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La insignia
5 de agosto de 2002


O bruxo veste o fardão


Mário Maestri (*)
La Insignia. Brasil, agosto de 2002.


Não deu outra. O Bruxo entrou! No dia 25, o escritor místico Paulo Coelho venceu, por 22 a 15 votos, ao muito citado mas pouco lido sociólogo Hélio Jaguaribe, a eleição para a vaga 21 da Academia Brasileira de Letras, aberta pelo transpasso do economista Roberto Campos, que deus o tenha, firme, em seu regaço. O presidente da ABL, o historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva, internado por problemas gástricos, não participou do pleito.

O ingresso do mago escrevinhador à ABL surpreendeu menos do que a queda do galho de uma maça madura. Sem gritos e sussurros, Paulo Coelho papou a poltrona 21, fundada por José do Patrocínio, líder abolicionista monarquista que se ajoelhou para beijar as mãos da princesa Isabel e escreveu, ainda jovem, o romance desconjuntado Motta Coqueiro ou a pena de morte, entre outras proezas.

A sacramentação literária de Paulo Coelho tem sido apresentada como anódino oportunismo dos membros da Academia, que já abriram os braços para figuras célebres mas estranhas às Letras, como o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, ou apenas próximas do poder e distantes das Letras, como José Sarnei e, ainda mais, Roberto Marinho, cujo currículo assinala ter escrito um livro, há algumas décadas.

Também se explicou a escolha como resultado do atual desvergonhamento nacional que tem parido amancebamentos exóticos como a recente aliança de partido de esquerda com os bispos da Igreja caça-níqueis do Reino Universal de Deus, ou o ingresso de políticos declaradamente anti-comunistas no ex-Partido Comunista Brasileiro!

Por decisão de alguns dos mais destacados e bem posicionados intelectuais nacionais, Paulo Coelho, com 54 anos, ocupará, se o destino lhe permitir, por décadas, uma vaga no mais prestigioso instituto cultural brasileiro. Ao contrário do que se propõe, sua entronização literária foi ato conseqüente e racional, com profundas e importantes decorrências simbólicas, culturais e sociais.


A estréia do mago

O explosão literária de Paulo Coelho, com três romances de sucesso - Diário de um mago [1987], O alquimista [1988] e Brida [1990] causou grande perplexidade no mundo literário nacional. Na época, de modo unânime, propôs-se que o bruxo literato travestia, como novelas, livros de auto-ajuda; que era produto exclusivo do marketing; que logo sairia da moda sem deixar rastros.

Ao pronunciar-se sobre a produção de Paulo Coelho, a intelligentia literária nacional convergiu em análises sumárias e prepotentes, ao estilo "não li e não gostei". Entre sociólogos, antropólogos e críticos literários, não despertou a menor curiosidade científica o fato de que a ficção coelhista de tema místico galvanizasse milhões de jovens brasileiros.

Em 1993, quando o bruxo já vendera uns quatro milhões de livros, publiquei artigo - "A feitiçaria yuppie de Paulo Coelho" [D.O. LEITURA, de São Paulo] -, procurando apontar algumas das razões do inesperado sucesso literário. Para tal, é lógico, li e estudei, com atenção, os quatro primeiros romances do autor. Tratava-se de um esboço de crítica racionalista de uma literatura irracionalista.

Em 1998, escrevi o ensaio Por que Paulo Coelho teve sucesso [Porto Alegre: Age, 1999], procurando aprofundar a análise e discutir a orientação do escritor em Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei [1994], O monte Cinco [1997] e Veronika decide morrer [1998]. Não havia ainda tentativa de crítica sistemática da obra coelhista, apesar dos pra lá de vinte milhões de livros já então vendidos pelo autor.

As razões do sucesso coelhista são de diferentes ordens. Primeiro, há certamente razões textuais. Paulo Coelho viveu sempre envolvido com a escritura. Definitivamente, não caíu, portanto, de pára-quedas na ficção. Ele desempenhou-se como teatrólogo, editor, publicitário. Em parceria com Raul Seixas, obteve amplo e merecido sucesso como letrista.


Receitas conhecidas

Paulo Coelho produz seus romances apoiado em princípios conhecidos do jornalismo e da dramaturgia. Sua linguagem é simples; as frases, parágrafos e capítulos são breves. Seu texto é linear e enxuto. Ele conta uma história, com princípio, meio e fim, recortada por pequenos contos, que se concluem neles mesmo, ao modo das telenovelas.

