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La insignia
24 de setembro de 2002


A baiana


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Zanoni Carvalho da Silva
La Insignia. Brasil, setembro de 2002.


Finalmente, por pura coincidência, naquela tarde do dia de finados, ele conseguiu retornar, após várias e fracassadas tentativas, ao relato que vinha, aos trancos e barrancos, fazendo sobre o seu falecido amigo. Começou, então, a contar mais uma de suas aventuras.

Em 1963 eu e meu amigo estudávamos no único colégio público de Água Fria. Nós, os estudantes, promovíamos uma certa agitação cultural que dava alguma vida àquele colégio de subúrbio. Particularmente, lembro-me que havia o grêmio estudantil, debates, júris simulados e dois jornais: "A voz do Estudante", do qual faziam parte os "intelectuais". Dele, ao que me lembre, saiu um único número. O outro jornal, "A Tocha", "pertencia" a um pessoal bem mais pragmático. Esse pessoal era tão pragmático que, mesmo conseguindo patrocinadores, do jornal saiu apenas o eloqüente e significativo slogan "O que os outros jornais não trazem, a tocha traz". Até hoje não se sabe ao certo o que o tesoureiro fez com o dinheiro dos anunciantes. Mas isto é outra história.

Pois bem, é neste ambiente, nesta efervescência cultural que formamos um certo grupo e íamos ao cinema de arte Coliseu, em Casa Amarela, íamos ao teatro, quando o espetáculo era grátis, discutíamos matemática, física, literatura, jogávamos xadrez, disputávamos o conhecimento do significado das palavras, ouvíamos Noel, Pixinguinha, Lupicínio, Chico, Nara, Edu, Betânia, Caetano, Gal, João Gilberto, Elis, Gil, Antônio Maria, Vinícius, Jobim, João do Vale e por aí.

Nesta altura, ele dá uma parada, pensando na melhor forma de introduzir um outro colega do colégio. Na verdade, a questão é que esse, em particular, não fazia parte daquele seleto grupo de, digamos, intelectuais de subúrbio e nem gozava, naquela época, lá de muito boa reputação, devido ao fato de ser, assim muito esperto, vivaldino. Ele era aquela pessoa alegre, de riso fácil, que falava aos berros, que ia aos "assustados" de sábado à noite conduzindo, infalivelmente, o disco dos "The boss guitars" que continha faixas como "and I love her" e "the house of rising sun", de grande sucesso naquele tempo.

Arranjava namoradas, comia com facilidade as empregadinhas do bairro e adjacências, roubava, na "porrinha", o filho idiota do comerciante da esquina da rua do colégio, e outras "cositas" mais.

Família, ele não tinha. Melhor dizendo, tinha, mas ninguém viu. Dizia que tinham vindo de uma cidadezinha da região metropolitana e só. Depois ele apareceu com uma história de que sua "família" tinha ido para o sul do país, quer dizer, ao que parece, viviam meio fugidos. De que ou de quem, se é que viviam realmente fugidos, em Água Fria nunca se soube.

Ele achava chato colocar secamente esses comentários acerca desse seu colega. Resolveu então começar colocando uma outra faceta da personalidade dele.

Havia em nosso colégio um outro colega que era, digamos muito esperto, aliás, esperto demais.

A impressão que se tinha, era a de que ele vivia de "expedientes". Um golpe aqui, um trambique ali, uma picaretagem mais adiante, portanto, não poderia ser considerado uma pessoa séria. Era, por assim dizer, alguém que não merecia confiança.

Ele achou desastrosa aquela introdução, que foi imediatamente deletada. Na realidade, o que ele queria era colocar um destes "expedientes" em particular, com a finalidade de abonar seu juízo, mas sentia-se envergonhado de expor-se ao ridículo, pois a vítima, no caso, tinha sido ele próprio.

O fato é que o seu esperto colega, sabendo que ele gostava de matemática, chegou um dia dizendo-lhe que tinha descoberto um novo método, bastante simples, de se extrair a raiz quadrada de um número. E exemplificava dizendo que:

- Para extrair-se a raiz quadrada de 25, basta abandonar-se o algarismo das dezenas ou o primeiro algarismo da esquerda e pronto.

E deu outros exemplos de sua "fórmula" milagrosa: 36, 625 e 5776 que, neste caso, segundo o seu colega, por ser um número maior que 5500, era necessário abandonar-se os dois primeiros algarismos.

Ele, rapidamente, verificou que realmente, para os exemplos apresentados, a regra era infalível, tendo ficado boquiaberto. Era verdade, os exemplos estavam ali, na sua cara. Como não tinha pensado nisso antes. Tão simples. Era uma toupeira. Mas e 49? Sim, 49? Pela regra, a raiz quadrada seria 9, e como se sabe, a raiz quadrada de 49 é 7.

