La insignia
7 de fevereiro de 2001


Consumo e controlo social


Pedro Pereira Neto
Non!. Portugal, fevereiro de 2001.


«Vivemos o tempo dos objectos: (...) existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente». Pertence este entendimento a Jean Baudrillard, cuja análise d'A Sociedade de Consumo me parece ser hoje de uma actualidade a toda a prova.

Segundo este autor, encontramo-nos actualmente numa conjuntura em que a prática do consumo invade todas as dimensões da vida. Se não é possível não comunicar, não o é menos não consumir. A era da obscenidade da abundância e da celebração do objecto enquanto signo socialmente significante é simultaneamente a era da climatização total da vida, das condutas e das relações sociais; esta colonização da agenda de espaço e de tempo do indivíduo representa mesmo, segundo Baudrillard, o estádio completo e consumado do nosso processo evolutivo social.

Não trata, portanto, este artigo de consumos (no plural), distintos e distintivos de uma determinada classe ou franja social, ou de um determinado estilo de vida - concebendo que essa multiplicidade exista. Trata, sim, d'o consumo, enquanto atitude macroscopicamente analisada, e na qual se verificam regularidades incontornáveis; d'o consumo, enquanto organização total da vida quotidiana, através de uma homogeneização integral onde tudo está compendiado e ultrapassado na facilidade; d'o consumo, enquanto prática translúcida de uma felicidade abstracta pelos objectos e pelos seus signos cuja esperança alimenta a banalidade quotidiana, definida pela simples resolução de tensões e que se reduz à mera acumulação compulsiva de significados, de acordo com a socialização e disposições adquiridas/incorporadas observadas por Pierre Bourdieu.

Instituiu-se a ideia (profundamente enraizada nas ciências económicas) de que o consumo visa, grosso modo, a satisfação das necessidades dos indivíduos. Importa então questionar que necessidades são e de onde surgem.

Se, como diz Bourdieu, o ser humano é sobretudo - se não completamente - um ser social, faz sentido pensar que a maior parte das necessidades - para não dizer todas - possui um significado social, traduza-se este em consumos essenciais à sobrevivência ou não (atente-se no exemplo de o consumo essencial de água potável ser socialmente recriminado na Alemanha quando a mesma provém de uma torneira). Por outro lado, como sabe cada indivíduo que esse consumo é essencial à sobrevivência? Precisamente através da transmissão desse conhecimento, ou seja, através da socialização a que cada indivíduo é sujeito. A valorização de um consumo e da satisfação da necessidade a que se destina é, portanto, socialmente (re)construída, de acordo com o meio.

Num outro registo, o de Herbert Marcuse - inspirador, entre outros, do movimento social de Maio de 1968, em França - apenas em última e redutora análise a validação da verdadeira necessidade de certos consumos é feita pelos indivíduos, uma vez que decorre afinal de juízos de valor que se encontram socialmente instituídos. Os próprios objectivos e necessidades perseguidos pelos indivíduos e incorporados como seus são, segundo este autor, apropriações feitas a partir de um conjunto de directrizes disponíveis e socialmente recomendadas (segundo a dicotomia totalitária e estigmatizante integração vs isolamento) que pairam no espaço público, veiculadas por interesses particulares e (re)transmitidos como sendo universais, racional e tecnicamente válidos.

Verifica-se, portanto, uma identificação do indivíduo com a sua sociedade, traduzida na incorporação das suas directrizes. Esbatendo-se progressivamente o antagonismo entre dimensão interior e exigências externas, desaparece o espaço privado, no qual o indivíduo permanecia "ele próprio", sendo através dessa colonização do pensamento e do poder crítico da Razão individual que as ideias socialmente consideradas "subversivas" são diluídas: o impacto do progresso e da racionalidade instrumental que o permite, obliterando essa diferença entre esfera pública e privada, entre necessidades individuais e sociais, transforma a Razão crítica individual em submissão aos "factos da vida". Nas palavras de Marcuse, «quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração [social e simbolicamente] repressiva da sociedade, mais inimagináveis se tornam os modos e os meios pelos quais os indivíduos administrados poderão romper a sua servidão e conquistar a sua própria libertação». Esta libertação «(...) depende da consciência de servidão [sendo] o surgimento dessa consciência sempre impedido pela predominância de necessidades e satisfações que se tornaram (...) do próprio indivíduo». É esta a razão pela qual não poucas vezes parece impossível conceber uma alternativa ao sistema social e político-económico global no qual nos encontramos.

Por outro lado, segundo Baudrillard, existe mesmo uma doutrina associada ao consumo; quanto mais generalizado ele se encontrar, mais a doutrina que os produtos portam deixa de ser mera publicidade para se instituir como estilo de vida desejável e recomendado. Este estilo de vida, "bom" e "muito melhor que outros", reage sempre desfavoravelmente contra quaisquer transformações que o questionem, numa lógica de custo/benefício. Daí que «o não-conformismo (...) pareça socialmente inútil, principalmente quando acarreta desvantagens económicas [sociais] e políticas tangíveis (...)».

Aliás, de acordo com Marcuse, estes efectivos controlos e doutrinas sociais promovem mesmo necessidades de dois tipos. Por um lado, a "necessidade" de modos de descanso que prolongam a estupefacção, de que são exemplos a exploração comercial tão bem sucedida de fenómenos culturais de curta existência e de substituição rápida por sucedâneos como a boçalidade da dita "música pimba" ou da música pop de coreografia insipidamente erótica, a alienação rápida e offline automático do pensamento promovidos pelos espaços onde reina a música techno, o consumo fácil e acrítico da insalubridade da nova "literatura" de cordel cujo expoente máximo actual e inevitavelmente provisório é a "escritora" da moda Margarida Rebelo Pinto, ou a bisbilhotice mascarada de observação tão degradante como socialmente legitimada a que se reduz um conhecido programa televisivo. Por outro lado, a "necessidade" de manter um leque mínimo de liberdades decepcionantes mas fundamentais à estabilidade social, como a de livre competição a preços administrados, ou reflexão sobre pólos opostos artificialmente criados que marcam a agenda política e social - entretenimento que distrai do próprio acto de questionar toda a lógica do sistema social e político: num exemplo feliz, Marcuse sintetiza esta ideia ao afirmar que «a eleição livre dos senhores não abole os senhores ou os escravos».

A alternativa avançada por este último autor ao controlo social que o consumo institui decorre, pois, de uma definição muito clara do que são necessidades primárias (básicas à sobrevivência do ser humano) e do que são meras atitudes de reprodução de consumos enquanto apropriações do significado simbólico dos objectos. Apenas 1) por uma reflexão que ultrapasse o espartilho de relações de custo/benefício económicas e sociais inscritas na própria estrutura social e nos quadros de referência partilhados a partir dos quais os indivíduos agem, e 2) pela identificação e consequente recusa dessa reprodução de práticas de consumo e de actividades alienantes será possível subtrair o indivíduo a esta «falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática».

É preciso não esquecer que mesmo não sendo um sistema e uma estrutura sociais redutíveis à soma dos elementos que os compõem não deixam de ser produtos da acção humana e, como tal, perfeitamente questionáveis e mutáveis. Urge questionar os mecanismos e a natureza de um mundo tornado mercearia, onde uma ordem de consumo decorrente de uma ordem de produção exalta e capitaliza a natureza competitiva e a insatisfação congénita do indivíduo em prol de um mero jogo de mercado, o qual, destituído da sua "importância" e significado políticos, não deixa de ser por definição uma praça ou uma feira onde se grita e regateia por coisa nenhuma.



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