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17 de marzo del 2008

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Cultura

Norman Mailer

Os mortos morrem de sede*


Helena Vasconcelos
Storm / La Insignia. Portugal, março de 2008.

 

É quase possível escrever a história da carreira de Mailer, examinando os títulos dos seus livros, desde "Os Nus e os Mortos", quando o então muito jovem Norman Kingsley Mailer, chegado de fresco do Pacífico com o cheiro (ténue) da guerra nas narinas, decidiu seguir as pisadas do Papá Hemingway e pegar na deixa, escrevendo "o grande romance americano". Essa demanda, tão exaltante como a busca do Graal - e não há como os americanos para se prenderem como viciados às lendas heróicas de um passado que não lhes pertence, pelo menos directamente - poderá ter começado com Melville e com a loucura dominadora do capitão Ahab mas há quem prefira Mark Twain, Stephen Crane ou mesmo James Fenimore Cooper como dignos criadores de epopeias que exaltaram a energia vital de um povo que gosta de se ver como inspirador de grandes façanhas. Willa Cather seguiu os passos de Cooper na litania dedicada ao nobre espírito dos pioneiros mas foi naturalmente Hemingway que tomou as rédeas dessa grande e heróica empresa. Enquanto Fitzgerald contava o lado depressivo e desesperado do sonho americano em pleno ocaso, Hemingway preferiu pegar numa carabina e, antes de a virar contra si próprio, lançou-se no mundo a mostrar o que era um "verdadeiro homem", estóico, mostrando "elegância quando sob pressão" e esplendorosamente macho, dos que "adoram o cheiro a napalm pela manhã" e que amam as armas como se estas fossem o equivalente a diamantes que, como se sabe desde Marilyn - tema de um das ficções jornalísticas de Mailer - são "os melhores amigos das raparigas".

Mas voltemos ao cerne da questão, isto é, ao desejo nunca saciado de Norman Mailer de deixar impresso, a letras de fogo, o "grande romance americano". Ele tem tido competidores muito sérios: John Steibeck e William Faulkner antes da IIª Grande Guerra, num tempo de (relativa) inocência e , mais tarde, já nos anos cinquenta, o "beat" do lado errado da vida de Jack Kerouac com "Pela Estrada Fora", a grande epopeia dos aventureiros falhados, e dos idealistas perdidos que habitam as telas de Edward Hooper e a música de Tom Waits. Mailer, filho de um imigrante judeu sul-africano, nasceu em 1923 em New Jersey mas os seus primeiros anos passaram-se no ambiente duro e trepidante de Brooklyn, Nova Iorque. O pai pertencia à classe trabalhadora mas a mãe desejava um futuro diferente para o filho que ela achava "perfeito". O jovem Norman rumou directamente a Harvard para estudar engenharia aeronáutica, no ano em que começava a IIª Grande Guerra. No ambiente elitista da Universidade - literalmente um "vespeiro" de WASPs - Mailer aprendeu a detestar e a desprezar essa face da América sofisticada e elegante que o fazia sentir-se como alguém que "não falava com o sotaque próprio, não usava as roupas convenientes nem professava a religião certa". Esta situação - em parte cultivada pelo próprio - colocou-o desde sempre do outro lado da barricada em contraste com, por exemplo, o seu arqui-rival Gore Vidal, esse sim um membro daquilo que, na América, mais se aproxima da "realeza". (Cabe aqui lembrar, entre parêntesis, que Vidal foi o inventor da célebre fórmula dos 3M: num artigo intitulado "O Movimento de Libertação das Mulheres encontra o Homem Miller-Mailer-Manson," Vidal faz troça, em igual medida, das feministas extremistas e dos machos referidos no título. No meio de frases certeiras e hilariantes, diz Gore : "A atitude de Mailer em relação à mulher é semelhante à de um qualquer comandante VFW ( Veterans of Foreign Wars) no coração dos Estados Unidos. É alguém que jamais conseguirá perceber que uma mulher não é simplesmente uma criatura destinada à procriação - a sua "admiração" diante da função reprodutiva da mulher é pura hipocrisia - que ela é um ser humano tal como ele, e que ele é perigoso para ela já que um dos sonhos mais americanos é o de um homem assassinar a esposa para depois sodomizar outra mulher contra a vontade dela, em comemoração de um qualquer feito glorioso").

