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La insignia
12 de julho de 2001


A cultura cansada


Pedro Miguel Gon
Non!. Portugal, julho de 2001.


Quero resmungar. Tenho um volante entre as mãos e dirijo-me a um certo lugar para fazer algo que não me é suficiente. E isso que vou fazer vai-me custar paciência e humor; e sinto que vou chegar ao fim do dia cansado e sem conseguir fazer aquilo que realmente me dá agrado. Por um lado, porque não me sobra tempo útil, por outro, porque fico demasiado cansado e o corpo acaba por me esmagar.

Como quem depara com uma súbita clareira numa floresta densa, deparo-me eu com este pensamento: estou cansado demais para poder escrever. Mais do que isso: todos nós andamos cansados demais para escrever. Uma ilação imediata a partir deste pressuposto seria admitir que estes Homens cansados produzem cultura cansada.

Creio que ninguém contesta que o esquema civilizacional contemporâneo conduz ao cansaço. Cada vez mais as pessoas estão cansadas. Isso equivale a dizer que cada vez mais é difícil pensar. Pois não se pensa quando o corpo se impõe. Quando as sensações são tantas que chocam umas com as outras, e fazem tanto barulho no cérebro, que desaparece o silêncio que antes permitia apalpar os ligeiros meandros da inteligência ou escutar as vozes do próprio Ser. Não é possível escrever sem a presença do pensamento. Ora, não são só os leitores que andam cansados e se arredam dos livros; também os escritores andam cansados, mas não se arredam, continuam a escrever. Insistem. Persistem.

Eu, que também tenho a ferroada do escrever, sinto que assim não vale. Parece-me que há um véu que nos tolda a leitura e que não nos deixa ver o que são os textos hoje, nem nos deixa ver se gostamos deles, ou não, ou porquê. Mas o esquema civilizacional exige que se diga alguma coisa, há que dizer qualquer coisa a propósito de qualquer coisa e, apesar do véu tergiversador, lá vamos afirmando num sentido ou noutro.

Mas com o cansaço, as entidades que somos tornam-se animalescas. As possibilidades do espírito tornam-se arrabaldes fantásticos tão inacessíveis quanto demodées. É mais fácil chamar-lhes demodées que inacessíveis. Hoje escreve-se não a reflexão, mas o stress que se vive. E sem a reflexão fica o imediato, o concreto, o vulgar, o efémero... O stress torna-se o plasma do escrito e do escrever.

Se já ninguém consegue reflectir, como poderá alguém ter bases para afirmar o que quer que seja? Mesmo comentar o valor de um texto? Como é que alguém cansado poderá avaliar a riqueza de um texto? Uma tal pessoa teria de saber abster-se. Mas não o pode fazer. Os públicos exigem que se diga alguma coisa; e rápido.

Lá vamos nós dizendo que "sim" uns aos outros, fingindo que se aprecia, porque estamos demasiadamente cansados para encetar análises mais profundas e, por vezes, até estamos mesmo na dúvida da nossa própria capacidade de julgamento. Daí que seja mais fácil dizer "sim" sobre os textos que já outros disseram "sim"; dá-se o benefício da dúvida, confia-se. Se vamos a arriscar a dizer que "não", com esta insegurança toda, ainda aparece por aí algum estafado a dizer que afinal "sim", que é bom. Um editor, um jornalista, um crítico, um leitor de linhas, queimado, cheio de sono e de stress, e com semanas de sono em atraso lembra-se de olhar para aquilo e dizer que "sim", é bom. E se tem assinatura, pronto, está tudo feito. Maldita sorte a nossa que fomos cair na maçada de dizer que "não", que não era bom, quando afinal vem outro a dizer o contrário! Um golpe na credibilidade!

Nós, os outros, olhamos e interrogamo-nos. Qual a validade daquele julgamento? Depois há momentos em que duvidamos de nós mesmos, porque também estamos cansados, e admitimos que se calhar até é verdade. Se calhar os tais textos são mesmo bons, mas não conseguimos perceber porquê. Mas, no fundo, não acredito que alguém tenha a certeza de alguma coisa.

Estará tão longe da verdade afirmar que a literatura, hoje, é trabalho cansado e stressado? A literatura, hoje, é um esforço de produzir textos sob a pressão dos compromissos quotidianos. Já não há espaço, nem oxigénio. Aquilo que se escreve tem que ser muito curto e imediato. Porque o pensamento já não chega lá longe. Aprendemos a deitar a culpa no leitor, que já não gosta de pensar, mas na verdade a culpa também é do escritor que já não consegue levar lá o leitor; porque não tem como o levar. Sem pensamento não há pensamento. Resta no escritor a presença do corpo cansado e por isso é tão fácil escrever sobre sexo.

As mais recentes filosofias, desde Heidegger a Gadamer, mostraram a importância do corpo como um elemento da facticidade que nos introduz no tempo e no espaço, enquanto seres que pensam o Ser. Nós somos dasein, um "facto" que está a preencher um espaço e um tempo específico, ele mesmo segredo do Ser porque faz ser sendo o que é; não vive o tempo absoluto mas a temporalidade própria do seu ser, por isso pensar é sempre a partir do ser que está aí, naquele momento, a pensar. Mas apesar deste enquadramento plausível, nenhum autor chega a falar do cansaço do corpo. A meu ver falta afirmar e equacionar que, porque somos corpo, e há cansaço, aquilo que somos altera-se, derrete-se (de modo que não basta a temporalidade e a historicidade para pensar o Ser). Para além da relatividade ontológica que Heidegger expôs, para além da relatividade histórica que Gadamer mostrou, caberia a alguém falar da relatividade própria do corpo cansado que conduz a realidade pensada para planos alterados (recriados?) do Ser. Uma coisa parece-me clara: é por causa de tanto corpo cansado que já não há Metafísica.

Se algum dia houvesse ocasião de parar e a serenidade voltasse à corrente sanguínea, muita coisa recentemente publicada deixava instantaneamente de ser "boa". Subitamente sentir-se-ia o fedor do lixo que se consome.

Espoletou esta reflexão um acontecimento num encontro informal de escritores, com o seu público, numa Feira do Livro. Poucos apareceram. Mas atrasado, chegou um indivíduo que eu não conhecia, que, depois de meia dúzia de palavras, soltou um «Que stress!», que se esvaía pela boca fora. Era um escritor.



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