Explicou-lhe, o colega sem se perturbar, que a regra era válida para números terminados em 5 ou em 6. Para outros casos, a regra era outra mas que ele estava cansado, com fome e que ia para casa. Outro dia talvez.

Não deu outra. Ele pagou-lhe, na sorveteria "Itararé" um lanche reforçado, com direito inclusive a pudim com mel, o néctar dos deuses naquela época em Água Fria. Seu colega, enquanto mastigava avidamente, ia explicando, com sons ininteligíveis o complemento daquela regra que na verdade não servia para extrair-se raiz quadrada, mas sim para ferrar-se lanches de ingênuos, pra não dizer idiotas.

Não. Não iria contar assim sem mais nem menos aquele fato. Claro, sabia de outros, muitos outros. Ora! E... Então retomou a narrativa, agora um pouco mais tranqüilo, dando outra apresentação de seu colega.

Tínhamos lá no colégio um outro colega que era acostumado a meter-se em situações, digamos, não muito recomendáveis.

Em certa ocasião, sabendo ele que o colégio da UFRPE realizava uma espécie de vestibular para o ingresso de alunos no 3o ano do 2o grau, ele criou uma prova de matemática, fictícia e a "vendeu", sem constrangimento algum, a desonestos de plantão. É claro que a prova verdadeira nada tinha que ver com a "vendida", mas os "prejudicados" iriam reclamar a quem e sob qual alegação? Inteligente, não?

Pois é, esse nosso colega era assim. Daí ele não podia ser levado lá muito a sério.

Mas, apesar deste fato, e de muitos outros, a verdade é que todos nós gostávamos dele. E no fundo, no fundo... Sentíamos uma certa inveja, é isso mesmo, sentíamos inveja daquele seu modo extrovertido, alegre, que agradava às mulheres, pois é, ele agradava às meninas, tinha um bom físico, um bom papo, sabia o que dizer "naquelas ocasiões", enquanto nós... Mesmo que alguma garota nos desse alguma atenção que, no nosso entendimento, seria impossível de ocorrer, iríamos dizer o que, o que meu Deus?

A nós, estava reservado o destino de tocar punheta inspirados pelos "catecismos" de Carlos Zéfiro, e olhe lá.

Nessa altura, ele dá uma parada súbita. Esses últimos parágrafos... Essa confissão... Saiu sem ele querer. Seu primeiro pensamento foi o de deletar o que acabara de escrever. Que história é essa? Não! Inveja?

Passado o impacto inicial, pensou com mais calma e concluiu que era a pura verdade. Verdade verdadeira, cristalina. Estava sendo honesto. E afinal, o que tem demais se ter inveja de alguém que hoje é um bem sucedido professor universitário, com doutorado e tudo mais, eleito inclusive, por seus alunos, como o professor mais humano do departamento em que trabalha? Vá lá que na adolescência ele não foi um santo, um exemplo de virtudes, e daí? Pois é, o mundo dá muitas voltas. Aquilo iria ficar ali e pronto.

Ele agora se sentia um pouco mais calmo para continuar.

Essa visão daquele nosso colega tenho hoje. Na época, não. Na época tínhamos um comportamento, em relação a ele, um tanto contraditório pois por um lado o queimávamos e por outro o procurávamos para, por exemplo, irmos à zona. Para isso ele servia.

Foi com ele e meu amigo que fui pela primeira vez na "Baiana", infecta boate da rua Vigário Tenório, aliás, onde meu amigo perdeu a virgindade e ganhou sua primeira blenorragia. Isso aconteceu na noite do 31 de dezembro de 66.

Nosso colega nos levou pelas mãos, de Água Fria até à avenida Rio Branco, nos deu todas as orientações possíveis e imagináveis, afinal não queríamos passar por donzelos, já pensou? Que vergonha!

Nosso colega, certamente temendo ser um dos protagonistas de mais uma comédia dos três patetas, tomou seu destino, e nós o nosso.

Não tínhamos a menor idéia do que era um bordel. Mas e daí? O que isso importava? Íamos à "Baiana".

Não sei como conseguimos mas o fato é que estávamos lá, no primeiro andar de um velho sobrado da velha Vigário Tenório, no meio de um salão mal iluminado, onde se destacavam uma "luz-negra" que fazia nossas roupas ficarem fosforescentes e uma radiola de fichas que ia rebentar nossos ouvidos, a qualquer momento, além de alegres casais que rodopiavam salão afora ou, nas mesas, acariciavam-se acintosamente, desprovidos de quaisquer constrangimentos.

