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21 de julho de 2008

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Genes em demes: uma introdução


Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, julho de 2008.

 

A biologia de populações lida com fenômenos e processos que caracterizam agrupamentos locais de organismos co-específicos. Isso envolve tanto a genética como a ecologia de populações, tendo implicações diretas em nosso entendimento do processo evolutivo [1]. Algumas facetas do estudo ecológico de populações já foram apresentadas e discutidas em artigos anteriores [2]. No que segue, vamos nos debruçar um pouco sobre a genética de populações, examinando mais de perto algumas de suas contribuições, como o famoso teorema de Hardy-Weinberg.

Freqüências alélicas e genotípicas

Seja uma população de organismos diplóides que possuem dois alelos (A e a) para determinado locus autossômico. Vamos ainda admitir que os integrantes dessa população se cruzam ao acaso em relação aos alelos - i.e., as chances de um portador do alelo A cruzar com um portador de a dependem exclusivamente de suas abundâncias relativas.

Se a população é formada por N indivíduos diplóides, teremos um fundo gênico (ver adiante) formado por 2N alelos; estes alelos, por sua vez, podem se combinar de três modos (genótipos) diferentes, a saber: AA, Aa e aa. Desse modo, o valor de N pode ser decomposto em três classes de indivíduos, levando em conta que eles são portadores de genótipos diferentes, a saber

N = D + H + R, [Eq. 1]

onde D representa o número de indivíduos com o genótipo homozigoto dominante (AA), H indica o número de indivíduos heterozigotos (Aa) e R, o número de indivíduos homozigotos recessivos (aa).

Dividindo ambos os lados da Eq. 1 por N, obtemos

N/N = D/N + H/N + R/N,

simplificando, chegamos a

D/N + H/N + R/N = 1, [Eq. 2]

onde cada termo do lado esquerdo da equação indica a freqüência relativa de cada um dos três genótipos presentes na população, a saber:

D/N = f(AA),
H/N = f(Aa), e
R/N = f(aa),

onde f(AA) representa a freqüência do genótipo homozigoto dominante, f(Aa) indica a freqüência do heterozigoto e f(aa), a freqüência do homozigoto recessivo.

Substituindo os termos acima na Eq. 2, obtemos

f(AA) + f(Aa) + f(aa) = 1. [Eq. 3]

A partir da Eq. 3, que trata das freqüência genotípicas, podemos derivar fórmulas que nos permitem calcular as freqüências alélicas - i.e., f(A) e f(a). Para isso, devemos notar que

f(A) = f(AA) + 1/2f(Aa), e f(a) = f(aa) + 1/2f(Aa). Em palavras, a freqüência do alelo dominante, f(A), é igual à soma da freqüência do genótipo homozigoto dominante mais a metade da freqüência do genótipo heterozigoto. De modo semelhante, a freqüência do alelo recessivo, f(a), é igual à soma da freqüência do genótipo homozigoto recessivo mais a outra metade da freqüência do genótipo heterozigoto.

A soma das freqüências alélicas, a exemplo do que ocorre com as freqüências genotípicas (Eq. 3), é igual a um. Como é costume, por simplificação, representar f(A) por p e f(a) por q, temos

f(A) + f(a) = p + q = 1.

Quando estamos lidando com um sistema de herança que independe do sexo, admitimos que

p(macho) = p(fêmea), e
q(macho) = q(fêmea).

Podemos usar esses termos para preencher uma tabela de Punnett [3], envolvendo o livre cruzamento entre os indivíduos da geração parental. No caso de ambos os pais serem portadores do genótipo Aa, por exemplo, teríamos

Em palavras: p gametas (masculinos ou femininos) transportam o alelo A, enquanto q gametas (femininos ou masculinos) transportam o alelo a.

Com os resultados da tabela acima, podemos calcular as freqüências (proporções) genotípicas esperadas para a prole. Para isso, basta lembrar que as freqüências alélicas p e q podem ser usadas como equivalentes probabilísticos para calcular as chances de que os diversos genótipos sejam formados. As freqüências genotípicas na primeira geração filial serão

f(AA) = p * p = p^2,
f(Aa) = (q * p) + (p * q) = 2pq, e
f(aa) = q * q = q^2.

Substituindo os termos acima na Eq 3, obtemos

p^2 + 2pq + q^2 = 1. [Eq. 4]

Lembrando que

p^2 + 2pq + q^2 = (p + q) * (p + q) = (p + q)^2,

chegamos a

(p + q)^2 = p^2 + 2pq + q^2 = 1, [Eq. 5]

que pode ser traduzida do seguinte modo: o quadrado da soma das freqüências alélicas é igual à soma das freqüências genotípicas. Como se vê, portanto, é possível obter as freqüências genotípicas a partir das freqüências alélicas, e vice-versa.

