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La insignia
20 de agosto de 2002


João


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, 20 de agosto.


Em setembro de 71 João recebeu a consideração de um indivíduo integrado. Isto quer dizer que fazia "pontos", recebia "documentos", guardava-os. Os "pontos" eram encontros em hora e lugar determinados com algum militante. Os "documentos" eram escritos do partido, de denúncia ou doutrina. "Pontos" e "documentos" assumiam para ele a categoria de ações, porque eram clandestinos. Era um fazer pouco, sabia-o, quando vislumbrava a grande tarefa pela frente. Era um fazer muito, sabia-o melhor, em razão do temor, quando pensava no risco da quase forçada opção. De uma forma ou de outra ele se sentia deslocado. Mas façamo-lo justiça: esse deslocamento não era só medo.

É sempre difícil para um indivíduo agir conforme a sua tendência, em qualquer tempo. Em tempos de repressão política, sabemo-lo, distante do fogo, a dificuldade cresce e se transforma em descrédito, em desprezo ético jogado às tentativas do indivíduo em realizar uma tendência fora do campo de luta. Se em tempos normais a sua realização íntima, ao superar infernais obstáculos, é um fazer para nada, quando visto sob a ótica do trabalho pragmático da sociedade, em tempos de luta contra uma ditadura o seu fazer, já por si inútil, ganha a reputação de uma fuga. Na guerra sempre se há de exigir do poeta que troque o seu verso pela pistola. E o que seria possível exigir e esperar de João, aquele que não sabia ao certo o que é que afinal havia vindo fazer no mundo, no Recife, além, é claro, de se isolar num cubículo à procura do seu grão de individualidade, única e irrepetível, oculta num lugar onde nem por faros de rato localizava? - Que ele assumisse o razoável, a palavra de ordem decisiva para a mudança: "o socialismo sairá do capitalismo como a borboleta sai da crisálida". Que ele vestisse portanto a pele de João, o companheiro. Esta era a exigência. Mas essa pele, segunda, não o vestia todo, para dizer o mínimo. Assim o vemos, nesta posição distante do fogo, onde nos encontramos.

Naquela hora do fogo João cumpria as suas tarefas com as mãos, pernas e espírito trêmulos. "Tenso, eu estou tenso", ele se dizia. E como um estado de tensão permanente é insuportável, do temor o seu espírito se evadia entrando em uma tela de cinema. Isto quer apenas dizer que ele, sentindo a segunda pele frouxa nos músculos tensos, vestia uma terceira pele, virando personagem de filme. Filme noturno, em preto e branco, em sala escura. O dia, o medo concreto, a ação do perigo real, tinha as cores da carne de gente de todos os dias. Ele, como um personagem que se estava vendo, emergia como um outro - estava em risco numa tela. Num filme à noite um jovem entrava e saía de carros que rodavam sinuosos entre becos e ruas escuras, concordava sem pestanejar em guardar mimeógrafo - um crime! para a repressão isso equivaleria ao flagrante de um estouro de uma gráfica -, mimeógrafo que era guardado no lugar mais óbvio, debaixo de sua cama. Nessa terceira pele estava um jovem que se punha à prova, ultrapassando o obstáculo da covardia. Esse personagem circundava e se abeirava do fogo, o que era o mesmo que correr como um hebreu por entre as águas apartadas do Mar Vermelho, levantadas e fazendo muro à direita e à esquerda. Sem muita segurança da estabilidade dessas águas, claro, que a qualquer momento poderiam engolfá-lo.

Se lhe dissessem, ordenassem, "irás combater o combate franco, em campo aberto", talvez, passemos-lhe o crédito da dúvida, talvez ele não adentrasse o campo em desafio. "Não sei lutar, como é que eu vou atirar, não sei nem se há um pino na bomba", poderia ser a sua resposta. Pois o corpo-a-corpo era muito real para ser de filme - passemos-lhe o benefício dessa dúvida. Se lhe dissessem, no entanto, "agirás na sombra, penetrarás pela madrugada no campo inimigo ...", o complemento dessa ordem, dessa missão, ser-lhe-ia indiferente. Ele, com uma generosidade às raias do incauto, do temerário, partiria com o seu personagem para a cena. Ziguezagueante, é certo, de um trôpego de dar realidade a seu personagem na tela, é verdade, mas iria. Como foi. Como o fez, em duas ou três inolvidáveis oportunidades.

