da população, a financeirização da economia, os novos equilíbrios nas relações internacionais, etc., etc. - uma das características mais salientes das ciências sociais que estamos fazendo é o crescimento e a diversificação desta área de pesquisa que vem sendo chamada, com maior ou menor propriedade, de "pensamento social" no Brasil ou de "pensamento político brasileiro".

Visto retrospectivamente, os seus contornos nunca foram muito claros: como se trata de uma área de fronteira, acolhendo orientações intelectuais provindas das diversas ciências humanas, o estudo do "pensamento político-social" se estabeleceu aqui, como em todo o mundo, no cruzamento de disciplinas tão variadas como a antropologia política e a sociologia da arte, a história da literatura e a história da ciência, a história das mentalidades e a sociologia dos intelectuais, a filosofia e teoria política e social e a história das idéias e das visões-de-mundo. Esta superposição - por vezes conflituosa na medida mesma da indiferenciação - talvez fosse inevitável no caso de país de capitalismo retardatário como o nosso, uma vez que o tratamento da literatura, da arte, da cultura e das ciências aqui praticadas acaba tendo uma importante dimensão política por força da relação urgente que se estabelece entre formação da cultura e formação da nação.

Como em todo lugar, muita coisa menor foi aí escrita, desde história das idéias que não passava de exposição monográfica das concepções de um autor sem a menor inquietação sobre a natureza da empreitada teórica e dos processos histórico-sociais dos quais - pensamento em pauta e forma de abordá-lo - são momento e expressão, até a pretensão de erigir a sociologia da vida intelectual ou a sociologia das instituições acadêmicas em sucedâneo da sociologia do conhecimento, de resolver o problema da qualidade e da capacidade cognitiva e propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província acadêmica onde ela surge. Isso sem falar nas tradicionais "explicações" de uma obra pela origem social do autor e nas moderníssimas reduções do conteúdo e da forma da produção intelectual às estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries.

Apesar disso, aquela diversidade favoreceu a acumulação de capital teórico e, de qualquer maneira, não impediu a cristalização de um campo intelectual diferenciado, que arrancava do reconhecimento de uma (rica) tradição de pensamento social e político no Brasil para fazer da reflexão sobre os seus "clássicos" - visconde de Uruguai, Tavares Bastos, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nestor Duarte, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Vítor Nunes Leal, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Celso Furtado, etc. - o instrumento para interpelar inusitadamente a sociedade e a história que os produz. Junto com a "expansão quantitativa da pós-graduação e a concomitante diversificação das formas institucionais que se operaram a partir de meados dos anos sessenta", a existência desta tradição, em boa medida "anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização deste século, e mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades", terá contribuído para a constituição e consolidação de uma Ciência Política relativamente autônoma no Brasil (1). A reflexão sobre o pensamento político e social revelou-se, entretanto, demasiada rebelde para ser tratada como mera pré-história ideológica a ser abandonada tão logo se tenha acesso à institucionalização acadêmica da disciplina científica. Demonstrou-se, ao contrário, um pressuposto capaz de ser continuamente reposto pelo evolver da ciência institucionalizada - como um índice da existência de um corpo de problemas e soluções intelectuais, de um estoque teórico e metodológico aos quais os autores são obrigados a se referir no enfrentamento das novas questões postas pelo desenvolvimento social, como um afiado instrumento de regulação de nosso mercado interno das idéias em suas trocas com o mercado mundial.

Parte desta rebeldia e capacidade de interpelação tem a ver, é claro, com a centralidade do papel dos "clássicos" - incluindo os "locais" - nas ciências sociais. Pode ser que resida aí alguma anomalia. Com efeito, numa pesquisa feita artesanalmente com um pequeno, mas sênior grupo de cientistas sociais, sobre quais seriam as obras e autores brasileiros mais importantes do século XX, as respostas indicaram não estudos teóricos ou empíricos executados segundo bons manuais metodológicos, mas Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), de Gilberto Freyre; Formação Econômica do Brasil (1954), de Celso Furtado; Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda; Coronelismo, Enxada e Voto (1948), de Vitor Nunes Leal; Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e Evolução Política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior; A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1952) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), e outros, de Florestan Fernandes; Populações Meridionais do Brasil (1920) e Instituições Políticas Brasileiras (1949), de Oliveira Vianna; e Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (2).