O fundo de genes

A Eq. 5 é utilizada para descrever uma situação comumente referida como equilíbrio de Hardy-Weinberg, em alusão a G. H. Hardy (1877-1947), matemático inglês, e Wilhelm Weinberg (1862-1937), médico alemão, que a formularam independentemente no início do século 20, poucos anos após a redescoberta dos trabalhos de Mendel [4].

Ainda que a Eq. 5 - referida como equação de Hardy-Weinberg ou, mais raramente, como equação de Castle-Hardy-Weinberg [5] - seja relativamente simples em termos matemáticos, ela exerceu um papel fundamental na origem e desenvolvimento da genética de populações. A genética de populações lida com fenômenos e processos que envolvem o chamado fundo de genes ou fundo gênico.

O fundo de genes (referido também como banco de genes ou pool gênico) não é uma entidade física palpável ou diretamente observável. Trata-se, na verdade, de algo imaterial, um conceito formulado para abranger a totalidade ou um subconjunto qualquer de genes e respectivos alelos presentes nos indivíduos que integram um mesmo deme (ou população mendeliana).

Um deme é aqui definido como um conjunto de indivíduos co-específicos que cruzam ou podem cruzar entre si, compartilhando (por parentesco ou ancestralidade comum) de um fundo de genes comum. Tal conceito não coincide necessariamente com o conceito de população utilizado em ecologia, pois às vezes o que identificamos como sendo uma grande e única população é na verdade um complexo de populações mendelianas ou subpopulações locais. Estas, dependendo das taxas de migração, estão mais ou menos isoladas entre si.

A figura a seguir ilustra duas situações envolvendo demes. Na primeira, mais simples, há dois demes, A e B. Nesse caso, o que a princípio foi identificado como sendo uma única população (população 1) é, na verdade, a soma de duas populações mendelianas ou demes. Os integrantes do deme A cruzam livremente entre si, do mesmo modo como os integrantes de B, mas dificilmente ocorrem cruzamentos entre indivíduos dos dois demes. Seria o caso, por exemplo, de duas populações mendelianas de uma mesma espécie animal cujos integrantes raramente migram para a subpopulação vizinha.

A segunda situação é um pouco mais complexa: o que a princípio foi identificado como sendo uma única população (população 2) revelou-se como sendo um complexo de seis demes, dispostos ao longo de um gradiente de hábitat (digamos, a encosta de uma montanha). Mais uma vez, embora os integrantes de cada deme cruzem entre si, eles dificilmente o fazem com integrantes de demes vizinhos (C com D, por exemplo) e muito menos com integrantes de demes mais afastados (C com E ou E com G, por exemplo).

Essa segunda situação ilustra aquilo que os estudiosos chamam de clina - i.e., um gradiente de variação intra-específica formado por uma série de populações locais em geral dispostas ao longo de um gradiente de hábitat. Pensemos, por exemplo, em um clina formado por subpopulações de uma espécie de planta dispostas ao longo de um gradiente topográfico. Em um cenário como esse, dificilmente os integrantes da subpopulação que prospera na base da montanha terão chances de cruzar com integrantes da subpopulação que prospera no topo da montanha, ainda que ocasionalmente possam fazê-lo com integrantes de subpopulações vizinhas.

Populações locais que exibem diferenças fenotípicas associadas a hábitats particulares costumam ser referidas como ecótipos, um termo que procura enfatizar a importância do hábitat local na evolução de diferenças fenotípicas. Trata-se de um fenômeno particularmente comum entre espécies vegetais [6].

Embora diferenças fenotípicas entre subpopulações possam ser evidentes mesmo na ausência de divergência genéticas, há evidências sustentando a noção de que populações locais comumente acumulam diferenças genéticas entre si. Em alguns casos, essas diferenças genéticas têm sido interpretadas como respostas adaptativas a regimes seletivos divergentes. Nesses casos, o fundo de genes pode diferir entre populações locais em função de resposta à seleção natural, mesmo quando elas não estão inteiramente isoladas entre si.

Alcançando o equilíbrio de Hardy-Weinberg

Em sentido amplo, a evolução biológica pode ser entendida como toda e qualquer alteração que ocorre no fundo gênico de uma população ao longo das gerações. Mas que fator ou conjunto de fatores seria capaz de alterar o fundo gênico?