Mas antes de narrar um desses momentos de marca indelével em sua memória, é preciso que se diga: João acreditava na revolução. No entanto, como ser problemático, difícil é saber onde essa crença entrava, se na sua primeira, segunda ou terceira peles. Digamos, para unificá-lo ... digamos que sua crença era por negação. Que era um procurar um seu lugar no mundo, mundo que ele rejeitava, in totum. Por aí se vê que a base não era bastante sólida, pois que lhe faltava o mundo. Diriam mais tarde os seus desafetos que ele era um socialista por rancor. Ao que respondemos nós, num esforço por compreendê-lo, que o sentimento do amor lhe era estranho. Corrigindo: a carência de amor nele existia. Faltava-lhe tão-só, e esse tão-só chega a ser irônico, colher os frutos desse sentimento. Ele não sentia em si nem mesmo as palavras de Lima Barreto, "como a prostituição me parece sagrada! não fosse ela, esta minha mocidade, órfã de amor...". Esta grandeza, de ser grato a um arremedo de carinho descido em sua miséria, ele atirava para longe, dando como resposta a uma imitação de afago uma genuína patada. Pois ele continuava virgem depois de ir semanalmente à zona. Isto quer apenas dizer que ele penetrava nas putas com a fome e o desprezo de um monge, em desgraça, torturado pela queda na carne. Ele se dizia, no íntimo, "como já é impossível não comer, vamos, pastemos, mas retornemos logo ao reino do que é humano". E o humano era o cubículo, para onde voltava, mortificado. Queremos dizer, a alegria breve do momento lhe era interdita. Mais... como dizer? O calor da alegria para ele era ruim. O gosto da alegria ele travava, como se ela trouxesse um vício de origem. "Ó estúpido, de que te alegras? Olha a fundo, esse verde luminoso é sujo", parecia dizer-se.

Quando João foi recrutado, ele estava a um passo do hospício. A ser mais incisivo, aplicando a ele o seu método de trato com o mundo, diremos que João só não estava num hospício porque era tímido. Falasse, agisse como pensava, estaria internado na Tamarineira. Foi bom, foi um bálsamo o contato com a gente com quem guardava a semelhança de inadaptação. A diferença, a sua diferença em relação aos companheiros era que, enquanto os seus semelhantes diziam, "morrer se preciso for, porque eu quero outra vida", a isso João se dizia, em silêncio, "morrer se preciso for, porque eu não quero esta vida". Ele não via outra. Por discurso, falado, via, por verdade, interiorizada, o seu desespero não via.

João odiava o burguês, detestava-o e repugnava-o a ponto de sentir náusea à vida burguesa. Ponto. Isto não significava que ele punha em lugar dessa negação um amor aos despossuídos. Sentia por eles uma simpatia, que definiremos como uma mistura de piedade cristã, pela má sorte da gente infeliz, e de vergonha, do próprio mal-estar que lhe inspirava essa gente. Ele não lhes enxergava humanidade. E João era um humanista! Se lhe dissessem, ou melhor, se ele visse numa mulher ou num homem do povo as idéias mais nobres que sabia encontrar no filósofo Sócrates, ele se apaixonaria, num transporte de fúria sem passagem ou mediação. Sim, claro, ele sabia, e tinha a convicção de que a vida dessa gente era injusta. Mas para que isso evoluísse até o amor era preciso que a massa adquirisse um rosto, atingisse o corpo de uma pessoa com alma, ganhasse um contorno de individualidade. Era como se eles, essa gente, não sentisse mágoa, dor, altruísmo. Nem engenho, sensibilidade ou inteligência, porque não deixavam um feito civilizado, distante das mãos e dos pés nus e do suor físico. Bárbaros, simpáticos e injustiçados bárbaros, ele os via. Mas isso era quase uma metafísica, tomada como uma coisa abstrata, irreal, sem corpo concreto, impossível para a prática naqueles anos. Metafísica à parte, vejamo-lo.