Tomando como padrão as ciências naturais - que progridem esquecendo os seus fundadores - e desconsiderando a natureza das ciências sociais - cujo trabalho, sob certo aspecto, se assemelha ao de Penélope, que para atingir seus fins necessita refazer o seu próprio caminho -, uma interpretação simplista não hesitaria em qualificar tal situação como resistência à adoção dos procedimentos metodológicos e técnicos que caracterizariam a verdadeira Ciência, indicação de quão atrasados estaríamos no terreno da profissionalização e institucionalização do saber. Fora desse sectarismo, no entanto, o que a lista evidencia é que historicistas e anti-historicistas, holistas e individualistas metodológicos, humanistas e cientificistas, aprendemos todos a pensar o país com aqueles pensadores. Esta realidade, parte ineliminável da experiência das gerações intelectuais dos 80 aos 21 anos, é por si só suficiente para tornar risível o dar de ombros com que por vezes se os considera - como alquimistas diante dos químicos, como literatura para deleite dominical do espírito, como relevantes tão somente do ponto de vista da história da ciência. Apesar do caráter datado de muitas de suas proposições teóricas e bases empíricas, o fato é que continuam a ser lidos como testemunhas do passado e como fontes de problemas, conceitos, hipóteses e argumentos para a investigação científica do presente (3).

Nesse sentido, os pesquisadores que aceitaram o desafio de se movimentar nessa zona de fronteira, reconheceram cedo a força da "forma narrativa específica" - o ensaio histórico sobre a formação nacional - que a tradição gerou e, ao mesmo tempo, a necessidade de submeter textos e realidades pesquisadas ao tratamento e controle sistemáticos, segundo os métodos de investigação especializada (4). Como reflexão, a pesquisa sobre o pensamento político-social prolonga uma tradição que se foi acumulando desde, pelo menos, as décadas de 60 e 70 do século XIX, cujo exemplo conspícuo talvez seja a tentativa - sabidamente complicada, mas pertinente - de Sílvio Romero, em um momento de virada e esgotamento de um mundo, de pôr ordem na casa e verificar a evolução da literatura em função da evolução do país (5). Como espécie acadêmica, entretanto, ela ganhou autonomia em relação aos estudos literários apenas nos anos 50 do século XX, quando se torna agudo o debate sobre os rumos a dar ao desenvolvimento econômico, a universidade se consolida, o modernismo se rotiniza, a sociologia desbanca a literatura como forma dominante de reflexão sobre a sociedade, e a direção intelectual e moral até então exercida pelo pensamento católico se vê derrotada por uma variedade de correntes que têm em comum o materialismo e o laicismo. Definiu ou renovou alguns de seus principais esquemas interpretativos na década de 70, quando se torna evidente que a associação "necessária" entre industrialização e democracia não passava de "equação otimista" (6), a investigação sobre a natureza do Estado se impõe, o exame das bases conceituais do autoritarismo - formuladas em grande estilo no início da era Vargas - vem para primeiro plano, e a universidade vai deixando de sofrer a competição de agências produtoras de idéias como as instituições e os partidos programáticos da velha esquerda. E sai da periferia para a cidadania intelectual plena apenas no final do século, quando a exaustão do Estado nacional-desenvolvimentista se manifesta por todos os poros, a especialização exacerba a fragmentação do mundo intelectual, a sociedade se vê diante do imperativo de reformular suas instituições e redefinir seu lugar no mundo; e uma comunidade acadêmica consciente de sua própria força pode, enfim, confessar suas dívidas intelectuais para com os ensaístas.

Parece haver, portanto, uma íntima relação entre o caráter cíclico do interesse por aqueles "intérpretes do Brasil" e a dinâmica histórica e cultural da política brasileira, ou mais especificamente, alguma conexão de sentido entre essa explosão intelectual e a conjunção crítica - mudança global e, sob certo aspecto, concentrada no tempo, que está forçando a reorganização das esferas da nossa existência e a reformulação dos quadros mentais que até agora esquematizavam nosso saber (7) - que estamos vivendo, apenas comparável aos períodos abertos pela Abolição e pela Revolução de 30. Tudo se passa como se o esforço de "pensar o pensamento" se acendesse nos momentos em que nossa má formação fica mais clara e a nação e sua intelectualidade se vêem constrangidas a refazer espiritualmente o caminho percorrido antes de embarcar numa nova aventura - para declinar ou submergir em seguida. Talvez não seja excessivo usar aqui a metáfora da coruja de Minerva, que só alça vôo ao anoitecer - não por acaso, e ao contrário da imagem costumeira, aquela "forma narrativa" que a tradição consolidou está longe de ser um fenômeno de juventude, é um gênero da maturidade, supondo acumulação intelectual prévia e refinamento estilístico -, mas nesse caso conviria levá-la até o fim e reconhecer que se não há como ter "perspectiva adequada sobre a época atual sem recolhermos a exemplaridade dessa herança" (8), a reflexão sobre o pensamento político, totalizante por natureza, pode também vislumbrar sinais do novo mundo.