Neste instante, meu amigo confidenciou-me aos gritos:

- Estás vendo todas estas meninas aí?

Ao que respondi afirmativamente, com um movimento de cabeça. Ato contínuo ele me informa o óbvio.

- Todas elas trepam, meu caro!

A partir dessa informação, resolvemos sentar em uma das mesas do salão e pedir uma cerveja com o objetivo de "sondarmos o ambiente". E, quando menos esperávamos, duas garotas já nos fazem companhia. Uma loura e outra morena. A morena ficou comigo e a loura com meu amigo. Vale dizer que não fizemos escolha alguma. Não foi necessário. Elas fizeram Isso por nós. Mas isso é certamente um detalhe completamente insignificante.

Quando estávamos por terminar a segunda cerveja, meu amigo chamou o garçom e perguntou-lhe:

- Por obséquio, onde fica o "Water-Closet?"
- O quê?
- Não. Gostaria apenas de saber onde posso verter um pouco de líquido.
- ?! ?

Apresso-me a socorrê-lo informando ao garçom que ele quer mijar.

- Ah! Segunda porta à direita. Ele é de que lugar?

Dou como resposta apenas um ar de riso.

De volta ele é interrogado pela lourinha

- Vamos?
- Pra onde?
- Pro quarto, meu filho.
- Sim. . .

Aquele "Sim..." não deu para se saber se era uma afirmação, uma interrogação ou uma exclamação. Porém, pouco depois lá estava meu amigo, dentro de um cubículo, com uma lourinha oxigenada que ficou nua num piscar de olhos, completamente empulhado, procurando ganhar tempo, respirando com dificuldade.

Enquanto ele lentamente se despia, a mulher perguntou-lhe à queima-roupa:

- Porque você é tão magro?

Aquela pergunta lhe pegou desprevenido. Precisava responder rápido. Dizer algo que não deixasse a menor duvida. Na verdade aquela pergunta estava completamente fora de seu "Script". E agora? Meu colega não lhe prevenira de que poderia surgir este tipo de questão. Na sua cabeça mil luzes se acendem, tocam mil buzinas e, teve a sensação que ia tombar. Deveria ser por causa da cerveja. É. Deveria. E quando já se sentia completamente perdido, explode a salvadora resposta: "É de foder, minha filha".

Aquele "é de foder, minha filha", soou muito bem aos seus ouvidos. Mas muito bem mesmo. Literalmente levantou-lhe "a moral", se é que me faço entender.

Pois é, pra isso ele servia.

Meu colega só esqueceu de lhe avisar que, pra se foder não precisava tirar as meias. No mais, tudo bem.

Quanto a mim, nada a declarar.

Nova parada. A questão agora era a de que ele contara apenas parte da verdadeira história e isto o incomodava. De fato seu amigo tinha ido à Baiana, tinha ido para o "quarto" com aquela lourinha e finalmente o "é de foder, minha filha" associado ao levantamento, digamos "da moral", era a mais pura verdade. O problema é que não houve blenorragia alguma, pois verdadeiramente seu amigo não chegou a transar com a dita lourinha. O que atrapalhou foram as meias.

Porém, certamente ele não iria colocar, com todas as letras, que depois de se considerar o herói da noite, com tão original resposta, com "a moral" em ponto de bala e tudo mais, seu amigo percebeu que ainda estava de meias. Com medo de cometer a maior gafe de sua vida e ser descoberto em flagrante delito, tratou de tirá-las o mais rápido possível. Não poderia perder mais tempo. Afinal, naquele momento, era o dono da bola. Em meio a esta operação a lourinha pergunta-lhe, sem nenhuma maldade, por pura impaciência, se ele não sabia que pra se foder não precisava tirar as meias.

Ele não sabia! E por não saber desse detalhe, nem guindaste levantaria mais "sua moral" naquele inesquecível 31 de dezembro. Este fato ele nunca contou a ninguém. E como poderia contar? Contar que tinha fracassado, que negara fogo na primeira vez? Já pensou? Logo ele, o gênio. Não. De forma alguma. Seria motivo de gozação até hoje:

- Lá vai o bimba mole. BIMBA MOOOOLE!!!

Daí ele ter inventado a história da blenorragia. Todo mundo em Água Fria tomou conhecimento dela. Mal ele conhecia alguém, não dava outra:

- Você já soube que eu peguei uma blenorragia na zona? Ainda não? Pois é, meu caro. E logo eu, tão experiente!

Não. Ainda não seria desta vez que o mundo tomaria conhecimento da verdadeira história do paraíso. Não!



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