Os problemas de Mailer com as feministas fazem parte do anedotário das letras e da cultura popular americanas. Casado seis vezes, pai de oito filhos e com uma prolífera descendência, o facto de, por exemplo, ter esfaqueado a sua segunda mulher, Adele Morales, numa festa, em 1960, parece não ter afectado o seu charme junto do sexo oposto. Já na Faculdade cultivava o boxe - que ele praticava com paixão, dando-se ares de rufião ao jeito de John Garfield - e as revistas literárias. (Foi um dos fundadores da "Village Voice" )

Decidido a ser escritor, ou antes, determinado a escrever "o grande romance americano", só foi preciso o ataque a Pearl Harbour para ele saber que a Guerra era um tema de eleição. Esperou com ansiedade o recrutamento (tardio ) enquanto compunha a imagem do "grande escritor maldito". Em 1942, um ano antes de se licenciar, guiava um velho Chevrolet preto descapotável, antes de ser enviado para as Filipinas, onde desembarcou quando na Europa já se sabia que a Guerra estava no fim. Foi o suficiente para delinear "Os Nus e os Mortos" publicado em 1948 e imediatamente aclamado como romance que podia rivalizar com "Um Adeus às Armas" de Hemingway, que o precedeu de quase 20 anos. A cada um a sua Guerra mas não deixa de ser curioso comparar (de novo) Mailer a Gore Vidal que, nesse mesmo ano, quando ainda se sentiam os ecos da euforia da vitória - e imperava o culto machista dos veteranos da Guerra - publicou a obra-prima homoerótica "A Cidade e o Pilar" dedicado a Jimmie Trimble, morto na Batalha de Iwo Jima em 1945 e o grande amor da sua vida.

Quanto a Mailer, depois de uma passagem pela Sorbonne, desenvolveu o gosto pelas lutas e touradas (depois de incursões até ao Novo México) e adaptou-se na perfeição ao modus vivendi de Greenwich Village onde se combinava Jazz com marijuana ("o fumo dos assassinos ") , violência com sexo e se lançavam as bases para o existencialismo à americana. Mailer, que nunca foi muito dado a subtilezas, entrou a fundo nesse ambiente, escrevendo ficção e não-ficção e acompanhando todos os acontecimentos mais mediáticos e mais sensacionalistas de uma América ávida e escatológica. Willhelm Reich substituíra Freud, os heróis arrastavam-se pela sarjeta na pele de psicopatas, drogados e prostitutas e Mailer sabia bem onde se deveria posicionar no universo dos rituais e das instituições do seu País. Escreveu sem descanso sobre grandes temas como a luta sem tréguas entre o Bem (Deus) e o Mal (Satã), sobre as grandes conspirações - nos livros sobre Marilyn e Lee Oswald - sobre o MacCarthysmo em "O Parque das Corças" (1955) sobre o programa espacial - "Of A Fire on the Moon" (1970) - sobre a CIA em "Harlot's Ghost" (1991), sobre política - Mailer concorreu ao lugar de Mayor de Nova Iorque pelo Partido Democrata e perdeu - e sobre tudo o que aparecesse nas primeiras páginas dos grandes jornais.

Em 1984, depois de tentativas menos bem sucedidas na área da ficção, Norman Mailer publicou um dos seus romances bombásticos: "Os Duros não Dançam". Trata-se da história de Tim Madden que acorda um dia com uma ressaca monumental, uma tatuagem nova, o assento do seu Porsche coberto de sangue e a cabeça cortada de uma mulher na sua plantação ilegal de marijuana. Mais um "fait-divers" nessa América que Mailer recria com um gosto e prazer incansáveis. Já em "Um Sonho Americano", de 1965, é visível o deleite de Mailer enquanto descreve o pesadelo alcoolizado de Stephen Rojack que o leva a assassinar a mulher e a descer aos infernos da baixa de Manhattan, percorrendo sem descanso os clubes de Jazz e os barres inundados a néon, frequentados por gente com poucas qualificações sociais.