Dada tal acumulação teórica - e talvez porque além de lutar para produzir "transparência sobre o real", aspire a ser "parte constitutiva dele" (9) -, o (estudo do) pensamento político-social foi capaz de formular ou de discriminar na evolução política e ideológica brasileira a existência de "estilos" determinados, formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada, estabelecendo problemáticas e continuidades que permitem situar e pôr sob nova luz muita proposta política e muita análise científica atual. Também aqui, como em outras partes do mundo, o esclarecimento das lutas espirituais do passado acaba se revelando um pressuposto necessário à proposição de estratégias políticas para o presente.


Pressupostos, hipóteses

O que me interessa, pois, é investigar a existência destas "famílias intelectuais" no Brasil, reconhecer suas principais características formais e escavar sua genealogia. Verificar em que medida os conceitos de "idealismo orgânico" e "idealismo constitucional", formulados originariamente por Oliveira Vianna (10), são capazes - desde, é claro, que trabalhados de modo a neutralizar suas petições de princípio e a esvaziar o que contém de justificação ideológica de um projeto de monopólio de poder e de saber - de descrever e analisar as principais "formas de pensamento" que do último quartel do século XIX para cá dominaram o pensamento social e político brasileiro. Em seguida, circunscrever aquelas que no processo de naturalização do Brasil industrial se esboçaram na contramão e, malgrado suas debilidades, constituíram as primeiras concepções anti-aristocráticas do país, fornecendo os lineamentos gerais de todas as reformas sociais e econômicas propostas até a ascensão do neoliberalismo - como o "pensamento radical de classe média" e o "marxismo de matriz comunista" (11), estes frutos legítimos da "nossa revolução". E formular, por fim, uma hipótese sobre o modo como essas correntes responderam aos desafios postos pelo desenvolvimento histórico-político do país. Sem deixar de examinar o conteúdo substantivo das ideologias e visões-de-mundo, a ênfase analítica será posta na descrição das "formas de pensar" subjacentes - estruturas intelectuais e categorias teóricas, a partir das quais a realidade é percebida, a experiência prática elaborada e a ação política organizada. Mapear estruturas intelectuais que se cristalizam historicamente como a priori analíticos, e ver como se articulam com a perspectiva política mobilizada - eis o núcleo do trabalho.

Centrada no exame dos principais textos e conceitos que materializam tais formas de pensar, a discussão, logo se vê, não se reduz à enésima leitura de autores ou contextos irremediavelmente passados. Aceitemos por um momento, para efeito de argumentação, as premissas skinnerianas segundo as quais o historiador intelectual não deve se preocupar com a validade ou o significado presente das idéias passadas, pois ao lidar com respostas particulares a problemas epocais particulares, a história das idéias e das teorias políticas o faria de tal modo que o significado dos conceitos formulados no passado não teria vida independente fora do contexto em que foi produzido, não poderia ser transportado para o presente senão ilegitimamente (12) - com a conseqüente suposição da incomensurabilidade entre os tempos e a rígida separação entre explicação e interpretação, entre teoria e história, que elas acarretam. Ainda assim seria possível assumir como pressuposto que durante o período abordado por este estudo houve profundas mudanças, mas nenhuma mutação ontológica radical de uma inteira constelação histórica; as modificações cíclicas ocorridas, o aparecimento de novas concepções, teorias e interpretações em resposta aos problemas postos pelo desenvolvimento social, não alteraram ou não esgotaram a estrutura básica da realidade sobre a qual nossos autores refletem.

Por outro lado, o argumento de Skinner comporta dois momentos que deveriam ser tratados separadamente: ele deriva da tese segundo a qual idéias e teorias só se explicam pelo contexto (lingüístico) no qual se inserem a conseqüência de que deve ser recusada toda interpretação que ultrapasse esse estrito significado histórico (ou historista?). O primeiro raciocínio leva a uma crítica feroz e consistente aos anacronismos, especialmente ao modo usual de tratar os grandes textos do pensamento político esvaziando-os de historicidade, como se fossem todos, "contribuições" a alguma espécie de theoria ou de philosophia perennis. O segundo acaba levando à cisão entre teoria e história, entre o momento histórico e o sistemático no tratamento das idéias e da compreensão de um texto, bloqueia qualquer relação entre os interesses teóricos contemporâneos e as pesquisas sobre o significado dos textos históricos (13).

