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La insignia
10 de novembro de 2002


O clube da terceira idade


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, novembro de 2002.


Tudo nele respira o ar do que já foi. Mas nada mal, nada pestilento, nada decomposto. Sem chegar propriamente a ser um Hotel, pelo menos naquilo a que nos acostumamos a chamar por esse nome, foi-lhe recusada a descida até o ponto de Pousada, e por isso chamam-no de Clube.

Ele é uma casa-grande que se esparrama na horizontal, com redes nos terraços. Ele anexa pequenas construções, cujos primeiros andares, cobertos com telhas de amianto, sobrepõem-se como águas-furtadas, trazendo à memória os pagodes chineses. A sua frente dá para o mar, separada da praia por arbustos distribuídos em cerca, enquanto as costas povoam-se de árvores, coqueiros, flores, e até um certo cheiro de esterco. A sua frente é areia branca e sargaços, as suas costas são barro e terra escura, como um ser híbrido, até na fauna que cobre o chão: à frente correm marias-farinhas, atrás ocorrem bostas verdes, sinal seguro de que cavalos penetram na área, de vez em quando. É um sítio, um hotel-fazenda, ou um repouso na praia, a depender de onde os hóspedes circulem os pés.

- Tudo muito aconchegante, diz-nos o proprietário.

O proprietário é coxo. Mas nada que lembre o diabo. Pelo contrário, ele, o proprietário, é simpático, um verdadeiro encanto de alma. Puxando a perna ele traz as bandejas para o café da manhã, num equilíbrio precário. Tememos sempre, em estado de fome, pelo futuro do nosso café - tudo, num tropeço sem agenda, pode vir a perder. Sem camisa, mas sempre bem barbeado, com o redondo ventre que lhe faz a compensação da perna em falso, ele deposita, ou melhor, aterrissa com estrondo a bandeja numa grande mesa do terraço. Pois tudo é muito aconchegante. Todos os dias o café atrasa, sendo servido em algumas ocasiões depois das nove da manhã. Daí o tenso acompanhamento, a nossa solidariedade pelo inhame cozido, pelo munguzá, pelo leite, café quente e carne assada, para que não se confundam com a pele e pêlo de nosso anfitrião.

O café atrasa, sempre, o que é uma forma de ele sempre chegar à hora. Aguardamo-lo, desde as seis e trinta da manhã, com fome, imaginando-o, em esperança. Para quê? Pois já sabemos que o proprietário nos dirá, com um pedido de desculpa:

- Ficamos acordados até as duas da madrugada fazendo bolo. Mas já estamos de pé. A determinação antes de tudo.

Ele tem princípios. E todos se organizam no que ele chama de Sistema Geral de Qualidade. Sabemos, claro, que é um Sistema Particular, mas tão simpático ele nos fala, e são tão bons os pratos, que em suas palavras acreditamos. Ou melhor, devoramo-las, que é uma forma de concordar. O diabo é simpático, perdão, ele não pode ser o diabo. E avançamos para a mesa. E consumimos, deliciados, o bolo e os bolos feitos por sua mulher. Embora, nesse capítulo do bolo, o sensato deveria ser manter um pé atrás.

É que numa noite de lua, tendo o rumor das ondas na praia, e as sombras do mar no horizonte, a sua mulher confessou-nos ser oleira. Perfeito, concordamos, enquanto degustamos o vinho, pensando, "quanta graça, ninguém seria louco de misturar barro com trigo, tão diferentes são, na consistência e nos fins". Ninguém seria louco, mas o vinho, a penumbra, o que ouvíamos, são. Em um banho suave de luz entreaberta pelas nuvens que passam, sua esposa nos conta que do hábito de amassar a argila veio-lhe o gosto de ajuntar o trigo a ovos.

- De fazer cinzeiros para a cozinha foi um salto, diz-nos, e balança o pezinho à luz da lua.

Nada demais. O barro jamais veio com gosto de açúcar, lembramos. Mas o vinho, essa noite, a intimidade, o que ela nos diz....

- Cozinhar pra mim é uma Terapia. É como fazer cinzeiro. Eu começo a beber logo cedo e nem sinto. Eu bebo o dia inteiro e nem aí, larila. Ali na beira do forno, não é? Acho que é o calor, a gente bebe e o álcool vai logo embora.

"Muito espirituosa", é o pensamento máximo que consegue nos tranqüilizar. Imaginamos que seus olhinhos negros atinjam a histeria, vá lá, o pensamento é livre, diante do marido manco. Tamanha atividade, como terapia, das primeiras horas da manhã à madrugada, tanto ardor, esse dínamo, ah, que tormento, que reclamos por uma qualidade total. E nisto imaginamos porque somos auxiliados por seu riso: ela gargalha. Mas nada de um Lombroso das emoções. Tudo muito aconchegante.