A narrativa coelhista avança no espaço e no tempo, quase sem flashs-backs. Os personagens são poucos - em geral não, mais do que cinco. Eles contracenam com o protagonista em forma dual e, se possível, são denominados pelas funções que exercem no enredo - o pastor, o inglês, o alquimista, o governador, o sacerdote, etc. Assim, não confundem o leitor.

Paulo Coelho escreve romances de leitura rápida e de compreensão fácil, destinados a um vasto público - sobretudo jovem - que, apesar de alfabetizado, não tem o hábito de ler literatura. Porém, apenas o uso dessas técnicas, de conhecimento universal, não explica o seu fulgurante sucesso.

Paulo Coelho não inventou sua literatura. Ao contrário, ela faz parte da ficção em prosa de tema esotérico, de antiga tradição, que produziu escritores como Carlos Castañeda, que obteve sucesso mundial escrevendo romances esotéricos sobre magos e bruxas. Porém, mesmo se apoiando nessa tradição ficcional, Paulo Coelho também a inovou, substancialmente.

Os magos e feiticeiras de Paulo Coelho não são mais, como no passado, seres subversivos, socialmente desajustados, em ruptura com a ideologia e os credos oficiais, angustiados por uma inquirição heterodoxa do mundo.


Bruxos do Primeiro Mundo

Os bruxos coelhistas são profissionais de sucesso, sedutores, modernos, que moram em casas elegantes e viajam despreocupados com os gastos. Suas feiticeiras são mulheres jovens, sensuais, que fazem dieta, compram em lojas chics, andam de carros conversíveis.

Sobretudo, sua magia despreocupa-se olimpicamente com a espiritualidade, moralidade, vida pós-morte. Trata-se de uma espécie de modernização da magia pragmática dos povos primitivos, que busca objetivos essencialmente econômicos, hedonistas e consumistas.

Paulo Coelho criou uma narrativa esotérica yuppie, simples e direta, ao alcance de todos, de forma e conteúdo barbarizantes, que expressou as angústias de larga faixa da população mundial perplexa diante de um mundo cada vez mais adverso, que, desde fins dos anos 1980, se encantava em forma crescente, quando da vitória da irracionalidade sobre a racionalidade.

Porém, a essência profunda da narrativa coelhista não é o conteúdo místico, mas seu caráter trivial. Apesar de pertencerem a gêneros distintos, ela e a narrativa de auto-ajuda têm como característica primordial anestesiar a consciência alienada, através da reafirmação consoladora das convenções e preconceitos dominantes.

Magnetizado por suas descobertas, o leitor coelhista explora o conhecido, arromba portas abertas, empantana-se profundamente nas visões piegas, tranquilizadoras, individualistas, conformistas e encantadas do mundo que o aprisiona. Ao acabar um livro, quer um outro, que seja diferente, apesar de absolutamente igual.


Original e cópia

Mesmo parecendo, tendo gosto e cheiro, a narrativa trivial de Paulo Coelho não é literatura, na acepção plena da palavra. Ela é o inverso da literatura artística, que tem como principal conseqüência enriquecer a consciência, desorganizando o senso comum, através de uma experiência estética de conteúdos essenciais.

Sobretudo porque a essência profunda de sua literatura é a trivialidade, Paulo Coelho pôde abandonar a capa, a espada e o chapéu pontudo do mago escrevinhador, apresentando-se apenas como romancista, quando intuiu o crescente esgotamento do filão temático que o consagrou.

Após Brida, em 1990, é claro o decaimento da qualidade relativa da literatura de Paulo Coelho, que ele tentou relançar com três romances que se afastam, mais e mais, do tema esotérico - Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei [1994], O monte Cinco [1997] e Veronika decide morrer [1998].

Sobretudo em Veronika decide morrer, é clara a vontade do autor de fazer literatura normal, aceitável pela crítica. Mesmo bisando receitas passadas, o romance constituiu inegável esforço em direção de ficção mais densa e de maior preocupação formal, apesar dos aforismos adocicados, expressões repetidas e lugares comuns abundantes.

Procurando fugir dos cenários artificiais e estereotipados, o romance tenta assinalar as angústias do homem contemporâneo. Sobretudo, é enorme o recuo do esoterismo. Num passe de mágica, os bruxos e feiticeiros somem, abrindo lugar a uma narrativa de pretensões realistas.