Do ponto de vista aqui explorado, ao contrário, não apenas o objeto a ser investigado não é uma preciosidade arqueológica, mas também sua exposição não pode ser dissociada do debate contemporâneo que lhe é momento e parte constitutiva. Nessa condição, não há como não confrontar leituras distintas do pensamento político-social brasileiro, especialmente os principais modelos de interpretação formulados nas últimas décadas, ao mesmo tempo verificando em que medida há continuidade ou ruptura entre as formulações clássicas dos convencionalmente denominados "intérpretes do Brasil" e o trabalho intelectual que vem sendo produzido na universidade segundo os métodos de investigação especializada. Na verdade, se uma das particularidades do estudo do pensamento político é que ele aspira a ser parte constitutiva do objeto estudado, então, no exame de suas grandes obras a referência àquelas leituras "deve operar aí como elemento de controle e, em vários momentos, como dimensão polêmica contra as análises que buscam entender um pensamento coerente e original a partir de seu exterior" (14). Mas também como elemento de comprovação das hipóteses a seguir sugeridas, na medida em que originais e exegeses confluem para a formação do mesmo campo, cujos impactos político-culturais serão intercambiáveis, mais do que análogos; acabam por formar, em conjunto, a "tradição", as exegeses prolongando-a, reinterpretando-a, renovando-a e, no limite, reinventando-a. Invertido o olhar, a tradição - e com ela, as formas de pensar que discrimina - persiste(m) nessas releituras que, por sua vez, interpelam as obras e os conceitos a partir de agendas e circunstâncias em parte inusitadas, impondo novos recortes e combinações.

Posto isso, assumo como pressuposto que nenhuma grande constelação de idéias pode ser compreendida sem levar em conta os problemas históricos aos quais tenta dar respostas e sem atentar para as formas específicas em que é formulada e discutida; ao mesmo tempo, que nenhuma grande constelação de idéias pode ser inteiramente resolvida em seu contexto (15). Nessa direção, eis as principais hipóteses que pretendo investigar. A primeira delas é se é possível - sem prejuízo de suas mediações internacionais e sem deixar de atentar seja para a especificidade teórica de cada um desses autores, seja para a diversidade de contextos históricos nos quais eles atuam - situar o liberalismo atual numa linha de continuidade que vem do diagnóstico de Tavares Bastos sobre o caráter asiático e parasitário que o Estado colonial herdou da metrópole portuguesa, passa pela tese de Raymundo Faoro segundo a qual o problema é a permanência de um estamento burocrático-patrimonial que foi capaz de se reproduzir secularmente, e desemboca, como sugere Simon Schwartzman e outros "americanistas", na proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição "ibérica" e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e "delegação" (16).

Da mesma forma, sugiro que podemos ver no conceito de "formalismo", com sua discrepância entre norma e conduta e com sua presunção de estratégia de mudança induzida numa sociedade razoavelmente desarticulada, e na distinção entre "hipercorreção" e "pragmatismo crítico", propostos por Guerreiro Ramos nos anos 60, e nos trabalhos realizados por Wanderley Guilherme dos Santos sobre a práxis liberal e Bolívar Lamounier sobre o pensamento autoritário, na virada dos anos 80, tanto marcos desse interesse acadêmico pela história intelectual brasileira como momentos eles próprios de reconstrução das orientações ideais de correntes ideológicas socialmente enraizadas. Assim, enquanto os conceitos de "formalismo" e "autoritarismo instrumental" configuravam versões espiritualizadas e "axiologicamente neutras" da crítica saquarema ao suposto utopismo dos liberais, a crítica à "ideologia de Estado" acentuava a contraposição entre as propostas de organização da sociedade a partir do Estado ou do Mercado, de modo a recuperar a preocupação com a engenharia institucional dos "idealistas constitucionais". Enquanto os dois primeiros renovavam pela esquerda o "idealismo orgânico" de visconde de Uruguai e de Oliveira Vianna, o terceiro retomava implicitamente Tavares Bastos e Ruy Barbosa, pelo menos ao privilegiar a questão da forma de governo e ao considerar que as reformas políticas e somente elas seriam capazes de tornar representativa a democracia e desobstruir o caminho para as reformas econômicas e sociais (17). No mesmo sentido, não será surpresa constatar que, sem deixar de representar um notável esforço de absorção dos "avanços metodológicos" da ciência social internacional, os (a maioria dos) trabalhos mais importantes que foram publicados no país nas últimas décadas sobre eleições, partidos e sistemas partidários, governo, instituições e políticas públicas, podem ser enquadrados em uma ou em outra orientação. Uma vez situados, torna-se mais inteligível o modo como cada autor e cada corrente responde aos desafios da "nossa revolução", posiciona-se diante da agenda política do dia, expressa tendências sociais - e não apenas acadêmicas ou individuais - de longa duração, luta para ganhar a opinião pública e dirigir intelectual e moralmente a ação de grandes grupos sociais.