Para responder a essa pergunta de modo satisfatório, devemos reexaminar a Eq. 5. Isso porque, como foi dito antes, tal equação descreve uma situação de equilíbrio estacionário na qual as freqüências alélicas (e genotípicas) permanecem inalteradas de uma geração a outra. Quer dizer, as condições que levam uma população ao equilíbrio de Hardy-Weinberg (H-W) são as mesmas cuja vigência implica na suspensão do processo evolutivo. Satisfazer a tais condições significa, portanto, interromper a evolução.

Em poucas palavras, a evolução cessa quando as "forças tendenciosas" que habitualmente agem sobre o fundo gênico de uma população são interrompidas. Falando mais especificamente, são quatro as pré-condições que precisam ser satisfeitas, a saber: a) os acasalamentos devem ocorrer ao acaso (diz-se então que a população é pamítica); b) a mutação é suspensa; c) as migrações (chegadas e saídas de indivíduos) são interrompidas; e d) as chances de sobrevivência e reprodução deixam de ser afetadas pelo fenótipo e passam a ser aleatórias (i.e., a seleção natural é suspensa).

No que segue, examinaremos cada uma dessas forças tendenciosas.

a) Acasalamentos aleatórios

Um primeira condição para que o equilíbrio de H-W seja alcançado é a de que os acasalamentos dentro da população passem a ocorrer ao acaso. Assim, as chances para que determinado cruzamento ocorra - digamos, AA versus aa - passariam a depender única e exclusivamente das freqüências relativas dos respectivos genótipos.

Dizemos que os cruzamentos são seletivos ou não-aleatórios sempre que os indivíduos exibem algum tipo de seletividade na escolha dos parceiros. Portadores do genótipo AA, por exemplo, podem acasalar preferencialmente com indivíduos aparentados e geneticamente semelhantes (situação referida como endogamia) ou, ao contrário, com indivíduos não-aparentados e algo distintos (situação referida como exogamia).

Há evidências mostrando que os acasalamentos muitas vezes ocorrem de modo não-aleatório. Por exemplo, as fêmeas de muitas espécies animais são extremamente seletivas na escolha dos parceiros, o que abre caminho para que, sob determinadas circunstâncias, certos genótipos sejam preferidos em detrimento de outros. Algo semelhante ocorre em outros seres vivos. Entre as angiospermas, por exemplo, existem mecanismos de reconhecimento da identidade genética do grão de pólen que chega ao estigma, o que inibir ou favorecer determinados cruzamentos.

b) Ausência de mutação

A replicação do material genético (genes e cromossomos) implica em uma margem de "erros" ou mutações. Algumas dessas mudanças envolvem a quebra de pedaços inteiros de cromossomos (mutações cromossômicas), enquanto outras ocorrem apenas em pontos específicos de determinado cromossomo (mutações pontuais).

Embora as taxas conhecidas de mutação sejam relativamente baixas, a variabilidade genética existente em populações é, em última análise, produto de mutações. De especial interesse aqui são as mudanças do tipo A ' a (ou vice-versa), capazes de alterar as freqüências alélicas - nesse caso, reduzindo a freqüência de um alelo, enquanto eleva a de outro.

c) Suspensão das migrações

Migrantes carregam consigo o potencial da mudança. Indivíduos que chegam de uma população co-específica vizinha (imigrantes) podem ser portadores de alelos raros ou inexistentes na nova população, contribuindo assim para alterar seu fundo de genes. De modo semelhante, a saída de indivíduos (emigrantes) pode resultar na perda de alelos raros, contribuindo desse modo para a diminuição da variabilidade genética da população original.

Em muitos casos, porém, o impacto da migração é bastante limitado. Seja porque as populações estão separadas pela distância, seja porque elas vivem em hábitats descontínuos, com pouca ou nenhuma movimentação de indivíduos entre elas.

d) Chances aleatórias de reprodução

A essência da teoria da evolução por seleção natural reside justamente no fato de que as chances de sobrevivência e reprodução não estão distribuídas de modo aleatório entre os integrantes de uma mesma população. Ao contrário, sob circunstâncias ecológicas particulares, certos indivíduos têm chances sistematicamente mais elevadas de sobrevivência e reprodução do que outros.

Em resumo, qualquer população que satisfaça ao mesmo tempo a essas quatro condições alcançará de uma geração a outra o chamado equilíbrio de H-W, aí permanecendo até que ao menos uma das condições mencionadas acima deixe de ser atendida.