Qualidade e quantidade

Em Veronika decide morrer, não há superações qualitativas. Talvez a grande contribuição desse romance seja separar o essencial do singular na literatura coelhiana. Como nos livros anteriores, essa narrativa assenta-se em visão de mundo profundamente individualista, quietista, conformista e prosaica.

O Demônio e a srta. Prym, de 2000, constitui uma espécie de rendição geral do autor, ao abandonar o esforço realizado nos romances anteriores. Mais uma vez, o autor mergulha de ponta-cabeça nos temas esotéricos. Divindades, bruxas, planos espirituais, conversas com a natureza, espíritos palpitando sobre a economia dominam esse romance, desprovido da imaginação e do ineditismo relativos dos livros de estréia.

Ao entregar-se à simples repetição de fórmulas e temas que lhe garantiram o sucesso inicial, Coelho parece conformar-se ao papel de Agatha Christie do esoterismo. Escrever, com sucesso, sempre o mesmo, para um público leitor sempre igual. O Demônio e a srta. Prym e as As Valkirias [1992] são inegavelmente seus piores romances, desde sua feliz estréia, em 1987.

O desejo de reconhecimento literário constitui a grande surpresa de Confissões de um peregrino, livro de entrevista hagiográfica do jornalista espanhol Juan Arias, de 1998, no qual Paulo Coelho revela o desejo que suas obras sejam expostos nas "estantes de Literatura" e jamais nas de "esoterismo". Na época, já deixava claro o desejo de ingressar na ABL.

O reconhecimento como imortal era um objetivo importante para um escritor certamente consciente da perda de dinamismo de sua narrativa, mesmo se ela não se expresse em caída significativa das tiragens. Havia também a alegria de abanar, de dentro da ABL, para tantos escritores que, fora dela, desqualificaram seus romances, sem jamais os terem lido.


O abater das armas

O acolhimento de Paulo Coelho como imortal tem importantes implicações culturais e mercadológicas. Não é, portanto, ato sem conseqüências. Por exemplo, agora, seus livros podem ser adotados, sem pudores e pruridos, em escolas e universidades particulares e públicas, por professores de literatura simpáticos a eles, visto o autor ter sido sagrado pela mais prestigiosa instituição literária do Brasil.

Em verdade, há algum tempo, sentia-se rumor do ensarilhar-se das armas, no relativo à avaliação da literatura coelhista. Críticos literários, romancistas, acadêmicos passaram a defender a literatura menor de Coelho como espécie de introdução, forçada, de um público arredio à literatura, às obras maiores.

Só editores, livreiros, alfabetizadores e inocentes defendem que se ganha sempre com a leitura de qualquer coisa. Uma literatura racista e sexista reforça preconceitos racistas e sexistas. Adolfo Hitler escreveu Minha Luta para convencer e criar consenso, não para provar ao mundo que podia encadear corretamente uma palavra atrás da outra.

O público das telenovelas não vai ao teatro. A música sertaneja não leva à música popular e erudita de valor. A cinematografia globalizada desvia o cinéfilo do cinema de autor. Ninguém chega a Graciliano Ramos, lendo Paulo Coelho. Não se escuta Mozart, por ouvir Chitãozinho e Xororó. A narrativa trivial é uma droga. Sua euforia anestesiante vicia o consumidor, apartando-o da arte e da vida.

As razões e os caminhos do ingresso de Paulo Coelho na ABL parecem claras. Ninguém vende quarenta milhões de livros por acaso. O novo imortal é sabidamente homem de inteligência, picardia, habilidade e simpatia. Esses e outros recursos permitiram-lhe levar a bom porto o projeto tão carinhosamente acalentado. Se há, portanto, um vencedor nessa operação, é certamente Paulo Coelho!

Porém, como não creio em bruxas, acredito que, lá no fundo, bem no fundo, deve ter contado uma outra razão na eleição, certamente mais decisiva do que a poderosa operação de sedução empreendida pelo autor. Desde o dia 25, parece ficar claro que havia e há muito mais em comum do que pensávamos entre o mago escrevinhador e seus agora irmãos de fardão.


(*) Mário Maestri é professor do programa de Pós-Graduação em História da UPF. E-mail: maestri@via-rs.net



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