Estabelecidas tais hipóteses principais, convém reconhecer não apenas que tais constelações predominaram ou decaíram alternativamente ao longo do tempo, mas principalmente que os anos 1950 representam um notável ponto de inflexão nesse processo de gestação, ou cristalização, das formas de pensar. Neles ocorre tanto a rotinização das "inovações tecnológicas" do pensamento social dos anos 1930 (redescoberta do Brasil, absorção da sociologia como método de abordagem da realidade, reflexão sobre a natureza e a estrutura do Estado, reconhecimento da questão social, etc.), como uma mudança profunda de ênfase, estilo e problemáticas intelectuais, derivada em parte da emergência e consolidação da universidade como principal lócus da produção intelectual, e marcada dessa vez não apenas pela construção do Estado, mas pela emergência da sociedade e de sua transformação como problema. Nesses termos, a idéia-força, organizadora do campo intelectual, é a do desenvolvimento, e a questão subjacente é a da democracia. Prefigurado quando a necessidade de modernização do Estado ocupava o primeiro plano, o problema teórico da estrutura e dinâmica da sociedade tal como se está constituindo torna-se determinante e logo, projetos distintos, aliados e opostos de "superação do atraso" lutam para imprimir à mudança social, direção. Este é um momento em que não apenas novos sujeitos sociais e políticos emergem como é mais discernível a relação - continuidade e descontinuidade - entre novos e velhos atores (intelectuais tanto quanto políticos). Nesse processo, como observei lá atrás, a capacidade de direção intelectual e moral do catolicismo vive os seus estertores, a literatura atinge o seu apogeu e declínio como matriz do modo de ser do intelectual brasileiro, o discurso culturalista perde fôlego e a sociologia - que à diferença dos anos 1930, incorpora a economia política e é produzida academicamente - se torna a principal forma de intelecção da realidade.

Ora, essa notável mutação social e intelectual não afeta apenas as formas de pensar predominantes. Embora "idealismo orgânico" e "idealismo constitucional" sejam as mais antigas e permanentes, não são obviamente as únicas existentes: qualquer exame do conjunto do desenvolvimento intelectual e ideológico não poderá ignorar aquelas socialmente minoritárias - embora intelectualmente influentes - e marcadamente anti-aristocráticas, que só podiam ter sido produzidas numa sociedade revolvida pela urbanização e pela industrialização.

Na entrevista em que apresenta a hipótese da existência de um "pensamento radical de classe média", Antonio Candido sugere que ele envolveu a maior parte dos socialistas e comunistas e se cristalizou a partir dos anos 1940, 1950, especialmente na Universidade de São Paulo e a despeito da intenção elitista de seus fundadores (18). Contra os que cobravam a "revolução", Candido acrescenta que o interesse maior da constelação ideológica estava em "favorecer um pensamento radical, e não assumir (uma impossível) posição revolucionária", o que teria representado enorme avanço diante do "grosso do pensamento (que) era maciçamente conservador, e não raro reacionário". Poderia acrescentar: a despeito do papel desempenhado por aquela universidade - bastante explorado pela literatura, que apontou também a derrota de projeto acadêmico similar no Rio de Janeiro (19)-, o fenômeno estava longe de ser estadual e mesmo regional. Se for assim, talvez seja possível reconhecer a centralidade de Sérgio Buarque de Holanda e recortá-lo de modo a encontrar identidades entre autores tão díspares como Manuel Bonfim, Nestor Duarte, Vitor Nunes Leal, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. E talvez não seja exagerado caracterizar esse pensamento democrático como socializante, quase sempre socialista, de matriz liberal, por vezes constitucionalista. Cabe, por isso mesmo, diferenciá-lo do que em outro lugar denominei de "marxismo de matriz comunista", o qual, em um país que não primava pela existência de quadros e de ensino técnico e científico de qualidade, configurou-se, com a precariedade conhecida, como a "única grande escola de ciências sociais de que o país dispôs nas últimas décadas" (20); e, pelo menos a partir da segunda metade dos anos 1950 e em sua vertente "positiva", reconheceu que o processo brasileiro permitiria compatibilizar desenvolvimento do capitalismo e democracia política, recusou qualquer concepção "explosiva" da revolução e também apostou na "revolução dentro da ordem" comandada por uma frente ampla das forças sociais modernas que a "nossa revolução" havia gerado. Além disso, enquanto algum tipo de pluralismo causal marca a primeira, o que caracteriza a segunda, do ponto de vista analítico, é sempre a busca, bem ou mal sucedida, de encontrar a unidade entre, digamos, a infra e a superestrutura na explicação do social (21).