Numa sexta-feira à noite de outubro de 71, ao chegar à Universidade Católica, João encontrou no térreo do edifício um pequeno aglomerado. Entre estudantes que passeavam, à meia-luz de lâmpadas que mal distribuídas deixavam o corredor em semi-obscuridade, ele entreviu rostos conhecidos no grupo. Ali estavam Hilton e Miro, alunos da mesma turma do curso de sociologia, o que era natural, e Samuel e Cíntia e Vevê, o que, nas circunstâncias de perseguição a Cíntia, já lhe pareceu uma reunião clandestina. Estavam tensos, olhando desconfiados ao redor. Hilton, como sempre, fumando, com uma das mãos no bolso, enquanto o outro bolso aguardava a mão que segurava o cigarro. Vevê, que em condições normais possuía os olhos arregalados, tinha-os agora, além de grados, vermelhos, duros, como se mantidos abertos por força de hipnose. Cíntia, na sua minissaia, expressava-se mais por gestos, e dessa vez as suas coxas não avultavam. Via-se agora a sua cabeleira, de boneca de milho, assanhada ao vento. Miro estava sério, calado, ouvinte. Samuel, pálido, dir-se-ia branco na sua pele morena.

- Tudo bom? - João perguntou, por força do hábito.
- A repressão foi no Juracy Palhano - Samuel respondeu. - Não caí por sorte. Hoje eu não dei aula. Eles estão me procurando.
- Sei - João conseguiu dizer. E antes que ele conseguisse perguntar "como foi? como foi que eles te descobriram?", já a discussão ia adiante.
- O fundamental, de imediato - Cíntia disse - é limpar a tua casa de documentos. A gente não pode entregar de bandeja as resoluções do Partido. Não pode também deixar elementos do que você faz, compreende?
- Certo, é preciso ir lá apanhar os documentos - Vevê disse, olhando em volta. - E logo, antes que seja tarde.
- Se é que eles já não foram lá. É possível até que estejam nas proximidades, rondando - Miro observou. E dirigindo-se a Samuel: - A propósito, você tem documentos em casa?
- Tenho, claro - Samuel falou. - É a minha casa... a casa da minha mãe. Onde é que eu ia esconder?
- Aquele cara ali, ali perto da coluna, já olhou pra cá umas duas vezes - Hilton pela primeira vez falou. - Era bom que a gente resolvesse logo.
- Quem vai? - Cíntia perguntou. - Tem voluntário?
- Era bom que a gente discutisse antes alguns critérios - Miro disse, pondo as duas mãos nos bolsos.
- Não dá tempo, companheiro - Cíntia disse. - Tem que ser ligeiro e objetivo.
- Você não pode, Cíntia. Samuel muito menos - Vevê disse.
- Eu já tive uns problemas no Rio e em João Pessoa. Se me pegam, acho que eles completam o dossiê - Hilton disse, atingindo o seu natural com as duas mãos nos bolsos.
- Sei não. Acho que quem está menos exposto é quem pode ir, entende? - Miro retorna. - Desde que se tomem as devidas precauções ...
- Nesse caso, de nós ...- Cíntia falou, e pôs seus olhos de frente para João.

Não eram os olhos que ele desejava. Tão impessoais, revolucionários, faiscantes de autoridade. A voz ainda era quente, nasal. Onde antes ele se dizia, num transporte romântico, "por ti, Cíntia, eu iria à morte", agora era urgente uma resposta distante da chama da cabeleira de Cíntia. Expulso do reino do romântico ele deveria ir ao reino do objetivo. O que ele tentou, guardando embora o sotaque da sua história íntima.

- Eu não sei onde fica a casa de Samuel - ele disse, como se dissesse, "não sei dançar".
- É fácil - Samuel decidiu. - Eu vou com você. Eu te acompanho até a ladeira, arrodeando pelo Alto Santa Terezinha. A gente não sobe direto pela Avenida Beberibe.

E foram. Pegaram um táxi e foram, sem palavras. Num filme em preto e branco era noite quando João entrou numa casa e apanhou um pacote entre livros. Viu-se saindo, acompanhando-se na tela, tenso, de orelhas em pé ao menor ruído. Thriller de ação rápida. No dia seguinte veio a saber que a casa foi invadida por militares, como um apêndice de realidade que se colou ao filme na tela. Quando soube da invasão, ele ficou entre orgulhoso e magoado. Orgulhoso do ato do seu personagem, e magoado pelo critério que elegeu a sua real pessoa para aquele ato. Sentia-se necessário por ser o escolhido para entrar numa casa com risco de queda, mas insignificante o suficiente para ser o escolhido ao sacrifício. Calou, para que não lhe dissessem, com absoluta objetividade: "compreenda, alguém tinha que ir. Se você caísse, saberia pouco. Se morresse, o dano não era tão grande". E para fugir ao desconsolo de lógica tão dura procurou voltar à tela em outro filme.



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