Mailer poderia ter continuado a explorar este género mas o seu indiscutível faro e inesgotável energia levou-o para os caminhos da não ficção tal como os seus contemporâneos Truman Capote, Gore Vidal, Hunter S. Thompson e Tom Wolfe que durante as décadas de sessenta e setenta competiram entre eles para o lugar de paladinos do "Novo Jornalismo" que tendia a atenuar, por vezes com resultados desastrosos, a fronteira sempre ténue entre a realidade e a ficção. Mailer, seguindo os passos de Truman Capote e da sua avidez em relação ao destino dos assassinos da família Clutter ( "A Sangue Frio", 1965), publicou em 1979 "A Canção do Carrasco", dedicado aos acontecimentos relacionados com a execução do assassino Gary Gilmore e que lhe valeu um segundo Pulitzer. No ano seguinte, uma vez que continuava obcecado com este tipo de assunto, fez campanha para a libertação sob fiança de outro assassino, Jack Abbott. Conseguiu os seus intentos mas o resultado foi desastroso: Abbott, mal se apanhou em liberdade, cometeu outro assassínio, o que assanhou a opinião pública contra Mailer.

No entanto, para ele, os anos sessenta foram os mais felizes e produtivos da sua vida. Era um tempo que convinha ao seu feitio inquieto e libertário. Publicou dezenas de livros e participou activamente em campanhas políticas. Em 1968 ganhou o Pulitzer e o National Book Award com "Os Exércitos da Noite" sobre a Grande Marcha para o Pentágono - Outubro de 1967 - composta por milhares de pessoas que protestavam contra a Guerra no Vietname. (Robert Lowell, Norman Mailer e Noam Chomsky estavam entre o número de intelectuais presos). Nos anos setenta, o seu trabalho aproximou-o da estética de artistas como Andy Wharol que perseguiu e "classificou" os ícones da cultura popular do século XX. Ambos demonstraram o gosto pelo sangue, pela fama e pelo proveito. Wharol fixou desastres nas estradas e fez filmes com nomes como "Bad", "Trash", "Flesh", "Bitch e "My Hustler" enquanto Mailer se fixava em assassinos - incluindo Lee Oswald - e nos seus heróis, Henry Miller, Picasso e Muhammad Ali. "The Fight" relata com uma intensidade e paixão invulgares as semanas de treino intenso que precederam o desafio entre os dois monumentais campeões Ali e George Foreman na final do Grande Campeonato de Pesos Pesados em Kinshasa, Zaire, em 1975. Mailer citou o grande pugilista, fazendo com que estas palavras fossem o seu motto : "Sou "O" professor de boxe, um mestre de dança, um grande artista".

A longa carreira de Mailer demonstra o mesmo esforço e a mesma resistência de um maratonista ou de um campeão de boxe e tem sido uma espécie de jogo mortal para alcançar o melhor prémio: o troféu para o autor do Grande Romance Americano. Mas já nos finais dos anos sessenta, o crítico Irwing Howe caracterizou Mailer da seguinte maneira: "o taumaturgo do orgasmo, o metafísico das entranhas, o curandeiro da psique, o vanguardista da violência literária, o teórico da dialéctica da irracionalidade e, acima de tudo, o romancista que desperdiçou um talento incomparável". Passados quarenta anos, esta dura apreciação continua a parecer correcta, embora não se possa chamar "desperdício" à óbvia mestria deste contador de histórias.


"Mailer: His Life and Times", Peter Manso, Ed. Penguin Books, 1985.
"Mailer: A Biography," Mary V. Dearborn, Ed. Houghton Mifflin, 1999.
"Hitler: a study in tyranny", Allan Bullock, Pelican, 1952.

(*) Título do primeiro capítulo de "The Fight", 1975, Norman Mailer. Norman Mailer morreu a 10 de Novembro de 2007. Este artigo foi publicado no Jornal Público (www.publico.pt) em agosto de 2007.

 

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