Tomadas em conjunto, tais formas de pensamento não foram ou nem sempre são necessariamente excludentes entre si: como fenômenos sociais e ideológicos se interpenetram e se influenciam reciprocamente. Por outro lado, é claro que outros recortes são possíveis. Nem todos os "pensadores político-sociais" se enquadram nesta ou naquela linhagem, em vários convivem almas contrapostas e nem sempre a proclamada é a real; e como ocorre em toda família, por vezes os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que um Montecchio se apaixone por uma Capuleto. Sem falar que há sempre figuras marginais, independentes ou bizarras. Mas é aí, felizmente, que está a beleza da análise concreta. Podemos ver em situações como estas misturas menos ou mais consistentes de "ética" de esquerda com "epistemologias" de direita, e vice-versa, polarizações ambíguas ou conciliações produtivas, sublimes coerências ou ecletismos mal temperados, mas o importante é não transformar as "afinidades eletivas" entre idealismo orgânico e conservadorismo, entre idealismo constitucional e liberalismo, entre materialismo histórico e socialismo, em vias de mão única, relações de causa e efeito ou homologias entre ideologias e posições políticas - até porque toda concepção de mundo é um campo de forças, mantém relações e ramificações em vários grupos sociais e manifestações espirituais, supõe uma direita, uma esquerda e um centro, comporta teorias e interpretações diferentes, de modo que alianças intelectuais entre pensadores politicamente distantes, mas próximos pela forma de pensar, são possíveis. Como diz Michel Löwy, a afinidade eletiva:

"não é a afinidade ideológica inerente às diversas variantes de uma mesma corrente social e cultural (por exemplo, entre liberalismo econômico e político, entre socialismo e igualitarismo etc.). A eleição, a escolha recíproca implicam uma distância prévia, uma carência espiritual que deve ser preenchida, uma certa heterogeneidade ideológica. Por outro lado, a Wahlverwandtschaft não é de maneira alguma idêntica a "correlação", termo vago que designa simplesmente a existência de um vínculo entre dois fenômenos distintos: indica um tipo preciso de relação significativa que nada tem em comum (por exemplo) com a correlação estatística entre crescimento econômico e declínio demográfico. A afinidade eletiva também não é sinônimo de "influência", na medida em que implica uma relação bem mais ativa e uma articulação recíproca (podendo chegar à fusão). É um conceito que nos permite justificar processos de interação que não dependem nem da causalidade direta, nem da relação "expressiva" entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como "expressão" de um conteúdo político e social)." (22)