Situações mais complexas envolvendo a equação de Hardy-Weiberg

Um comentário final sobre a equação de H-W: algumas das restrições que cercam a Eq. 5 podem ser relaxadas, permitindo assim ampliar o alcance de suas generalizações. Como foi dito logo no início da seção "Freqüências alélicas e genotípicas", tais restrições têm a ver com o fato de estarmos lidando com sistemas dialélicos de um único gene autossômico em populações de organismos diplóides.

Entre as situações que escapam da abordagem adotada neste artigo, podemos citar: alelos múltiplos (i.e., um único gene com três ou mais alelos), dois ou mais loci (i.e., dois ou mais genes, cada um com dois ou mais alelos), espécies poliplóides (i.e., quando cada indivíduo transporta mais de dois alelos de cada gene) e herança ligada ao sexo (i.e., quando as freqüências alélicas em machos e fêmeas são desiguais) [7].

Algumas vezes, no entanto, é possível incorporar as modificações diretamente na Eq. 5, obtendo assim versões derivadas ligeiramente diferentes. Para um sistema com três alelos, por exemplo, cujas freqüências sejam iguais a p, q e r (i.e., p + q + r = 1), teríamos

(p + q + r)^2 = p^2 + q^2 + r^2 + 2pq + 2pr + 2qr = 1,

onde p^2 representa a freqüência do genótipo A1A1, q^2 é a freqüência de A2A2, r^2 é a freqüência de A3A3, 2pq é a freqüência de A1A2, 2pr é a freqüência de A1A3, e 2qr é a freqüência de A2A3.

Já para o caso de um sistema dialélico em uma população de organismos tetraplóides, teríamos

(p + q )^4 = p^4 + 4p^3q + 6p^2q^2 + 4pq^3 + q^4 = 1,

onde p^4 representa a freqüência do genótipo A1A1A1A1, q^4 é a freqüência de A2A2A2A2, 4p^3q é a freqüência de A1A1A1A2, 4pq^3 é a freqüência de A2A2A2A1 e 6p^2q^2 é a freqüência de A1A1A2A2.


Notas

(*) Biólogo meiterer@hotmail.com, autor de ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003) e A CURVA DE KEELING E OUTROS PROCESSOS INVISÍVEIS QUE AFETAM A VIDA NA TERRA (2006).

1. Sobre a biologia de populações, ver artigo 'DERT, HERT, RERT e a biologia de populações' http://www.lainsignia.org/2005/junio/cyt_002.htm.
2. Ver, por exemplo, os seguintes artigos: 'BIDE: uma introdução à ecologia matemática'; http://www.lainsignia.org/2004/octubre/ecol_007.htm; 'Demografia foliar: contando folhas no braço-de-preguiça' http://www.lainsignia.org/2004/diciembre/ecol_004.htm e 'Quebrar os dedos, não!' http://www.lainsignia.org/2004/diciembre/ecol_012.htm.
3. Tabela (ou quadrado) de Punnett, assim chamada em alusão ao seu idealizador, o zoólogo inglês Reginald C. Punnett (1875-1967). Para uma definição dos termos genéticos mencionados neste artigo, ver Crow, J. F. 1978. Fundamentos de genética. RJ, Ao Livro Técnico, ou então Griffiths, A. J. F. & outros 5 co-autores. 2006. Introdução à genética, 8ª edição. RJ, Guanabara Koogan.
4. Para detalhes históricos sobre o trabalho pioneiro do monge e naturalista austríaco Gregor Mendel (1822-1884), o "pai" da genética, ver Hening, R. M. 2001. O monge no jardim. RJ, Rocco.
5. Em alusão ao trabalho pioneiro do geneticista americano William E. Castle (1867-1962); ver, por exemplo, Merrell, D. J. 1981. Ecological genetics. London, Longman, mas ver também Crow, J. F. 1999. Hardy, Weinberg and language impediments. Genetics 152: 821-825.
6. Trabalhos pioneiros sobre diferenciação ecotípica foram realizados pelo botânico sueco Göte Turesson (1892-1970); para detalhes e exemplos, ver Briggs, D. & Walters, S. M. 1969. Evolución y variación vegetal. Madrid, Guadarrama, ou então Raven, P. H.; Evert, R. F. & Eichhorn, S. E. 2007. Biologia vegetal, 7ª edição. RJ, Guanabara Koogan.
7. Para detalhes sobre algumas situações mais complexas, ver, por exemplo, Crow, J. F. & Kimura, M. 1970. An introduction to population genetics theory. NY, Harper.

 

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