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13 de abril de 2008

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Cultura

Luiz Gomes é um ícone


Marco Albertim
La Insignia. Brasil, abril de 2008.

 

Três homens roubaram um crucifixo de madeira, do século XVII, e uma imagem de Santa Luzia, da casa de Luiz Gomes. O crucifixo fora avaliado em 80 mil reais. E um dos ladrões, Clezivaldo Pontes de Sousa, ex-monge, gozava da confiança de Luiz. Dias antes eu o visitara. Encontrei-o em sua otomana. Beijei-o na testa. Ele se deitou e chorou. Depois pediu-me para sentar a seu lado, puxando a cadeira. Luiz quase não ouve, do alto dos seus 84 anos. Conheci-o ainda moço, no carnaval de Goiana. Chamou-me a atenção, porque, diferente dos outros, ele bebia cachaça na colher de sopa.

Cultiva a longa barba até hoje; e hoje só tem razões para mantê-la. Impressionou-me quando, ainda com energia na voz, visitou o convento do Carmo, tão secular quanto Goiana. Os técnicos da prefeitura, então, restauravam as arcadas barrocas do convento. Ele arvorou-se, ou melhor, desarvorou-se no desespero de ver a descaracterização da arquitetura. "Do jeito que vocês estão fazendo, é melhor dinamitar tudo!" - gritou ele. Nada disseram, embasbacaram-se e contrataram a consultoria do restaurador e pintor sacro Luiz Gomes.

Ele vive só. Tem a companhia de um criado que o ajuda na faina doméstica. Come duas refeições por dia, num prato com gravuras barrocas. O garfo e a faca são do século XVIII. As porções de comida que leva à boca são módicas, e a mastigação é lenta. Luiz não tem pressa. Sabe que a morte o espreita. Pedi a ele para me contar a história de Antônia Leão, uma ceramista de imagens sacras que, conforme me disseram, morrera esquecida do poder público local... de fome. "Era uma moça tímida, encabulada. Envergonhava-se quando ouvia elogios de seu trabalho." Inquiriu-me, ele, das razões da repentina curiosidade sobre a artista. Expliquei-lhe que queria torná-la personagem de um conto. Não conseguiu me contar a vida da artista que não teve trajetória. Citou Picasso, técnicas de pintura e o uso da clara de ovo no ofício do espanhol.

O desespero de Luiz se funda na maturidade com que concebe uma obra; ele pinta, molda, restaura e é oleiro. Não pode mais gritar contra o descaso com que o barroco de mais de quatrocentos anos, de Goiana, é tratado. O desespero aflora porque apenas concebe, mas não executa.

Nasceu numa localidade conhecida como Barro Vermelho; generosidade telúrica, porque dali soube extrair a matéria-prima para suas estatuetas. Criou como poucos toda sorte de artes plásticas. Poucos lhe deram atenção quando tinha forças para trabalhar. É um ícone, está esquecido.

Goiana completou quatrocentos anos nos tempos da ditadura. A cidade era administrada por um interventor civil, a mando dos militares. As autoridades subiram no palanque montado na rua Direita. Os discursos, ornados de um parnaso florido, confundiam o povo. Luiz Gomes preparara um cartaz onde escrevera com caracteres barrocos: Goiana, quatro séculos sem ter nada. Sozinho, misturando quixotismo e cidadania, andou pelas ruas empunhando o cartaz. Foi preso no DOPS, em Recife; os esbirros se entretiveram em arrancar-lhe os fios da barba.

Como todo criador, foi paciente; tão paciente que se manteve diretor do Museu de Arte Sacra da cidade, por quinze anos, sem receber salário; sem queixas. Lá mesmo montou um ateliê. Visitar o museu era visitar Luiz, ouvir-lhe a voz de veludo no apuro de cada sílaba. Hoje, a fraqueza força-o a dividir as palavras em sílabas nos intervalos da voz.

Da otomana, levanta-se para ir ao banheiro ou para um licor no cálice com desenhos de flores em alto relevo. Passa o dia de ceroulas; o hábito, a cidade o perdoou no respeito reverente. Houve um tempo em que as visitas, a seu pedido, assinavam um livro de presença e punham a data. As visitas se tornaram uma romaria. Ele nunca se impacientou. Não tem mais o livro. As visitas se escassearam.

Ao entardecer, toda sua casa cobre-se na penumbra da decoração barroca. O criado oferece-lhe um licor. "Obrigado, Francisco." A voz carrega-se de um rogo de desculpas por ser o patrão. Ele deita-se cofiando a barba,assunta com os fios.

Luiz recuperou o crucifixo e a imagem de Santa Luzia. Por certo não se refez do susto.

Meu tributo, Luiz, antes que seja tarde.


Marco Albertim é jornalista e escritor. Nasceu em Goiana, interior de Pernambuco. É um dos ganhadores de Concurso Osman Lins, de contos, de âmbito nacional. Figura na antologia Panorâmica do conto em Pernambuco, e na coletânea Recife conta o natal, da Fundação de Cultura do Recife.

 

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