Notas

(1) Conforme Bolívar Lamounier, "A Ciência Política no Brasil: roteiro para um balanço crítico", in Bolívar Lamounier (org.), A Ciência Política nos Anos 80, Brasília, Editora da UnB, 1982, p. 407.
(2) Cf. Simon Schwartzman, "As ciências sociais brasileiras no século XX", nov. 1999 (mimeo.). O autor esclarece que a amostragem usada, restrita a lista dos cientistas sociais com os quais se corresponde pela Internet, foi de 49 intelectuais, dos quais 10 são sociólogos, 13 cientistas políticos, 14 economistas, 6 antropólogos, alguns historiadores e gente proveniente das áreas de direito, filosofia e administração. Citado como um dos mais influentes, o livro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1970), não teria sido reconhecido como de mérito equivalente aos demais.
(3) É de justiça lembrar que foi Wanderley Guilherme dos Santos quem primeiro e mais energicamente reagiu contra a tentativa de transformar divisão acadêmica do trabalho intelectual em critério de verdade, no exato momento em que tal perspectiva começava a se tornar hegemônica. Por mais reparos que se possa fazer à sua crítica da periodização da história do pensamento político brasileiro pelas etapas de institucionalização da atividade científico-social, sua reação não só criou um nicho para todos que recusavam o cientificismo - que tinha o seu momento de verdade como arma de combate contra o diletantismo intelectual - como contribuiu para legitimar na universidade o trabalho com história das idéias, ao recusar-se a vê-las como variável dependente das instituições. Cf. seus artigos "Preliminares de uma controvérsia metodológica", in Revista Civilização Brasileira, n. 5-6. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, março de 1966; "A imaginação político-social brasileira", in Dados, n. 2/3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1967; e "Raízes da imaginação política brasileira", in Dados, n. 7. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1970. Também o termo "pensamento político-social", que a rigor seria mais adequado para caracterizar a natureza da reflexão, foi apresentado por ele e recentemente reafirmado em seu Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro (1870-1965). Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Editora da UFMG e Casa de Oswaldo Cruz, 2002.
(4) Cf. A expressão é de Bolívar Lamounier, op. cit., p. 411. Sem esquecer o papel pioneiro do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em quase todos esses pontos, não dá para deixar de assinalar que o projeto da Cadeira de Política da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, dirigida por Lourival Gomes Machado até os anos 1960, recusava a separação entre explicação sociológica e explicação histórica - cerne do projeto do Florestan Fernandes dos anos 1950 e de sua desconfiança para com a história das idéias e a tradição do ensaio histórico à qual se renderia nos anos 70 -, e privilegiava: a) a interpelação dos clássicos da teoria política, de Maquiavel a Marx e a Weber, como se depreende do programa de traduções e das teses do próprio Lourival Gomes Machado sobre Rousseau, Célia Galvão Quirino sobre Tocqueville, Oliveiros S. Ferreira sobre Gramsci, a edição de alguns dos melhores comentadores dos pensadores políticos clássicos, feita por Célia Quirino e Maria Teresa Sadek, e a coletânea tardia organizada com preocupações didáticas por Francisco C. Weffort sobre os clássicos da política; b) a história das instituições políticas, especialmente as brasileiras, abarcando desde as investigações de Paula Beiguelman sobre a formação política do país até as teorias de Weffort sobre o sindicalismo populista e a especificidade da "democracia populista" vis-à-vis a "representativa", das pesquisas eleitorais de Oliveiros S. Ferreira aos estudos de Maria do Carmo Campello de Souza sobre a evolução dos sistemas partidários na república e de Eduardo Kugelmas sobre a difícil hegemonia de São Paulo na Primeira República; e c) a história do pensamento político brasileiro e mesmo latino-americano, incluindo os estudos de Gomes Machado sobre o jusnaturalismo de Tomás Antonio Gonzaga e sobre a ligação entre o barroco e o Absolutismo, de Célia Galvão Quirino sobre a administração colonial e sobre o papel da maçonaria na Independência, de Paula Beiguelman sobre a teoria política do Império, de Oliveiros S. Ferreira sobre Haya de la Torre, etc. Cf. o artigo de Célia Galvão Quirino, "Departamento de Ciência Política" no n. 32, vol. 8 de Estudos Avançados (São Paulo: IEA-USP, set./dez. 1994), comemorativo dos 60 anos da Faculdade. Deve-se a Lourival Gomes Machado, também, a introdução, na segunda metade dos anos 1950, da disciplina "Instituições Políticas Brasileiras", até então, salvo engano, inexistente no currículo dos cursos de ciências sociais. Tudo somado, e sem negar a hegemonia da sociologia naqueles anos, permite relativizar a idéia de que a ciência política no Brasil é uma invenção dos anos 80 ou algo que tem uma pré-história nos anos 30 e 50 e depois o silêncio antes do fiat lux pronunciado pelos heróis fundadores que estudaram nas universidades norte-americanas ou foram financiados pela Fundação Ford.
(5) Cf. a "Introdução" de Antonio Cândido à coletânea de textos Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro/ São Paulo: Livros Técnicos e Científicos/ EDUSP, 1978
(6) O diagnóstico é de muitos, a expressão, salvo engano, é de Guillermo O'Donnel, "Democracia e desenvolvimento econômico-social: alguns problemas metodológicos e conseqüentes resultados espúrios". In Cândido Mendes (org.), Crise e Mudança Social. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca Ltda., 1974.
(7) Sobre o conceito de critical junctures, ver, entre outros, Kurt von Mettenheim, "Conjunções críticas da democratização: as implicações da Filosofia da História de Hegel para uma análise histórica comparativa". In Célia Galvão Quirino, Cláudio Vouga e Gildo Marçal Brandão (orgs.), Clássicos do Pensamento Político. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004, 2a. ed. rev.
(8) Francisco C. Weffort, A Cultura e as Revoluções da Modernização. Col. Cadernos do Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Edições Fundo Nacional de Cultura, 2000, p. 19.
(9) Luiz Werneck Vianna, "A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa", em A Revolução Passiva - Iberismo e americanismo no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Revan/IUPERJ, 1997, p. 213