É que ela solta os cabelos para trás, e dobra a gargalhada, no momento em que duas hóspedes, duas senhoras que se encontram numa altura imprecisa dos sessenta anos, intervêm. Sílvia, a de voz mais quente dentre elas, chama-a:

- Lúcia, Lúcia, Edite acaba de dizer que está querendo namorar.

Nesta altura, a hospedeira apenas sorri. Quase fecha os ouvidos, talvez até por saber da linguagem secreta das três, que se torna clara quando Sílvia novamente diz:

- Lúcia, ela disse que hoje namora até com o teu marido.

Então a hospedeira escandalosamente gargalha. E se volta, vai para a roda das amigas, evitando que o código se torne mais explícito. Por que as mulheres, quando juntas, ficam tão carnais?

Edite, das três, é a mais velha, deve estar nos setenta. A mais docemente fanada. Difícil vê-la como avó, mãe, viúva. Ela hoje deixa a impressão da mulher a quem se amou, à margem das conveniências domésticas. Nela existe um porte das cantoras que envelhecem com dignidade, murcham, pétala por pétala, deixando um núcleo vermelho vivo. Flor emurchecida somente nas pétalas que a cobrem. Quem sabe, quando a gente envelhece é o espírito que nos salva. Ela possui um ar de ausente, que engana. Ela observa, cala e coordena:

- Eu não sabia por que as pessoas velhas desciam os degraus de banda. Agora eu sei. É pra apoiar melhor as pernas, com medo de cair.

A sua voz é rouca, as sobrancelhas raspadas e pintadas, e esse ar de alheamento, descobrimos, na manhã do outro dia, é uma atitude acostumada diante da vida. Ela não ouve o que não quer. Porta-se como testemunha silenciosa.

- Meu marido tinha uma outra. Ele sabia que eu sabia, mas sempre agiu como se eu não soubesse. Era um trato que nós tínhamos sem falar um para o outro. Ela era uma parenta dele que ele tinha muito bem guardada. Nem durante o câncer, que eu acompanhei, nós tocávamos no assunto. Ele me dizia: "Edite, você é uma mulher perfeita". E eu, "sim, se eu fosse perfeita..."

- Você casaria outra vez? Sílvia provoca.

- Eu? Só se fosse com um homem surdo, cego e rico.

E cai em silêncio. Ela se cala porque nessa manhã já Sílvia propõe uma brincadeira, um bingo, para agitar, "para aumentar a participação". A idéia não desperta nenhum entusiasmo. Todos estão ali para descansar, na intenção oposta da agitação. É Domingo. O último dia para os hóspedes. O proprietário se acerca.

- E aí, estão gostando?

Alguém reclama de que no sábado, no almoço, o feijão acabou mais cedo. Improvisou-se um arroz à Lúcia, às pressas.

- Foi, defende-se o proprietário. Chegaram uns hóspedes de última hora ... isso é uma prova de que a nossa comida é feita na hora, sempre fresquinha. A Qualidade antes de tudo.

Perguntam-lhe então quantas pessoas existem hoje no Clube. O proprietário se cala. Voltam a perguntar-lhe, com maliciosa insistência. Ao que ele responde:

- É muito flutuante. Uns saem, outros entram...

- Nem mais ou menos? O senhor não tem livro que registre?

Para não dizer que "tudo aqui é aconchegante", e assim dizer que não sabe quantos hóspedes estão no Clube, o proprietário fica a balançar as gordas bochechas, assentindo, concordando, mudo. É sua última defesa, em absoluta obediência ao princípio geral de qualidade que reza, "o cliente tem sempre razão", mesmo quando não sabemos qual. E despede-se, rápido, na medida do gentil andar.

- Com licença, vou ver como está a cozinha.

Sílvia volta à carga. É preciso agitar. Se a idéia do bingo não foi aceita, ela tem outra bem mais excitante: uma corrida de quatro. Para ser mais claro: uma corrida em que os hóspedes, todos, sem exclusão de idade, dobrem-se e corram como quadrúpedes. Sorrisinhos contrafeitos recebem o achado, mas ela não quer ouvir qualquer contestação. Já se levanta e dirige-se à areia da praia, em frente ao clube, para enfiar um pau com um pano, à guisa de bandeira, que será a marca de chegada. Edite, que a tudo parecia alheia, apenas observa, quando Sílvia toma distância:

- Eu já ando mal de duas, que dirá de quatro...

Há quem aceite. Alguns senhores, bêbados, que chegaram neste domingo para beijar suas solitárias mães, já se põem de quatro na areia. A baba escorre-lhes, e é de se ver cidadãos com as costas vermelhas, de bigodes e barbas, prestando-se ao espetáculo de imitarem cachorrinhos. Uns apóiam-se nos joelhos, outros, mais ágeis, empinam o traseiro. É dada a partida.

Ao sinal, Edite levanta-se e vai, rumando lenta e cuidadosa para a mesa. O seu prêmio é provar a Qualidade, sem tropeço e sem pressa. Sozinha, calada, na manhã aconchegante do domingo.



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