(10) De maneira mais sistemática em O Idealismo da Constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, 2a. ed. aumentada.
(11) Cf. Para a primeira, a entrevista de Antonio Candido à revista Trans/form/ação, do Departamento de Filosofia da UNESP-Assis, em 1974, parcialmente republicada em Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Para a segunda, o meu A Esquerda Positiva (As duas almas do Partido Comunista - 1920/1964). São Paulo: Hucitec, 1997, especialmente o último capítulo, em que analiso o impacto cultural e ideológico do que chamei de marxismo de matriz comunista e exploro observações feitas originariamente por Caio Prado Júnior (A Revolução Brasileira (1966). São Paulo: Editora Brasiliense, 1977, 5ª. ed., p. 29), Darcy Ribeiro (O Dilema da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1929, 2ª. ed., p. 201) e Fernando Pedreira (Março 31 - Civis e Militares no Processo da Crise Brasileira. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1964, pp. 176-177).
(12) Cf. Quentin Skinner, "Meaning and understandings in the history of ideas". In James Tully (ed.), Meaning and Context. Quentin Skinner and his critics. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1988, pp. 29-67.
(13) Ver, nesse sentido, a crítica de Jeffrey C. Alexander em "A importância dos clássicos". In Anthony Giddens e Jonathan Turner (orgs.), Teoria Social Hoje. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo, Editora UNESP, 1999.
(14) Aproveito, em função de meu objetivo, regra hermenêutica que Gabriel Cohn formulou em outro contexto. Cf. Crítica e Resignação. Fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979, pp. XIII-XIV.
(15) Cf. Joseph V. Femia, "A historicist critique of 'revisionist' methods for studying the history of ideas". In James Tully (ed.), Meaning and Context. Quentin Skinner and his critics, op. cit. Embora não desenvolva o argumento, o leitor perceberá que aqui também se recusa outra premissa fundamental do contextualismo lingüístico, aquela segundo a qual o sentido de uma obra só pode ser estabelecido correlacionando-o com as intenções manifestas pelo autor. Não só tal intencionalidade poderia ser tranqüilamente reconstituída como toda interpretação só pode ser válida se compatível com ela, e de um modo que poderia ser aceito pelo próprio autor - o que na verdade supõe uma confiança irrestrita na transparência do mundo social. Sem querer simplificar demais, quem sabe uma boa olhada no capítulo sobre o fetichismo da mercadoria de O Capital ajude a matizar a questão.
(16) No mesmo sentido, os trabalhos de Werneck Vianna, especialmente "Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos", in A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil, op. cit., e "Weber e a interpretação do Brasil", in Novos Estudos Cebrap, n. 53. São Paulo: Cebrap, 2002. Salvo engano, um dos primeiros a reconhecer linhagens intelectuais desse tipo foi Guerreiro Ramos em seus textos dos anos 1950, mas elas só foram realmente mapeadas a partir dos estudos de Paula Beiguelman, Roque Spencer Maciel de Barros, Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier, Luiz Werneck Vianna, José Murilo de Carvalho e outros. Em todos esses casos - na verdade, na maioria dos trabalhos sobre pensamento político-social no Brasil -, pesou a influência direta ou indireta dos esquemas de Karl Mannheim, especialmente os de Ideologia e Utopia e o estudo sobre o pensamento conservador. Evidentemente, cada um distingue e explica a seu modo o que considera essencial e acidental, central e periférico, o continente e as ilhas, etc., mas os contornos gerais do território foram razoavelmente estabelecidos. As referências feitas acima são a: A C. Tavares Bastos, A Província - estudo sobre a descentralização no Brasil (1870). Apres. Arthur Cezar Ferreira Reis. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, 3ª. ed.; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder - Formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1958 (2a. ed. ampliada: 1973); Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional. São Paulo: Difel, 1975 (2a. ed. reformulada: Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982).
(17) Cf. Guerreiro Ramos, "O formalismo, no Brasil, como estratégia para mudança social", in Administração e Contexto Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983, 2a. ed., e "A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980", in A Revolução de 30 - Seminário Internacional. Brasília: Editora da UnB, 1983; Wanderley Guilherme dos Santos, Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978; Bolívar Lamounier, "Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação", in Boris Fausto (org.), História Geral da Civilização Brasileira - T. III. O Brasil Republicano, 2o. vol., cap. 10, São Paulo: Difel, 1985, 3a. ed., e "Representação política: a importância de certos formalismos", in Bolívar Lamounier, Francisco C. Weffort e Maria Victória Benevides (orgs.), Direito Cidadania e Participação. São Paulo: T. A Queiroz, 1981.
(18) Cf. nota 11.
(19) Cf. Sérgio Miceli (org.), História das Ciências Sociais no Brasil, vol. 1. São Paulo: Editora Sumaré, 2001, 2ª. ed. revista e corrigida, especialmente os artigos de Miceli, "Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais", e de Maria Hermínia Tavares de Almeida, "Dilemas da institucionalização das ciências sociais no Rio de Janeiro".
(20) O juízo é de Fernando Pedreira, Março 31 - Civis e Militares no Processo da Crise Brasileira, Op. cit., pp. 176-177.
(21) A economia do texto não permitirá, adiante, aprofundar estas últimas caracterizações, que serão melhor trabalhadas em outra ocasião.
(22) Em Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa central (um estudo de afinidade eletiva). Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 18. Os sublinhados são do próprio autor. Löwy extrai as coordenadas do conceito em Goethe e Weber, mas o uso que dele faz para a história intelectual ultrapassa largamente suas fontes. A idéia da mistura tão encontradiça entre ética de "esquerda" e epistemologia de "direita" foi formulada com ânimo polêmico por Georg Lukács no prefácio de 1962 à reedição de A Teoria do Romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 17.

(*) Gildo Marçal Brandão é colaborador de La Insignia e Gramsci e o Brasil, professor associado do Departamento de Ciência Política da USP e coordenador científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD-USP).



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